Ecos do Nacionalismo Cosmopolita de Fernando Pessoa em Álvaro de Campos

Regina Almeida do Amaral

RESUMO: O objetivo desse trabalho é apresentar as hipóteses levantadas a partir do mapeamento e da interpretação dos discursos acerca de Lisboa e da Europa presentes nos poemas de Álvaro de Campos. A detecção da presença de Lisboa como local privilegiado associado a um cosmopolitismo permite entrever vestígios em Campos do projeto pessoano de um “nacionalismo cosmopolita”, confirmando que esse é um eixo importante na condução do seu universo poético. 

PALAVRAS-CHAVE: Poesia. Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Nacionalismo.

ABSTRACT: The aim of this work is to present the hypotheses put forward by the mapping and interpretation of the discourses regarding Lisbon and Europe present in Álvaro de Campos’s poems, that is, the understanding of Lisbon as a privileged cosmopolitan location enables us to glimpse in Campos traces of a Pessoa’s project for a “cosmopolitan nationalism”, confirming this as an important axis of Pessoa’s poetical universe.

KEYWORDS: Poetry. Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Nationalism. 

 

Considerações Iniciais

Álvaro de Campos é um dos heterônimos mais bem-acabados de Fernando Pessoa, no sentido de que, em comparação aos outros, é o que se tem mais informações fornecidas pelo ortônimo, além de ter sido o único a se manifestar publicamente afora o próprio Pessoa. Na sua poesia são perceptíveis movimentos de oscilação, como o de exaltação do mundo contemporâneo seguido de um cansaço existencial, nos quais fica explícito que Lisboa ocupa uma espécie de local privilegiado. Ao mesmo tempo há um olhar voltado para a Europa, um olhar a partir de Portugal, e um clamor por um cosmopolitismo, como quando data um texto de “Europa, 1923” (PESSOA, 2014, p. 428). 

Mesmo que o cerne da poesia de Campos não seja de caráter político, é possível detectar nela alguns discursos nos quais se pode entrever vestígios do projeto maior de Fernando Pessoa, o de um “nacionalismo cosmopolita”. Embora o nacionalismo também não se apresente em Pessoa com um caráter estritamente político, ele é eixo importante na condução do seu universo poético (MARTINS, 2017), motivo pelo qual não pode ser considerado ponto secundário na sua obra (URIBE; SEPÚLVEDA, 2012), perspectiva que merece mais atenção. Nesse sentido, a análise dos discursos acerca de Lisboa e do resto da Europa em Campos visa a contribuir para a crítica pessoana, aproveitando o momento de renovação da mesma com a publicação de novas edições da obra do poeta português e, consequentemente, instiga para uma nova onda de produção crítica.

Portanto, o objetivo deste trabalho é apresentar as hipóteses levantadas a partir da interpretação, sob um viés de caráter histórico e sócio-político, dos discursos acerca de Lisboa e da Europa que foram mapeados nos poemas de Álvaro de Campos. Para tal, foi utilizada sua obra completa publicada na edição mais recente, sendo considerados apenas os poemas ou fragmentos de poemas que foram explicitamente atribuídos ao heterônimo.

Definição do eu: Portugal como interpretação de Álvaro de Campos

Em Álvaro de Campos um dos traços mais recorrentes é o sentir tudo, sentimento que o distingue dos outros heterônimos criados por Fernando Pessoa e até do próprio ortônimo (ZENITH, 2015). O ser “toda a gente e toda a parte” (PESSOA, 2014, p. 56), o sentir “de mais para poder continuar a sentir” (PESSOA, 2014, p. 94) ou o “sentir tudo de todas as maneiras” (PESSOA, 2014, p. 130) daquele que foi “para a cama com todos os sentimentos” (PESSOA, 2014, p. 133), são exemplos do que Pessoa definiu como Sensacionismo. Dentre os vários “ismos” pessoanos, este tem relação direta com a sua própria proposta heteronímica e as suas consequentes fragmentação, ampliação e multiplicação do eu, que também estão presentes em Campos, no seu “eu o complexo, eu o numeroso” (PESSOA, 2014, p. 65), e na justificativa dessa multiplicação: “multipliquei-me para me sentir, para me sentir, precisei sentir tudo” (PESSOA, 2014, p. 136). 

Um eu individual seria limitado para esse transbordar de sensações, “porque não ha vida bastante em um p’ra ser todos” (PESSOA, 2014, p. 113). Então é necessário se multiplicar, ou se alargar, para que se possa abarcar uma diversidade cada vez maior de sentimentos. O eu dos poemas de Campos é ele mesmo, como se vê em vários versos: “Eu fingi que estudei engenharia. Vivi na Escóssia” (PESSOA, 2014, p. 38); “Olha pra mim: tu sabes que eu, Álvaro de Campos, engenheiro, Poeta sensacionista” (PESSOA, 2014, p. 108); “Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponeza madrinha” (PESSOA, 2014, p. 132). Mas é muito mais, pois também é “a ama que empurra os perambulators em todos os jardins publicos, […] o polícia que a olha, parado para traz na alea, […] a creança no carro, que acena á sua inconsciencia lucida com um colar com guizos” (PESSOA, 2014, p. 131). É aquele que afirma que “os outros também são eu” (PESSOA, 2014, p. 230), que exclama “Quantos Cesares fui!” (PESSOA, 2014, 289) e que, enfim, reconhece que é “tudo isto, e além d’isto o resto do mundo” (PESSOA, 2014, p. 132). Então o eu-Campos se despersonaliza e se desdobra em todos e em tudo, se apresentando como um eu múltiplo e coletivo que, por isso, apresenta sensações diversas, e até mesmo contraditórias, reunindo em si “uma sinfonia de sensações incompatíveis e análogas” (PESSOA, 2014, p. 89). É a partir daí que surge a hipótese de que esse eu-coletivo possa representar um povo ou uma nação.

A voz desse eu-coletivo traz indícios de uma das suas possíveis identidades, como no verso de “Tabacaria”: “Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama(PESSOA, 2014, p. 202). Essa conquista do mundo, que teria se dado tão cedo, pode fazer referência às conquistas de Portugal advindas do seu papel de “descobridor” e colonizador adotado desde o século XV (LOURENÇO, 1999). Portugal, uma pequena nação que se alargou de tal forma que acabou por se tornar um império que ocupou diversos cantos do mundo, pode ter voz nos seguintes versos: 

Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
E entre hervas altas malmequer ensombrado,
Folha a folha lê em mim não sei que sina,
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje cujo ruido amei como a um corpo.
Outra folha de mim lança para o Sul
Onde estão os mares e as aventuras que se sonham.
Outra folha minha atira ao Occidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o futuro,
E ha ruidos de grandes machinas e grandes desertos rochosos
Onde as almas se tornam selvagens e a moral não chega.
E a outra, as outras todas as outras folhas –
Ó oculto tocar-a-rebate dentro em minha alma!
Atira ao Oriente, (PESSOA, 2014, p. 59, grifo nosso). 

Então esse eu-Portugal que teve sua alma dispersada, como o malmequer teve suas folhas espalhadas, agora abarca cada individualidade, cada personalidade e cada fé presentes nos lugares por ele conquistados. E depois de tantas conquistas, diz:

Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os logares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paysagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero (PESSOA, 2014, p. 143).

Fazendo referência à obra de Fernando Pessoa, Mensagem, Fernando Cabral Martins (2017) afirma que nela Portugal poderia equivaler a um outro heterônimo, que ele chama de heterônimo coletivo. Nesse caso, a voz de Portugal seria projetada através de Pessoa, que seria o “médium da nação” (MARTINS, 2017, p. 209). Nos poemas de Álvaro de Campos por sua vez, com a presença de um eu-coletivo, parece haver um segundo sistema heteronímico que faz dele o médium que dá voz a Portugal. Nesse ponto, a voz que Pessoa parecia pretender dar a Portugal aparenta reverberar nos poemas de Campos. Portanto, parece haver uma voz que ecoa, mas o que ela pretende dizer? Talvez um indício para responder a essa pergunta esteja em uma das características que se destaca no eu-coletivo de Campos, que é a universalidade perceptível em: “Mas eu próprio sou o Universo” (PESSOA, 2014, p. 71); “Meu coração universo” (PESSOA, 2014, p. 171). Um eu que afirma que “todas as cidades do mundo rumorejam-se dentro de mim… […] Meu coração rendez-vous de toda a humanidade […] E todos os paizes e todas as pessoas giram dentro de mim” (PESSOA, 2014, p. 137-138). 

Esse eu-Portugal, que dispersou sua alma pelos quatro cantos do mundo, é universal por estar em toda a parte e por agregar em si diversidades. E considerando que a voz desse eu é o eco de uma voz também projetada por Fernando Pessoa, é possível fazer uma associação com a sua afirmação que parece querer colocar os portugueses acima dos europeus, ou os portugueses como os verdadeiros europeus: 

Conquistamos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa! (PESSOA, 2000, p. 197 apud MARTINS, 2017, p. 206).

Nesse trecho é possível perceber que efetivamente há uma congruência entre os dois discursos, no qual o “sentir tudo, de todas as maneiras” (PESSOA, 2014, p. 130) de Campos reflete ou é reflexo do “ser tudo, de todas as maneiras” (PESSOA, 2000, p. 197 apud MARTINS, 2017, p. 206) de Pessoa. E se nesse ponto fica evidente que é possível fazer uma relação entre o eu-coletivo presente em Campos e o heterônimo coletivo presente em Pessoa, pode ser que o verso citado anteriormente – “E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero” (PESSOA, 2014, p. 143) – faça referência ao Quinto Império que, para Pessoa, seria consumado em Portugal, “o império definitivo e universal” (URIBE; SEPÚLVEDA, 2012, p. 145).

Antônio Vieira, em sua obra História do Futuro, a partir de uma profecia bíblica, apresenta uma progressão de quatro impérios – o Babilônico/Assírio, o Medo-Persa, o Grego e o Romano – e argumenta que na sequência seria estabelecido o império Português, o Quinto Império. Pessoa retoma esse mito e faz diversas análises, estabelecendo três planos de interpretação distintos: o material, o intelectual e o espiritual. No plano material, o Quinto Império seria o Europeu, portanto já estaria sendo vivido, logo, já estava consumado. O segundo plano de interpretação, o intelectual, seria o adotado por Pessoa, que estabelece que os quatro impérios são o grego, o romano, o cristão e o europeu. O último, o quinto, seria universal. O último plano é desconsiderado por estar longe de ser consumado, já que para ele o contexto no qual estava inserido corresponderia ao terceiro império, o cristão. Partindo do segundo plano, restaria mostrar como Portugal se encontra nesse sistema. Para tal, Pessoa esboçou diversas definições do que seria o Quinto Império, sem se decidir por uma em especial, mas em todas faz uma relação entre o império futuro e o heterônimo Álvaro de Campos, com o seu “sentir tudo de todas as maneiras” (PESSOA, 2014, p. 130), já que nesse império haveria a reunião de tendências opostas, como a ciência e o misticismo (URIBE; SEPÚLVEDA, 2012). 

Da mesma forma que a criação dos heterônimos pode ser uma resposta às limitações de expressão de um único indivíduo, a construção de um eu-coletivo pode ser uma alternativa às limitações de sensações de um eu individual. No mesmo sentido, o Quinto Império, que possibilitaria a reunião de oposições, seria uma resolução para as divergências nacionais. Então, depois de tudo sentir, esse eu-Portugal, eu complexo, numeroso e universal, ao dizer “E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero” (PESSOA, 2014, p. 143), talvez queira, deseje e espere a consumação do Quinto Império em si, aquele que será também universal, mas, além de tudo, eterno.

A respeito da universalidade presente em Campos, pensa-se logo no cosmopolitismo que a ele é relacionado e, quanto a isso, Martins afirma que esse heterônimo “é o exemplo vivo da sede de cosmopolitismo do modernismo português. Álvaro de Campos é Europa” (2017, p. 125). Contudo, o que é possível perceber é que o peso que Portugal tem em Campos talvez seja indício de que esse cosmopolitismo irradie de um centro e que ele é lusitano, o que pode fazer com que haja uma sutil semelhança entre esse cosmopolitismo e um colonialismo, tal como afirma Bartholomew Ryan (2017). Pode ser que em Campos haja sinais de ambos, já que se é tudo de todas as maneiras, mas se é possível afirmar que Álvaro de Campos é Europa, antes disso ele é Portugal.

Álvaro de Campos, o engenheiro do Navio-Nação

Até aqui assumiu-se que um dos possíveis eus dos poemas de Álvaro de Campos seria um eu-coletivo, oriundo da despersonalização do eu-Campos, que poderia representar um eu-nação ou eu-povo. Esse eu-nação foi então definido como o eu-Portugal, um eu universal. Então é interessante, a partir desse ponto, analisar a ideia de nação que poderia estar refletida nesse eu.

Segundo Anne-Marie Thiesse, em La création des identités nationales: Europe XVIIIe-XXe siècle (2001) em que trata da criação das identidades nacionais europeias, a ideia que se tem de nação atualmente, no sentido político, é moderna e não aparece antes do século XVIII. A origem de uma nação, segundo ela, não corresponde à lenta constituição de seu território através de conquistas ou perdas, mas se dá a partir do momento em que um grupo de indivíduos afirma que ela existe e se propõe a provar essa existência. Segundo a autora, a ideia de nação se inscreve numa revolução ideológica, e se assemelha à ideia de povo presente na filosofia política, o povo que é o único a dar legitimidade ao poder. Porém, segundo ela, enquanto a ideia de povo seria uma abstração, a de nação seria viva. 

Para Thiesse (2001), todo o processo de formação de identidade nacional se constituiu a partir da determinação do patrimônio da nação, seguido da difusão do seu culto. Mas para determinar esse patrimônio não era suficiente a busca do que teria sido herdado, motivo pelo qual se fazia necessário inventar heranças, num processo de fabricação da “alma nacional” (THIESSE, 2001, p. 14, tradução nossa). Esse processo, comum às nações europeias, só se estabelece a partir do momento em que há uma adesão coletiva dessa invenção e isso não se dá de forma espontânea. Sua internalização depende de um processo de difusão e de ensino, no qual as expressões artísticas, como a literatura, têm um grande papel no “resgate das origens” (THIESSE, 2001, p. 21, tradução nossa) e no processo de divulgação.

O pensamento de Thiesse (2001) dialoga com a reflexão de Eduardo Lourenço (2013) sobre os acontecimentos da Revolução Francesa, ocorridos justamente no século XVIII, e que transformaram “a relação do indivíduo e da pátria, que de mera terra paterna se volve nação” (LOURENÇO, 2013, p. 82-83). A partir desse momento, o homem assume a responsabilidade pelo destino nacional, tornando-se, portanto, capaz de modificá-lo Dessa forma, no domínio político, o cidadão traça os rumos a serem trilhados pela nação a partir do voto, por exemplo, e, paralelamente, no domínio cultural, o escritor atua profetizando o destino nacional como um verdadeiro messias. O anúncio desse destino está ligado ao papel que Fernando Pessoa acreditava que o poeta e a poesia tinham, que seria o de “mensageira do mito e mobilizadora do espírito das pessoas, único processo de actuação sobre a transformação da mentalidade portuguesa, da busca de saída do pessimismo inactivo” (ALMEIDA, 1991, p. 215 apud URIBE; SEPÚLVEDA, 2012, p. 158). Nesse ponto, mais do que esperar de fato a consumação do Quinto Império, o importante era o poder transformador que esse mito poderia provocar no povo português.

Porém, o mito em si não traz elementos novos para a imagem que o povo português tem de si, já que por séculos ele foi profetizado como o povo eleito por Deus. Portugal, naquela altura, ocupava praticamente a mesma faixa de terra há oito séculos, se constituindo como um dos estados mais antigos e coerentes da Europa, com relativa constância mesmo diante de sua fragilidade. Isso foi facilmente interpretado como resultado de uma predileção divina e esse pensamento faz parte do imaginário do povo português. Então parece simples assimilar que o povo escolhido por Deus será próspero e eterno e que encabeçará um império. O que muda, ou o que se tenta mudar, é a ideia do destino que antes estava sempre nas mãos de Deus, o que gerava uma espera inoperante, e passaria para as mãos do povo (LOURENÇO, 1999).

Essa inoperância também está presente nos poemas de Álvaro de Campos, sendo chamada muitas vezes de neurastenia, e pode ser exemplificada pelos seguintes versos:

Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil;
Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Glória,
[…]
Sem coragem para ser gente com violência e audácia,
Com a alma como uma galinha presa por uma perna (PESSOA, 2014, p. 92).

Como o eu em Campos é coletivo, sentindo tudo de todas as maneiras, pode ser que aqui o eu-Portugal se coloque no lugar do povo português, dando voz a ele. Ou pode ser simplesmente o eu-nação assumindo os atos do seu povo para si; afinal, quem age pela nação é o povo. A questão é que esse eu não parece estar satisfeito e isso pode ser percebido quando ele diz “Oh magua immensa do mundo, o que falta é agir… Tão decadente, tão decadente, tão decadente…” (PESSOA, 2014, p. 145), trecho em que se pode entender que o eu-Portugal sente mágoa do seu povo por sua inação e por sua consequente decadência. Essa hipótese se relaciona com a ideia pessoana do mito e da poesia como motores de transformação dos portugueses, e se associa com a seguinte afirmação feita por Fernando Pessoa: 

Trabalhemos ao menos – nós, os novos – por perturbar as almas, por desorientar os espíritos. Cultivemos, em nós próprios, a desintegração mental como uma flor de preço. Construamos uma anarquia portuguesa. […] E a nossa missão, a par de ser a mais civilizada e mais moderna, será também a mais moral e a mais patriótica (PESSOA, 2000, p. 110-111 apud MARTINS, 2017, p. 126-127).

Pessoa então mostra ao povo português que a nação é “uma imagem construída, e que pode assumir os rostos que os seus construtores lhe querem dar” (JÚDICE, 1996, p. 327), e que essa construção pode se dar através da poesia. Então, para isso, funda-se o que Vilarouca chama de “um ser da pátria pela poesia” (VILAROUCA, 2018, p. 41) que responde a uma necessidade de afirmação da nação portuguesa. Necessidade que é sentida desde o início do século XIX – quando Portugal começa a discutir sua identidade, e a refletir sobre o que é, foi ou deseja ser (LOURENÇO, 1999) –, mas que teve seu apogeu vivido por Pessoa, nas primeiras décadas do século XX (MARTINS, 2017). Então o projeto nacional pessoano, o de transformação da alma nacional, repercute nos poemas de Álvaro de Campos com o eco do mito de Portugal como o Quinto Império. Para esse heterônimo a nação portuguesa pode ser representada pela imagem de um Navio-Nação, empreendimento do qual ele mesmo é o engenheiro responsável pela construção.

A partida do Navio-Nação

Quando o eu afirma “Mas eu próprio sou o Universo” (PESSOA, 2014, p. 71) e em outro momento diz “Mas o que sou? O trapo que foi bandeira, / As folhas varridas para o canto que foram ramos” (PESSOA, 2014, p. 229), pode-se perceber que a universalidade é intrínseca a ele, mas ainda não está concretizada. É necessário que algo seja feito, que se saia de um estado de inoperância para que esse eu possa se mostrar como verdadeiramente é, já que ele mesmo reconhece que “Vou sendo tudo menos eu” (PESSOA, 2014, p. 253). A partir do momento em que algo for feito, o que existe em potência passaria a existir concretamente, então esse eu clama: “Arre, que o Portugal que se vê é só isto! / Deixem ver o Portugal que não deixam ver! / Deixem que se veja, que esse é que é Portugal!” (PESSOA, 2014, p. 354). Aqui, o “Portugal que se vê” pode ser o próprio povo português que se vê como sendo “só isto!” e que precisa se ver como é de verdade, confirmando a ideia de que a transformação da mente dos portugueses gerará, por sua vez, uma transformação da nação. 

A respeito dessa transformação, relacionada à necessidade de afirmação nacional, Martins afirma que:

Pode-se dizer que Pessoa vive a era do apogeu da afirmação nacionalista […] que vai crescendo ao longo do século XIX e conduz à violência extrema das guerras no século XX. No contexto português, e na sequência dos traumas políticos do Ultimatum e do Regicídio, desde a Geração de 70 até a Renascença Portuguesa de 1910, a ideia de regeneração nacional adquire um tom de urgência que mobiliza todas as correntes ideológicas e atravessa todas as práticas culturais (MARTINS, 2017, p. 137).

Essa ideia de regeneração pode ser representada em Campos pela morte, que é tema recorrente em seus poemas e parece ser entendida numa visão platônica, que a reconhece como meio de chegar à verdadeira vida, como pode ser percebido nos seguintes versos: “Seja com alegria que eu reconheça que a Morte / Vem como um Sol distante na antemanhã do meu novo ser” (PESSOA, 2014, p. 65); “A morte é a vida que veio mascarada” (PESSOA, 2014, p. 169). Morte que se vincula frequentemente à ação de partir, como em: “Talvez partindo regresse. Talvez acabando, chegue” (PESSOA, 2014, p. 124).

A morte, nesse sentido, poderia representar simbolicamente mais que um fim, uma passagem a um outro estado ou uma superação de uma etapa para chegar em outra superior. Em Campos, essa morte poderia ser tanto a do povo português quanto a da imagem que ele tem de si e de Portugal. De mero espectador, o povo português assumiria seu papel protagonista no processo de transformação da nação, tomando uma atitude ativa. Para isso deixaria para trás uma imagem de Portugal, aquela saudosa do passado, para transpor o presente (JÚDICE, 1996), atualizando o futuro onde Portugal irá finalmente se cumprir

Quando se compreende a morte como passagem ao invés de fim, pretende-se não associá-la com a ideia de destruição, mas com a visão platônica de morte, que é a de renascimento. Em Campos não há, por exemplo, uma ideia de destruição do passado, que fica evidente com a “Ode Triunfal” e seu verso “Canto, e canto o presente, e tambem o passado e o futuro” (PESSOA, 2014, p. 48). O interesse parece ser o de promover a transformação do povo português e da visão que ele tem de si a partir da transformação do olhar que se tem do passado, pois a atualização do futuro depende disso. O eu-Portugal parece ansiar por isso, por essa partida que simbolicamente se dará pelo mar. Impacientemente pergunta e assume seu desejo: “Ah, commandante, quanto tarda ainda / A partida do transatlântico? Faz tocar a banda de bordo – / Musicas alegres, banaes, humanas como a vida – / Faz partir, que eu quero partir…” (PESSOA, 2014, p. 173). E parece que essa voz ecoa em Mensagem, ao dizer “É a hora!”.

Considerações Finais

A partir de alguns traços marcantes na poesia de Campos, como o “sentir tudo de todas as maneiras” (PESSOA, 2014, p. 130), a universalidade e a visão platônica da morte, tentou-se estabelecer possíveis identidades para os eus de seus poemas, já que fica evidente que não é possível identificar um eu individual em função do seu caráter múltiplo e coletivo. A partir daí, levantou-se a hipótese de que uma das representações desse eu-coletivo, seria um eu-nação – o eu-Portugal –, que por vezes se coloca sob a voz do povo português.

O caráter universal desse eu-Portugal, de conter em si uma diversidade de elementos e de se dispersar por todos os cantos, se relaciona a um caráter cosmopolita, que poderia, inclusive, fazer crer que esse eu, na verdade, seria um eu-Europa. Porém, o peso que Portugal tem nas vozes dos poemas de Campos permite concluir que esse cosmopolitismo irradia de um centro que é português. A universalidade também estaria relacionada à retomada do mito do Quinto Império, definitivo e universal, que serviria como motor de transformação da mentalidade portuguesa. 

Fernando Pessoa acreditava que o poeta e a poesia tinham um caráter messiânico de anunciar a mensagem que mobilizaria o povo português, mostrando que a imagem da nação é construída. Em Campos a nação poderia ser representada pela imagem do Navio-Nação, da “Ode Marítima”, que seria construído pelas mãos e versos do próprio Álvaro de Campos, o engenheiro naval.

A mobilização do povo português se daria a partir do momento em que ele passasse a olhar a si mesmo e a Portugal com outro olhar, encarando o passado de uma nova forma, superando-o, para poder reformular o futuro, no qual Portugal finalmente consumaria o Quinto Império. Essa sequência de transformações, da mentalidade portuguesa e da consequente mudança na imagem que se tem de Portugal no início do século XX, da passagem de um estado de inoperância para uma atitude ativa, poderia ser simbolicamente representada pela imagem da morte, enquanto passagem necessária para chegar à verdadeira vida. Então, Álvaro de Campos, além de construtor da imagem da nação, é também aquele que vem para apressar a partida do Navio-Nação do cais, rumo ao futuro atualizado para, enfim, fazer cumprir Portugal e para fazer cumprir o projeto de Fernando Pessoa.

Referências

COSTA, Paula Cristina. Sensacionismo. In: MARTINS, Fernando Cabral (coord.). Dicionário de Fernando Pessoa e do modernismo português. São Paulo: Leya, 2010. p. 786-790.

JÚDICE, Nuno. A ideia nacional no período modernista português. Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Lisboa, Edições Colibri, n. 9, p. 323-333, 1996. Disponível em: <https://run.unl.pt/bitstream/10362/6928/1/RFCSH9_323_333.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2018. 

LOURENÇO, Eduardo. Portugal como destino: dramaturgia cultural portuguesa. In: LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da saudade: seguido de Portugal como destino. 2. ed. Lisboa: Gradiva, 1999. p. 7-83.

LOURENÇO, Eduardo. Da literatura como interpretação de Portugal. In: LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade: psicanálise mítica do destino português. Lisboa: Gradiva, 2013, p. 80-117.

MARTINS, Fernando Cabral. Introdução ao estudo de Fernando Pessoa. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2017.

PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. Lisboa: Tinta-da-China, 2014.

RYAN, Bartholomew. Aplicando as expressões de Pessoa “nonregionalism” e “indefiniteness of Soul” ao Cosmopolitismo Radical e à Racialidade Pluritópica. In: [online], Lisboa: Casa Fernando Pessoa, 2017, p. 92-102. Disponível em: <https://run.unl.pt/bitstream/10362/34537/1/selection_31_.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2019.

THIESSE, Anne-Marie. La création des identités nationales: Europe XVIIIe – XIXe siècle. Paris: Éditions du Seuil, 2001.

URIBE, Jorge; SEPÚLVEDA, Pedro. Sebastianismo e Quinto Império: o nacionalismo pessoano à luz de um novo corpus. Pessoa Plural, Bogotá, n. 1, p. 139-162, 2012. Disponível em: <https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/27533/3/PP1_artigo4.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2019.

VILAROUCA, Cláudia Grijó. Poesia como fundamento da pátria em Fernando Pessoa e Heidegger. In: Vitor Cei; Sarah Maria Forte Diogo; Sílvio César dos Santos Alves (Org.). Ética, Estética e Filosofia da Literatura. Rio de Janeiro: ABRALIC, v. 1, p. 38-53, 2018. Disponível em: <http://www.abralic.org.br/downloads/e-books/e-book11.pdf>. Acesso em: 11 fev. 2010.

ZENITH, Ricardo. Campos Triunfal. Revista Estranhar Pessoa. n. 2, p. 13-29, out. 2015. Disponível em: <http://estranharpessoa.com/nmero-2>. Acesso em: 12 jun. 2019.