Entrevista com Demétrio Panarotto

Leandro Scarabelot

Na edição 34 da Revista Mafuá, trazemos uma entrevista com Demétrio Panarotto, músico, compositor, pesquisador, professor e literato brasileiro. Ele possui mestrado e doutorado em Teoria Literária pela UFSC e, atualmente, é professor de Roteiro no curso de Cinema da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL).

Além disso, Demétrio também atua no campo cultural com projetos como a Quinta Maldita e o PIPA (Pela Ilha Palavra Amplificada), um festival de literatura organizado em conjunto com Juliana Bem, e possui duas bandas com seu irmão, Roberto: Repolho e Irmãos Panarotto. Tudo isso e um pouco mais você confere na entrevista abaixo.

 

Mafuá: Demétrio, você é escritor, músico, produtor cultural e, além disso tudo, professor. Poderia nos contar um pouco sobre essas atividades e como elas se relacionam?

Uma atividade é alimento da outra. Não consigo imaginar o espaço artístico sem o acréscimo da leitura teórica e ficcional, do mesmo modo que não consigo imaginar o espaço da sala de aula sem as conexões mínimas entre a teoria e a prática.  Levo para a sala de aula a biblioteca e aquilo que a biblioteca não dá conta: a vivência que tenho com o palco e com a produção cultural. Lembro-me de uma das tantas conversas com o editor, poeta e amigo Cleber Teixeira, durante as gravações do filme “Só Tenho Um Norte” (realizado junto com Alexandre Veras, Julia Studart e Manoel Ricardo de Lima), em que ele dizia com outras palavras algo como “o pulo do gato não está no livro”.  O Cleber sinalizava que o livro te ensina até um determinado ponto, a partir dali é a prática que vai compor esse conhecimento.  Faço essa pergunta com frequência: como ensinar para o aluno aquilo que está no livro sem deixar de falar do “pulo do gato”?  Afinal, não consigo me ver falando sobre escrita literária ou roteiro apenas a partir do espaço traumático da profissão de professor.  O professor usa de uma suposta autoridade para tentar esconder dos alunos as brechas que fazem parte da profissão. Falo da escrita a partir dessa brecha, ou seja, das várias experiências entre o fazer e o ensinar. Considero que o conhecimento está sempre em movimento e isso é absurdamente intenso no campo das artes, das humanas. Eu me movimento com ele (ou ao menos tento) para que as respostas não sejam reproduções que validem a canalhice instituída pelas relações entre a mídia e pelo poder público. Assim, se o fazer artístico alimenta a sala de aula, por outro lado, as leituras para as aulas ajudam a montar a minha relação com a produção cultural. 

Benjamin em vários momentos se refere ao autor como produtor e ao modo como devemos estar sempre atentos às tecnologias que estão por vir. Ou seja, produzir e procurar entender as tecnologias alimenta o espaço artístico da não dependência ou, de outro modo, do faça você mesmo. Essa autonomia é importante ainda mais quando nos propomos a pensar o fazer artístico num país como o Brasil em que a produção cultural está, na maioria das vezes, atrelada a um modelo médio-midiático-mídia-medíocre-mercadológico. 

Mafuá: Em que trabalhos/projetos você está envolvido neste momento?

Demétrio: Então, além do Quinta Maldita e dos projetos com a música que elenco na resposta a seguir, há outras três frentes. A primeira delas é o PIPA (Pela Ilha Palavra Amplificada), um festival de Literatura que organizamos eu e a Juliana Bem. Em 2020, além da realização do festival de modo virtual, organizamos outras ações, entre elas o Conversas Literárias. Este ano, por conta da pandemia que tornou os eventos virtuais, permitiu que dialogássemos com escritores e escritoras do estado de SC (Carlos Henrique Schroeder, Telma Sherer, Paulino Júnior, Isadora Krieger, Gika Voigt, Bruna Morsch, Daniel Rosa dos Santos, Eduardo Sens, Giulia Ciprandi, Patricia Galelli), de outros tantos cantos do Brasil (Katia Borges, Estrela Leminski, Marcelo Martins, Ronald Augusto) e com dois nomes que hoje moram na Europa (Leonardo Tonus e Adelaide Ivánova). Desde já começamos a organizar a terceira edição do festival. A segunda delas são os livros. Sigo trabalhando nos seguintes projetos: Borboletras, de poemas para crianças, com ilustrações da Pati Peccin (falta uma meia dúzia de imagens para podermos dizer que está fechado); A Volta a Ilha em Oitenta Versos, de poemas (numa conversa avançada com a Martelo Casa Editorial, de Goiânia-GO); dois romances, História em Quadrinhos e Navalha, um deles finalizado em 2018 e o outro no final de 2019, que sigo no aguardo de respostas; um livro de contos, A Véia, Folguedos de Éter, em uma parceria com o ilustrador Victor Zanini, livro pronto, diagramado, aguardando resposta também; um outro de poema, Não dá pra carregar nas costas alguém que não quer colo, pela Papel do Mato, Oficina Tipográfica. A terceira frente são os filmes, tenho um filme poema realizado esse ano em parceria com a Lu Tiscoski, montagem do Vitor Carvalho, imagens de um trabalho recente da Flavia Duzzo e leitura do Jonas Martins; e outros sendo trabalhados; 

Mafuá: Poderia nos falar um pouco sobre a banda Repolho e o projeto dos Irmãos Panarotto? Tem previsão para o próximo show (mesmo que seja em forma de live)?

Demétrio: A Banda Repolho surge no sonho de adolescentes do interior do estado de montar uma banda de rock de música autoral, isso final dos anos oitenta, em Chapecó. A banda começa a ensaiar, definitivamente, no primeiro semestre de 1991 e de lá pra cá gravamos demo-tapes, CD’s, um vinil, videoclipes, produzimos os nossos shows e fizemos inúmeras apresentações em bares, casas de shows, festivais, teatros, entrevistas em rádios, programas de TV, enfim, circuitos alternativos da região sul e em alguns espaços da região sudeste também. Estamos preparando para o ano de 2021 o disco em comemoração aos trinta anos da banda com o título ainda provisório: Baile da Saudade. O projeto Irmãos Panarotto, por sua vez, vem pra suprir uma outra demanda. Dá pra dizer que em partes o projeto Irmãos Panarotto é anterior ao da banda Repolho, afinal, brincávamos de fazer música em casa, eu e o Roberto, desde que éramos crianças. Por outro lado, passamos a pensar nele como um projeto a partir das apresentações durante os quase cinco anos em que dividimos juntos a sala de aula do curso de Letras na Unochapecó. Gravamos o nosso primeiro disco em janeiro de 2001, em Porto Alegre, durante o primeiro Fórum Social Mundial, disco produzido pelo Marcelo Birck (que produziu, ainda, entre discos dos Irmãos Panarotto e da Banda Repolho, outros quatro trabalhos). Com esse projeto acabamos de lançar 6 EP’s, sendo que três deles compõem o nosso quarto disco (numa produção minha, do meu irmão e do Thomas Dreher). Dos demais lançados recentemente, dois deles foram produzidos pelo Edu K (um com elementos de funk carioca e outro com uma faixa em italiano e outra em castelhano) e o outro em parceria com a Império da Lã (capitaneada por Carlinhos Carneiro). Em vias de produção para o final do ano de 2020, ainda, a nossa “pec natalina” com mais um disco, uma história em quadrinhos e uns brindes, acessórios.

Mafuá: Seu último livro Cerzindo e cozendo saiu há pouco. Poderia falar um pouco sobre ele? Como foi o processo de produção? Sobre o que se trata?

Demétrio: A obra reúne três outros títulos já esgotados: No Puteiro (2016), Café com Boceta (2017) e Blasfêmia (2018). O livro conta, ainda, com um prefácio do professor e pesquisador Rafael Alonso e sai pela Butecanis Editora Cabocla, de Daniel Rosa dos Santos: Livros Feitos a Facão é o lema da editora. Trata-se de uma tiragem com exemplares devidamente numerados. Para abrilhantar a edição, ainda, foram feitas algumas imagens a partir de bandejas de isopor, uma espécie de xilogravura improvisada (o que dá ao livro um toque especial). Acredito que seja importante registrar que nenhum livro dessa trilogia, nem mesmo o Cerzindo e Cozendo, possui isbn, e vejam que engraçado, mesmo sem o registro na Biblioteca Nacional do Livro, os livros tiveram um poder de circulação considerável, rendendo leituras em espaços públicos aqui no Brasil e na Argentina, além de textos e conferências apresentados em eventos e publicados em revistas acadêmicas aqui no Brasil, em Portugal e na França.

Mafuá: Mudando um pouco de foco, gostaria de perguntar sobre outro de seus projetos. O que é a Quinta Maldita?

Demétrio: É um sarau programa de rádio podcast em que o foco está na oralidade, ou seja, em poemas sendo ditos, lidos, falados, gritados, gaguejados. No momento em que surge (o Quinta Maldita) em parceria com a Desterro Cultural (capitaneada por Marcio Fontoura), a proposta era realizarmos programas editados e ao vivo. Os ao vivos, em dois formatos diferentes: um deles, uma leitura de poemas em um espaço público, com transmissão pela web rádio e com um número pré-determinado de participantes; o outro, um sarau com convidados e microfone aberto (os saraus duram em torno de três a quatro horas). Somando os eventos, já estamos beirando os cem programas, todos eles temáticos. Sempre tenho mais que um tema na manga e as outros surgem e vão fazendo parte dessa lista. Muitas vezes compartilho essas ideias com amigos próximos e procuro identificar quem possa participar. Em relação aos podcasts, o tema é acompanhado por um pequeno texto que chamo de dispositivo de escrita. Depois parto para os convites considerando o próprio estilo dos e das poetas que conheço e tenho contato e conto, ainda, com a ajuda preciosa dos amigos que sugerem outros nomes para compor cada programa. Convido normalmente entre dezesseis e vinte poetas. Quando recebo os áudios, monto um corpo de vozes. Penso em uma narrativa possível. O que permite esse jogo narrativo é a definição do tema. A ideia principal dos programas, ainda, é fugir dos protocolos e dar força para os textos, por conta disso, os créditos dos poemas, na maioria das edições, é dado no texto que acompanha esses registros. Há um outro ponto que adoro nesse percurso que são as parcerias com blogs, sites, saraus, revistas, ou coletivos de poesia. Já fizemos programas em que a curadoria ficou a cargo de Ronald Augusto (A Voz Pública da Poesia, Porto Alegre-RS); Silvana Guimarães (Germina – Revista de Literatua & Arte, Belo-Horizonte-MG); Paulino Junior, que montou três edições (Palavras Revoltas I e II); do escritor Rodrigo Naranjo (que realizou uma leitura de Santiago–CL); Abrasabarca (um coletivo de mulheres de Florianópolis-SC parceiras desde o começo); Matheus Guménin Barreto (Ruído Manifesto – Cuiabá-MT), Deborah Garcia Boeira e Douglas Gomes Dos Santos (Sarau da Tainha, Balneário Camboriú-SC); Alice Souto e Joana Golin (do Sarau Nuvem Colona – Chapecó-SC) José Inácio Vieira de Melo (Poesia na Boca da Noite, de Jequié-BA); além de outras contribuições realizadas pelos amigos Ricardo Rojas Ayrala (Buenos Aires-AR) e Jorge Vicente (InComunidade, Lisboa-PT); e de três saraus realizados em Porto Alegre-RS. 

Mafuá: Quando e como ela surgiu?

Demétrio: O programa teve início em 2017 a partir de uma leitura que fiz do livro Café com Boceta (um dos três livros da trilogia Cerzindo e Cozendo)  na Cervejaria Sambaqui (na época à convite do Paulinho) e acompanhado pelo Osvaldo Pomar, percussionista reconhecido na cena catarinense. Chamei essa leitura de Quinta Maldita, em especial por conta do tema (de um tom político e erotizado) e do horário (a leitura estava marcada para às 23:50 de uma quarta-feira). O Marcio Fontoura filmou a apresentação e me fez a proposta de um programa de web rádio na Desterro Cultural. A partir dali a ideia ganhou corpo. Começamos a montar os programas e aqui preciso sinalizar para a importância do Marcio nesse processo todo, afinal, é ele o responsável pela parte técnica. Ah, os ao vivos seguiram sendo realizados na Sambaqui. Mas antes disso — e sinalizo para os embriões que compõe cada história, afinal, as ideias elas se multiplicam a partir de outras —, havia realizado e/ou me envolvido com atividades de leituras em vários cantos da cidade, do estado e do país. Tinha um projeto (que realizava quando era possível) que se chamava Paisagens Literárias. O projeto consistia na leitura de textos (prosa e poesia) tendo a cidade como pano de fundo e, na maioria das vezes, em espaços públicos. Gosto de sentir a palavra poética ocupando os espaços públicos. Outros livros que lancei, como é o caso de Ares-Condicionados, tiveram inúmeras leituras que se espraiaram pela cidade.

Mafuá: A pandemia afetou esse trabalho? Como?

Demétrio: A pandemia reconfigura o Quinta Maldita no seguinte ponto, tornamos o programa semanal e, por ora, aguardamos o momento em que seja possível retomar os saraus do modo como aconteciam na Cervejaria Sambaqui onde, Guilherme Gouvêa e Filipe Costa sempre acolheram o projeto de braços abertos). Acredito ainda que, por conta de uma outra demanda da vida (mais preso em casa), o Quinta Maldita passou a ter outra visibilidade através dos canais de divulgação no youtube, deezer, spotify, mixcloud e atingir um público que não conhecia a proposta.

Mafuá: Você já tem alguma previsão sobre os temas e as datas das próximas edições?

Demétrio: Estamos trabalhando em programas com temáticas bem variadas. Vou sinalizar para algumas que corre o risco de já terem sido realizadas quando sair essa entrevista. Quinta Maldita Distopia, em parceria com o músico e poeta Everton Luiz Cidade, de São Leopoldo-RS. Quinta Maldita Babel, uma reunião de poemas em ao menos dezoito línguas diversas (em andamento). Quinta Maldita Tic Tac, com a reunião de oito poetas brasileiros lendo oito poetas argentinos e oito argentinos lendo oito poetas brasileiros. Quinta Maldita Ibérico, com poetas portugueses e espanhóis. Mais um com poetas da América Latina (já fizemos outros dois). Quinta Maldita Além Mar, com poetas moçambicanos e angolanos. Quinta Maldita Palhaço. Além de retomar algumas parcerias, como é o caso das já realizadas com Ronald Augusto, Paulino Júnior (Palavras Revoltas), Coletivo Abrasabarca. Segue o link da página do programa: https://www.youtube.com/channel/UC511bNESVYjBN_CeeVBwqmg

Mafuá: Para finalizar, tem mais alguma coisa que você gostaria de falar para nossos(as) leitores(as)?

Demétrio: Deixo pra vocês um poema que ainda não saiu em livro.

 

Cinema

                                                                                                    Demétrio Panarotto

 

traveling

não sei quem dança com a imagem
quando ela trepa com o poema
em uma rua escura
sob a luz mal-assombrada
— do poste —
que pisca e
muda a cena
corpo não

 

zenital

não sei quem aqui já fez amor
escorado em um muro e apoiado
em um corpo sem rosto
mais quente que a noite fria
sob uma neblina densa
líquida em que o gozo
forja balões
sempre impronunciáveis
de uma história em quadrinhos

 

Contra-plongée

não sei quem já esqueceu
a língua úmida
porosa muda
em um umbigo assimétrico
que foi o centro sentido
do tempo
e que no dia seguinte
sentiu vergonha de busca-la
ao precisar controlar os olhos
magnetizados pelo imponderável

 

Plongée

não sei quem já se despiu
e se despediu
tantas vezes tantas
imaginando que seria a última
que não foi e talvez não será
e a cada retorno
um semblante de desespero
diante do apocalipse
provocado pelo corpo
pele pêlo porra

 

câmera na mão

não sei quem
em momentos póstumos
se recorda mais do trâmite
do que do coito
mais do trâmite do que do coito
sem perceber que
não se precisa
montar um teorema
pra explicar a vida
simplesmente
nada mais que
matéria de poesia