Traços e troças, de José Lopes Pereira de Carvalho

Samanta Rosa Maia

Traços e troças

José Lopes Pereira de Carvalho

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O livro da vez cabe na palma da mão. E em certo sentido não traz nada de novo, pois seus poemas podem ser lidos nas edições da “Revista da semana” (RJ), de 1913, disponíveis em versão digital na página online da Biblioteca Nacional. A história de seu autor, José Lopes Pereira de Carvalho, que, na revista, assume o pseudônimo de Juca, também não nos diz, a princípio, muito mais. Conforme nos informa o verso da folha de rosto de Traços e troças, publicou: Matutinas (poesias), de 1911, Enciclopédia jurídica, do mesmo ano, Etiologia e teologia do Direito e A margem dos fatos, ambos de 1912. Além desses, publicou ainda Os membros da Academia Brasileira em 1915, título que sugere alguma proximidade do escritor com o meio literário e suas “instâncias oficiais”. Sabe-se que era bacharel em Direito. De resto, talvez fosse ele o Pereira de Carvalho que integrou a diretoria da Congregação Mariana Masculina da Paróquia de Copacabana, em 1929, que quase foi vítima de uma tragédia na praia de Copacabana, em 1916, na ocasião em que nadava com outros dois amigos, dos quais um veio a falecer, como registra o jornal “A rua” (RJ), e que foi nomeado para o cargo de oficial da contabilidade de guerra, em 1910. Talvez. 

Por que, então, trazer Traços e troças para a Obra Rara da Mafuá? Tentemos argumentar. Ora, esse livrinho condensa em seu tamanho a metáfora do juízo literário mais comum a respeito da literatura satírico-humorística brasileira: uma literatura menor. São vários os estigmas que rondam esse tipo de texto, dissimulados na forma de “critérios” avaliativos/valorativos: sua suposta origem “improvisada”, do que decorre sua relação com a oralidade, o mau gosto na escolha de temas, figuras e vocabulário, e a afinidade com os fatos cotidianos, “do momento”. Sobre este último ponto, destaque-se as acusações de “superficialidade” e de “efemeridade”. Alguns estudiosos defendem, por exemplo, que a demanda de referências contextuais/históricas para leitura desses textos é a responsável por seu caráter perecível, isto é, o “fator graça”, ou o elemento acionador do riso, já não funcionaria mais sem essas referências, fazendo com que o “humorístico” da “literatura humorística” se perdesse com o tempo. Seria essa uma literatura que estaria fadada a morrer? 

A meu ver, este é um falso problema. Nos estudos a respeito da leitura encontramos considerações importantes a respeito do conhecimento prévio e de seu papel na construção do sentido do texto – e isso vale para qualquer texto. Assim, não se justifica o “apequenamento” dessa literatura pela relação – tão forte – que estabelece com o tempo em que foi produzida, ainda que seja verdade os acontecimentos políticos, as fofocas, as tragédias, os fatos inusitados e a moda fossem matérias muito utilizadas nessas composições. 

Quase todo o jornal ou revista do final do século XIX e início do século XX tinha a sua seção humorística, que podia publicar caricaturas, crônicas, contos ou poemas. Segundo Janovitch, que pesquisou, em particular a “narrativa irreverente” da imprensa de São Paulo: “o jornalismo humorístico se alimentava dos conflitos e oscilações da política, assim como de um certo conservadorismo da imprensa, que prezava pelos longos comentários críticos, sisudos e pouco acessíveis para a população em geral” (2006, p. 38). Logo, não podemos ignorar a procedência do texto do nosso livrinho, publicado originalmente em revista, na seção que lhe deu o nome: Traços e troças. Por outro lado, a decisão de publicá-lo no formato livro, como objeto livro, tem um peso significativo para literatura satírico-humorística brasileira: a ânsia de sobrevida. Há que se tomar o cuidado, porém, de não reduzir um fragmento raro da tradição do ridendo castigat mores a, unicamente, um documento histórico. 

Em Traços e troças, portanto, o leitor encontrará tanto os conservadorismos dos costumes, como em “Quem faz o tempo é a moda…”, quanto as inovações e “transgressões” linguísticas, e verá, sobretudo, que não lhe faltam referências políticas (às quais as atuais servem muito bem!) para entender os poemas que versam sobre a política daquela época: “O desfalque no Depósito Público”, “O júri transforma um homicídio em ferimentos leves”, “Apreendem-se contrabandos”, “Um deputado atira uma escarradeira sobre outro”, “’Doutor’ é quem quer”…

Mais desfalque… Mais arame
Que se vai do pobre povo;
Não voltará… nem se clame…
O sistema não é novo.
(José Lopes Pereira de Carvalho)

REFERÊNCIAS

JANOVITCH, Paula Ester. Preso por trocadilho: a imprensa de narrativa irreverente paulistana de 1900 a 1911. São Paulo: Alameda, 2006.

KLEIMAN, Angela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 7ª ed. Campinas: Pontes, 2000.