Ver com a imaginação: a representação iconográfica de Doré e Dalí em Dom Quixote

Eduarda Duarte Pena, Joana Gonçalves Coelho Silva

RESUMO: O presente artigo visa ao estudo do primeiro livro do romance O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote De La Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra, a partir de uma perspectiva intersemiótica, com o intuito de verificar como um texto verbal clássico é complementado pela representação visual, atribuindo a ele diferentes camadas significativas. Analisaremos, assim, algumas imagens de Gustave Doré (1832 – 1883) e Salvador Dalí (1904 – 1989), tomando como aparato teórico alguns autores, tais como Leo H. Hoek (2006), Walter Benjamin (2010) e António Mega Ferreira (2015).

PALAVRAS-CHAVE: Dom Quixote; Análise Intersemiótica; Gustave Doré; Salvador Dalí.

ABSTRACT: This article aims to study the first book of the novel O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote De La Mancha, by Miguel de Cervantes, Saavedra, from an intersemiotic perspective, in order to verify how a classic verbal text is complemented by visual representation, attributing different meaningfuls layers to it. We will analyze, thus, some images of Gustave Doré (1832 – 1883) and Salvador Dalí (1904 – 1989), taking as a theoretical apparatus some authors, such as Leo H. Hoek (2006), Walter Benjamin (2010) and António Mega Ferreira (2015).

KEY-WORDS: Don Quixote; Intersemiotic Analysis; Gustave Doré; Salvador Dalí.

 

Considerações iniciais

Em “A transposição intersemiótica: por uma classificação pragmática”, Leo H. Hoek (2006) apresenta uma classificação das relações possíveis entre texto e imagem, atentando ao fato de que essas relações não dependem da natureza intrínseca do texto ou da imagem, mas da situação de produção e recepção. Logo, o autor pontua três tipos de relações: “a primazia da imagem e a primazia do texto (do ponto de vista da produção) e a apresentação simultânea do texto e da imagem (do ponto de vista da recepção)” (HOEK, 2006, p. 171).

A primazia da imagem ocorre quando há a submissão do texto à imagem e essa relação se manifesta em dois casos. O texto, por exemplo, pode ter por função nomear e identificar a imagem. Há também casos em que a transposição intersemiótica se faz de uma obra de arte a outra; assim, o texto pode comentar a imagem, transpor (poetizar) a imagem pela escrita ou relatar uma imagem, descrevendo uma obra de arte através de um texto narrativo, por exemplo. 

O oposto acontece com a primazia do texto, que implica a transposição do texto à imagem. Mais uma vez, dois casos se apresentam, conforme classificação de Hoek, podendo haver a transposição intersemiótica no interior de uma só obra, como é o caso da ilustração de livros, e a transposição da escrita à imagem, resultando em duas obras diferentes que mantêm um vínculo pela intertextualidade transmedial.

Por fim, quando o texto e a imagem deixam de existir independentemente e entrelaçam-se em um único discurso, há a relação de simultaneidade do texto e da imagem. O discurso dessa relação pode ser mais ou menos estreito, pois “o texto e a imagem podem se combinar para formar um discurso verbal e visual composto, com cada um mantendo sua própria identidade (discurso misto), ou então eles podem se fundir de modo inextricável (discurso sincrético)” (HOEK, 2006, p. 179), como acontece, por exemplo, nas histórias em quadrinhos.

Pensando nessas relações, o presente artigo visa à análise de algumas ilustrações de Gustave Doré (1832 – 1883) e Salvador Dalí (1904 – 1989), produzidas para o primeiro livro do romance O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote De La Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra, com o intuito de verificar como o texto verbal – apesar de estar em primazia – é complementado pela representação visual, que atribui a ele diferentes camadas significativas. Dessa forma, a diferença nessa relação entre texto e imagem está na emancipação da imagem, ou seja, ela se constitui como uma arte independente que, em seu entrelaçamento com o texto, permite a troca de significantes e outros significados. 

Por esse motivo, é possível pensar que a imagem não é mais devedora do texto, libertando-se de sua tirania. Walter Benjamin (2010), em seu célebre texto sobre a tradução, afirma que esta é uma forma e que, para compreendê-la como tal, é necessário retornar ao original, pois nele encontra-se a lei dessa forma, encerrada em sua traduzibilidade. Para o filósofo alemão, determinadas possibilidades significativas contidas nos originais só se manifestam na tradução, sendo ela, portanto, não uma cópia, mas, na verdade, uma outra obra derivada do original. Nessa perspectiva, vê-se que a tradução revela aspectos que antes estavam na sombra:

[…] A relação que o teor interno estabelece com a língua é completamente diversa no original e na tradução. Pois, se no original eles formam certa unidade, como casca e fruto, na tradução, a língua recobre seu teor em amplas pregas, como um manto real. Pois ela alude a uma língua superior a si mesma, permanecendo com isso inadequada a seu próprio teor — poderosa e estranha. […] Cada tradução de uma obra representa, a partir de um determinado período da história da língua e relativamente a determinado aspecto de seu teor, tal período e tal aspecto em todas as outras línguas. A tradução transplanta, portanto, o original para um domínio — ironicamente — mais definitivo da língua, mais definitivo ao menos na medida em que não. (BENJAMIN, 2010, p. 204)

Em outras palavras, graças ao caráter autônomo da tradução, o original se desdobra. A tradução não encobre o original, protegendo-o como um fruto, pelo contrário, ela permite que o original se revele, sob outros prismas e perspectivas. Para Benjamin, portanto, a sobrevivência do original é garantida em sua tradução, ao transformá-lo e renová-lo.   

Nessa perspectiva, entende-se que o mesmo processo ocorre quando Doré e Dalí ilustram Dom Quixote, pois os artistas não estão apenas produzindo uma mera cópia do texto. Ao realizarem uma tradução intersemiótica, passando elementos verbais para um sistema de elementos não verbais, os ilustradores criam algo novo, garantindo, então, uma sobrevida ao romance de Cervantes.

Essas imagens estabelecem uma ligação com o texto que não é mais de dependência, pois elas têm o poder de adicionar outras possibilidades significativas que não estavam presentes verbalmente. Tratando-se de Quixote, por exemplo, vale mencionar que a imagem do cavaleiro da triste figura – sua face esquelética e melancólica – se consolidou no imaginário coletivo em razão da representação iconográfica dos ilustradores, sobretudo, a de Gustave Doré.

Se as ilustrações de Doré e Dalí podem ser pensadas pela perspectiva da sucessividade, ou seja, quando o texto existe antes da imagem, e esta “explica e interpreta um texto pré-existente” (HOEK, 2006, p. 169), a primazia do texto não implica “uma relação mais estreita entre o elemento visual e o elemento verbal” (HOEK, 2006, p. 177-178). 

Assim, a ilustração não tem caráter somente tradutório visando à fidelidade, pois permite a transformação e a renovação do texto. Os elementos (texto e imagem) possuem uma relação, mas também funcionam de forma independente. Será, portanto, sob essa perspectiva que analisaremos algumas ilustrações de Gustave Doré e Salvador Dalí, que representam Dom Quixote e, mais especificamente, seu envolvimento com a leitura. 

Entre o real e a imaginação: as ilustrações de Gustave Doré

Em 1863, o francês Gustave Doré produziu uma coleção de ilustrações para o clássico O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote De La Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra, a qual se tornou uma das mais marcantes representações da obra. É importante ressaltar que, em parte da produção do artista, ressoavam algumas características da estética romântica. Porém, ao mesmo tempo, Doré mostra maior objetividade estando atrelado ao movimento realista, que “estabelecia um paralelismo semântico e estrutural entre imagem e texto” (LINARDI, 2008, p. 4). Em outras palavras, trata-se de uma ilustração que pretende traduzir fielmente o texto, que “é capaz de repetir ou duplicar, por meio de signos pictóricos, o que é expresso linguisticamente no texto de origem” (LUND, 2012, p. 176). 

O objetivo de Doré com suas ilustrações era o de abarcar com precisão “a quase totalidade de informações que o texto fornece na apresentação e contextualização do personagem, com uma precisão documental” (LINARDI, 2008, p. 4). Um grande exemplo disso é a forma como o artista ilustrou o episódio dos moinhos de vento (FIG. 1), que ocorre no capítulo VIII do primeiro livro. Observa-se, assim, como apontado por Fonseca (2015), que Doré não representou os moinhos tal como Dom Quixote os imaginou, ou seja, como gigantes, mas de maneira realista e descritiva.

Figura 1 – Dom Quixote ilustrado por Gustave Doré

Fonte: QBI – Quixote Banco de Imágenes

A técnica de Doré para a ilustração é realista, pois ele se coloca “a serviço do texto e, numa relação dialética, o texto é a moldura do desenho, ao mesmo tempo em que o desenho se estabelece como moldura do texto” (LINARDI, 2008, p. 5). Ao decidir não representar os moinhos de vento como gigantes, o artista leva em consideração a voz do narrador, e não os devaneios do personagem. Nesse caso, o artista mostra-se atrelado ao realismo, buscando representar a realidade do episódio e evidenciando a loucura da imaginação de Dom Quixote. No entanto, mesmo que Doré opte, prioritariamente, por criar imagens que estejam a serviço do texto, há uma bastante emblemática nessa coleção. 

A ilustração a seguir (FIG. 2) não acompanha um capítulo ou episódio específico do texto cervantino, e os elementos que a compõem fazem parte do universo da imaginação – são ícones da imaginação de Dom Quixote. Com isso, diferente de suas outras ilustrações, há uma menor subordinação da imagem em relação ao texto, sendo suscitados diferentes significados e relações. Vê-se, assim, uma ressonância da vertente romântica, que incluía temáticas imaginativas, porém representadas de forma realista.

Figura 2 – Dom Quixote ilustrado por Gustave Doré

Fonte: QBI – Quixote Banco de Imágenes

Nessa ilustração há livros por todo o cenário, no chão, aos pés de D. Quixote, no parapeito da janela, que indicam a vida de leitor do personagem. Além disso, ele próprio aparece sentado, segura um livro em uma das mãos e na outra, uma espada, como que performatizando o que lê, seus romances de cavalaria. Em toda a imagem, observam-se diversos elementos da cavalaria, no chão, há dois pequenos cavaleiros em luta e, atrás da poltrona de D. Quixote, emergem mais cavaleiros, armaduras, escudos, espadas e cavalos. 

Os cavaleiros em posição de luta podem fazer alusão ao capítulo XVIII, do primeiro livro, em que Dom Quixote enxerga dois rebanhos de ovelhas e carneiros como “dois exércitos que se vinham investir e encontrar no meio daquela espaçosa planície” (CERVANTES, 2016, p. 538). No canto inferior esquerdo, ganha destaque uma grande cabeça que, provavelmente, faz referência ao capítulo XXXV do primeiro livro, no qual Dom Quixote luta com odres de vinho tinto ao confundi-los com um gigante: “fiz rolar sua cabeça pelo chão, e foi tanto o sangue que dele saiu, que os regatos corriam pela terra como se fossem de água” (CERVANTES, 2016, p. 538).

Há também a presença de duas mulheres, uma do lado esquerdo do Quixote e outra no canto inferior direito, ambas com trajes volumosos. A do lado esquerdo, por sua proximidade com o personagem, pode ser associada à fantasiosa Dulcineia, “identificada como fantasia sexual permanente de D. Quixote, e essa fantasia vai funcionar, ao longo da novela, simultaneamente como aguilhão que o instiga a agir e como força de bloqueio da sua energia sexual” (FERREIRA, 2015, p. 48). 

Dulcineia, disposta próxima à espada, representa um dos motivos da trajetória de Quixote como cavaleiro, pois ele “coloca nas mãos dela o seu destino, nisso se conformando ao modelo dos romances de cavalaria” (FERREIRA, 2015, p. 45). Todavia, como aponta Auerbach (1976), Dulcineia é o ideal de Dom Quixote, portanto, trata-se de um amor puramente abstrato que não alcança o plano da realidade.

Pode-se afirmar que toda a trajetória de Dom Quixote possui motivos que “afinam-se nesta fórmula: obedecer ao código da cavalaria” (FERREIRA, 2015, p. 42). Sua lógica é pautada, então, no que guardou dos livros que leu em sua própria imaginação, e é com ela que o fidalgo enxergava o mundo, de maneira que a “toda hora e momento tinha ele a fantasia cheia daquelas batalhas, encantamentos, sucessos, desatinos, amores, desafios, que nos livros de cavalaria se contam” (CERVANTES, 2017, p. 234). 

Desse modo, na imagem supracitada (FIG. 2), o artista ilustra, contrariamente à sua tendência realista, aquilo que o personagem vê através de suas lentes, o que o Quixote imagina que a realidade representa, rompendo com o real, ao projetar, “num écran de palavras, […] os episódios acumulados na sua memória” (FERREIRA, 2015, p. 15), aqueles que sonhou durante a leitura dos romances de cavalaria, e são justamente esses devaneios que Doré dá a ver nessa ilustração.

A projeção especular e onírica de Dom Quixote representado por Salvador Dalí

Ao realizar uma análise das ilustrações de Salvador Dalí para o clássico O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote De La Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra, é importante ressaltar que o artista, como integrante do movimento surrealista, não se manteve fixado a episódios específicos do romance, apresentando, assim, uma relação diferente entre texto e imagem. Na edição de 1964, por exemplo, ele “deu liberdade aos editores para que dispusessem as gravuras conforme achassem conveniente. Por isso não existe o tradicional projeto gráfico para uma exata colocação das ilustrações dentro do texto” (LINARDI, 2008, p. 6). Os editores poderiam escolher em qual episódio do livro iriam inserir as imagens e isso faz com que elas deixem de ser ilustrações no sentido convencional, isto é, não são meras explicações ou traduções que “elucida[m] e explica[m] o texto verbal do qual é suporte e confirma o que está sendo expresso em palavras” (LUND, 2012, p. 176).

Nesse sentido, a preocupação de Dalí, ao ilustrar o Quixote, “não era traduzir o texto, mas assegurar a continuidade de seu fantasma, ou a produção de uma espécie de eco distorcido” (LINARDI, 2008, p. 5). Pode-se, portanto, reconhecer as ilustrações do artista como componentes que orientam a leitura do texto literário e, ao mesmo tempo, convidam o leitor a ir além, “uma vez que elas não remetem a nenhum momento específico, mas a todos os momentos” (LINARDI, 2008, p. 5) da obra. Essas imagens vão gerar indagações no leitor, que será “forçado a uma série de perturbações que o convidam ao prazer estético de decodificar um artifício oculto.” (LINARDI, 2008, p. 5). Trata-se, pois, de uma leitura imagética aberta à imaginação, conforme exemplificam as ilustrações a seguir (FIG. 3 e 4).

Figura 3 – Dom Quixote ilustrado por Salvador Dalí

 

Fonte: Ideafixa

No entanto, embora as ilustrações de Dalí apelem para sua independência do texto literário, ao compará-las com cenas do romance de Cervantes, percebe-se elementos que permitem certa identificação com episódios específicos. Na imagem acima (FIG. 3), por exemplo, verifica-se certa correlação com o episódio do rebanho de ovelhas e carneiros, que ocorre no capítulo XVIII. 

Essa é uma das ilustrações de Dalí que faz parte de uma edição de Dom Quixote de 1946. Na parte com mais foco da imagem, no lado esquerdo, encontra-se a figura que, provavelmente, é o personagem principal, Dom Quixote. Ele aparece sem uma parte da cabeça, gerando uma abertura para que se possa ver o que tem dentro dela. Vê-se a aparência de algo feito de madeira e algumas divisórias, como se fossem três prateleiras. 

Na parte superior há um carneiro deitado, referência mais explícita ao episódio do rebanho de ovelhas e carneiros, que ocorre no capítulo XVIII. Na parte inferior, há o sustentáculo de madeira que liga a cabeça do Quixote ao pescoço. Na outra parte há a presença de grãos, que permitem que se pense nas ideias do personagem sendo germinadas em seu interior.

No lado direito da imagem há uma casa com uma chaminé. Desta sai uma espécie de fumaça; imagem, no entanto, ambígua, pois, em parte do desenho, ela passa a ser uma pilastra, gerando uma espécie de continuação da construção, o que, presumivelmente, faz parte do imaginário do Quixote e não do ambiente real. As características dessa parte imaginária da construção são mais elaboradas, aparentando uma edificação mais valorosa e nobre, o que coincide com a descrição de D. Quixote no início do capítulo já citado:

[…] – Agora acabo de entender, meu bom Sancho, que aquele castelo, ou estalagem, era sem dúvida encantado, pois aqueles que tão atrozmente tomaram passatempo contigo, que outra coisa podiam ser senão fantasmas e gente do outro mundo? (CERVANTES, 2017, p. 232).

Na parte superior da imagem, veem-se três figuras que parecem ter cabelos branco e cinza. Uma usa algum tipo de vestimenta, as outras, aparentemente, estão nuas. Duas delas aparecem montadas em seus cavalos e todas portam algum tipo de artefato para luta, como espadas e escudos, trazendo as características intrínsecas à cavalaria. Por se encontrarem no céu, assemelham-se a anjos. No lado oposto, no esquerdo, aparece uma espécie de espelho das figuras, como se fosse só o esboço delas, mesclando-se às nuvens. Abaixo de cada uma, há vários animais e, em meio a eles, de cada lado, há figuras humanas que demonstram gestualmente ir de encontro uma à outra. Tais aspectos remetem, mais uma vez, a uma descrição do capítulo:

Nesses colóquios andavam D. Quixote e seu escudeiro, quando viu D. Quixote que pela estrada que seguiam vinha a eles uma grande e espessa nuvem de poeira; e em vendo-a, virou-se para Sancho e lhe disse:

– Este é o dia, oh Sancho?, em que se verá o bem que a minha sorte me tem reservado; este é o dia, digo, em que se mostrará, como em nenhum outro, o valor do meu braço, e em que hei de fazer obras que ficarão estritas no livro da fama por todos os vindouros séculos. Vês aquela poeira que ali se levanta, Sancho? Pois toda ela está coalhada de um copiosíssimo exército que de diversas e inumeráveis gentes por ali vem marchando.

– Por essa conta, devem de ser dois – disse Sancho –, pois desta parte contrária se levanta outra semelhante poeira.

Voltou-se D. Quixote a olhá-la e viu que era verdade e, alegrando-se sobremaneira, pensou sem dúvida alguma que eram dois exércitos que se vinham investir e encontrar no meio daquela espaçosa planície. […] E a poeira que tinha visto era levantada por duas grandes manadas de ovelhas e carneiros que por aquele mesmo caminho de duas diferentes partes vinham. (CERVANTES, 2017, p. 234).

Dialogando com essa passagem, Dalí elabora dois planos para a imagem: enquanto a parte inferior é mais fiel ao que acontecia na realidade, a superior representa o imaginário do Quixote. Isso também revela características do projeto surrealista do qual o artista fez parte. A vanguarda “foi por excelência a corrente artística moderna da representação do irracional e do subconsciente” (ANDRADE; HENRIQUES, 2009, p. 27), nela era de extrema importância “a experiência onírica, na qual coisas que se afiguram distintas e não-relacionadas para a consciência revelam-se interligadas por relações tanto mais sólidas quanto mais ilógicas e incriticáveis” (ARGAN, 2016, p. 360). 

Vê-se, pois, a atribuição de certa esfera onírica à obra a partir de alguns traços da ilustração, como a própria construção desses dois planos. Assim, a passagem do real para o imaginário do Quixote atinge densidade, e a imaginação torna-se cada vez mais evidente, tomando sempre o maior destaque nas ilustrações de Dalí, como se percebe nesta imagem.

Figura 4 – Dom Quixote ilustrado por Salvador Dalí

 

Fonte: Ideafixa

Nessa ilustração (FIG. 4) da mesma edição, no canto direito, percebe-se a figura de um homem “de compleição rija, seco de carnes, enxuto de rosto” (CERVANTES, 2016, p. 57). Tal representação concerne ao personagem Alonso Quijano, que se encontra sentado em uma pedra ao lado de Sancho Pança. O fidalgo aparece aos trapos, trajado em uma espécie de camisola azul e com apenas um braço armado, o qual permanece erguido a apontar para uma imagem que, literalmente, sai de sua cabeça. Logo, em contraposição, a figura de um outro homem é projetada através da imaginação de Alonso Quijano. 

No canto esquerdo da ilustração, vê-se um indivíduo de aparência elegante e sofisticada, trajado em pouco tecido e utilizando um adorno sobre a cabeça. Em suas mãos, há uma espada e uma grotesca cabeça. De acordo com Célia Flores (2007), no primeiro capítulo do Quixote, Alonso Quijano aparece como um escritor planejando sua história e, baseando-se em modelos reais, inicia a criação de seus personagens. O modelo real de Dom Quixote é o próprio autor do romance que será vivido, Alonso Quijano: “Dom Quixote é uma projeção de Alonso Quijano” (FLORES, 2007, p. 38).

Uma possível interpretação seria que a imagem desse outro homem corresponderia ao Dom Quixote idealizado por Alonso Quijano – um engenhoso fidalgo, armado cavaleiro andante, com seu elmo de Mambrino e incontáveis façanhas. Dom Quixote, “de facto, relê a realidade de acordo com a letra dos livros que carrega dentro de si” (FERREIRA, 2015, p. 15). À vista disso, o homem localizado à direita seria Quijano e aquele que sai de sua cabeça, Quixote. Quijano é a versão do homem não leitor, enquanto Quixote é sua versão após adentrar no mundo dos livros e da imaginação, pois “encheu-se-lhe a fantasia de tudo aquilo que lia nos livros, tanto de encantamentos como de contendas, batalhas, desafios, ferimentos, galanterias, amores, borrascas e disparates impossíveis” (CERVANTES, 2016, p. 59).

Se a imagem de Dalí evidencia sua independência do texto ao elucidar o duplo estabelecido entre Quijano (versão do personagem condizente com a realidade transcrita por Cervantes) e Quixote (sua versão imaginária e, portanto, heroica), há também, nos elementos apresentados na imagem, referências ao capítulo XXXV do primeiro livro. Neste, Dom Quixote trava uma batalha com odres de vinho tinto ao confundi-los com o descomunal gigante Pandafilando da Fosca Vista, que tanto afligia o rei e pai de Micomicona, legítima herdeira do reino Micomicão. A princesa Micomicona é, na verdade, Doroteia, personagem que se junta ao padre e ao barbeiro com o intento de enganar Dom Quixote e levá-lo de volta para La Mancha:

[…] acharam Dom Quixote no mais estranho traje do mundo. Estava em camisão, o qual não era tão comprido que por diante lhe cobrisse de todo as coxas, e era por trás seis dedos mais curta; as pernas eram muito compridas e finas, peludas e nada limpas; tinha na cabeça um gorro vermelho, sebento, que era do estalajadeiro; no braço esquerdo tinha enrolada a manta da cama, da qual Sancho tinha ojeriza, e ele sabia bem o porquê, e na direita, desembainhada a espada, com a qual dava cutiladas a torto e a direito, dizendo palavras como se realmente estivesse lutando com algum gigante. E o melhor da história é que não estava de olhos abertos, porque estava dormindo e sonhando-se em batalha com o gigante: tão intensa foi a imaginação da aventura que ia levar a termo, que o fez sonhar que já chegara ao reino Micomicão e que já estava lidando com seu inimigo; e tinha dado tantas cutiladas nos odres, imaginando dá-las no gigante, que todo o aposento estava cheio de vinho. (CERVANTES, 2016, p. 512).

Embora as ilustrações de Dalí estejam repletas de elementos que remetam a episódios específicos e, em razão disso, sejam capazes de orientar a leitura do texto literário, o artista não se limita a ele, indo além das palavras escritas por Cervantes. Dessa forma, Dalí, portanto, vê também com sua própria imaginação as cenas narradas pelo escritor espanhol. 

Ao ilustrar Alonso Quijano, a versão do homem não leitor, em contraste com Dom Quixote, sua versão idealizada após se engolfar no mundo da leitura, Dalí coloca em evidência toda a imaginação do personagem, que advém da leitura dos livros de cavalaria. Depois de muito ler, a imaginação do personagem é despertada, fazendo com que este deseje se tornar um cavaleiro andante, com suas armas e seu cavalo, à procura de aventuras: “e se lhe assentou de tal maneira na imaginação que era verdade toda aquela máquina daquelas soadas sonhadas invenções que lia, que para ele não havia no mundo história mais certa” (CERVANTES, 2016, p. 59). Quijano, enquanto leitor e refém de sua imaginação, se transforma em Quixote.

Além disso, há outros elementos presentes na ilustração, como as nuvens, as iluminações e o uso das cores azul e amarelo, que revelam um lugar de sonhos e devaneios. As nuvens e o azul reforçam a imagem de um sujeito que vive imerso em sua imaginação – que “anda nas nuvens”. Tais elementos remetem ao céu, mostrando, mais uma vez, esse estado onírico de Dom Quixote. As iluminações e o amarelo aludem às ideias do personagem, que são retiradas de suas incansáveis leituras. Portanto, o artista representa tanto a situação relatada na narrativa de Cervantes, quanto aquilo que o personagem vivenciava em sua imaginação.

Salvador Dalí compreende toda a obra cervantina, para, assim, ultrapassá-la, ambientando o leitor no imaginário em que vivia Dom Quixote: “a questão não é simplesmente visualizar o Dom Quixote, mas recriá-lo poeticamente na intersecção entre texto e imagem. É um ir além da pura e simples representação” (LINARDI, 2008, p. 9).

Considerações finais

Vê-se que há grandes diferenças entre Gustave Doré e Salvador Dalí, porém, a presente análise também revela algumas aproximações. Ambas as ilustrações investigadas possuem elementos criadores de sentido. Doré, que está atrelado ao movimento realista, com suas obras, procura traduzir fielmente o romance e ilustra com exatidão os episódios da obra de Cervantes, colocando as imagens a serviço do texto. Tal característica está presente na ilustração do episódio dos moinhos de vento (FIG. 1), em que o artista representa, de fato, moinhos, e não gigantes, como imaginou Dom Quixote. 

Já a ilustração selecionada para análise (FIG. 2), apesar de rememorar diversas aventuras de Dom Quixote, não se refere a um episódio específico. Nesse caso, Doré ilustra aquilo que Dom Quixote vê através de sua imaginação, deixando de lado suas tendências realistas. Ao evocar elementos do imaginário do personagem, o artista constrói a imagem do Quixote leitor, algo que, no âmbito linguístico, não é descrito em nenhuma passagem da obra cervantina. Sabe-se que o personagem era um grande leitor de romances de cavalaria, entretanto, no texto, não há um momento em que o personagem esteja realizando o ato de leitura. Portanto, a ilustração de Doré se desprende do texto, fazendo surgir outros significados.

Dalí, por sua vez, vinculado ao movimento surrealista, procura introduzir em suas ilustrações elementos que assegurem a continuidade do texto, permitindo a renovação de seus significados. À vista disso, o artista não se mantém fixado a episódios específicos do romance de Cervantes. Trata-se, pois, de imagens que conduzem a leitura do texto e, ao mesmo tempo, o ultrapassam. Nas ilustrações analisadas (FIG. 3 e FIG. 4), além de representar a narrativa cervantina, Dalí evidencia as façanhas que Dom Quixote experimentava em sua imaginação, a qual é fruto de suas incansáveis leituras de cavalaria. 

Com isso, observa-se que as ilustrações dos dois artistas, apesar de remeterem a episódios específicos, como os citados nesta análise, também dispõem de elementos que não traduzem fielmente a parte linguística da obra, ou seja, as figuras são compostas de forma a manter a criação de outras interpretações. Nesse sentido, independentemente da primazia do texto, as imagens de Doré e Dalí se emancipam, apontando “outros caminhos além da proposta tradicional de aproximação de um texto literário com uma proposta que não exclui a antiga, mas que acrescenta a ela uma nova possibilidade” (LINARDI, 2008, p. 9).

Referências

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