O nome vermelho de Yosano Akiko: uma contraleitura da influência ocidental

Herick Martins Schaiblich

RESUMO: Com a finalidade de confrontar a ideia segundo a qual as manifestações literárias mais potentes do Oriente, geradas a partir do século XX, são devedoras diretas e irrevogáveis da influência modernizadora do Ocidente, este artigo se debruça sobre a obra poética da poeta japonesa Yosano Akiko e as forças que a mobilizavam. Através de uma contextualização histórica que situa a condição social, política e cultural do Japão à época em que a autora foi publicada e aclamada (segunda metade do século XX), este artigo tenta desenvolver a ideia de que o teor erótico, feminista e transgressivo de sua poética não pode ser lido como mero produto da influência ocidental.

PALAVRAS-CHAVE: alteridade; mar; Yosano Akiko; poesia japonesa; tanka.

ABSTRACT: In order to confront the idea that the most powerful Eastern literary manifestation produced since the 20th century are direct and irrevocable debtors of the Western modernizing influence, this article turns itself towards the poetic work of the Japanese poet Yosano Akiko and the forces that act underneath it. Through a historical contextualization that situates the social, political and cultural condition of Japan by the time the author was published and acclaimed (second half of the 20th century), this article tries to develop the idea that the erotic, feminist and transgressive content of her poetic work cannot be seen as a mere product western influence.

KEYWORDS: alterity; sea; Yosano Akiko; Japanese poetry; tanka.

 

umi e 外 soto são dois kanjis da língua japonesa que, combinados, formam um signo peculiar. O primeiro designa o mar; o outro, um tanto mais abstrato, indica uma noção de exterioridade, designa o que está por fora. A associação literal destes dois ideogramas, 海外, de leitura kaigai, gera um dos termos oferecidos pelo japonês para se referir a isto que, em português, traduz-se por “estrangeiro”. Uma tradução separada dos kanjis, no entanto, tem a vantagem de produzir uma perspectiva acerca de um dos modos de definir o estrangeiro para o Japão. Umi, o mar, situa uma localidade; soto, seu exterior. Fora do mar, portanto, é talvez um modo de definir o lugar do estrangeiro para o Japão. Ou melhor, fora do mar é a expressão pela qual o japonês localizou, ao longo da sua história, os universos estrangeiros. O argumento é inclusive bastante visual: situado num arquipélago, o país possui uma delineação de fronteiras marcada por delimitações físico-geográficas muito evidentes. Nesse sentido, o oportuno significante 海外 encarna de modo nada abstrato o que seria esse outro, estranho, diante do Japão. Partindo da concepção deste kanji, não é difícil perceber que o mar assume um caráter significativo no imaginário de quem integra o universo nipônico. O mar é tanto o espaço que deve ser desafiado para transladar-se, num movimento de deslocar-se de si para chegar ao outro, quanto o espaço que se projeta como a defesa natural máxima, quase bélica, isolando-o da aproximação alheia.

Esse modo de estabelecimento de fronteiras é visto pelo crítico Kato Shuichi  não apenas no nível marítimo, mas como uma atitude cultural que demarca a formação do Japão enquanto nação unificada. Em seu livro Tempo e Espaço na Cultura Japonesa (2012), síntese e epílogo de todo o seu trajeto como estudioso acadêmico, Kato resgata a formação do Japão, analisando principalmente como foi se definindo, historicamente, a concepção de tempo e espaço que vigora nesse país. Sobretudo, é uma forte consciência das fronteiras espaciais, das noções de “interno” e “externo” e da percepção do que é homogêneo ou não a um grupo, que Kato percebe acompanhar a construção da sociedade japonesa – demarcando, inclusive, com bastante precisão, os momentos em que o país mais manteve suas fronteiras abertas às importações e exportações ou, ao contrário, quando preponderava a consideração de sua autossuficiência, fechando-as rigorosamente.

Trata-se de um movimento político cuja maleabilidade histórica se reveza entre abertura e fechamento para com o outro, movimento elementar para pensar a própria organização interna do país. É a partir da visualização dessa dinâmica que se passa a perceber as manifestações culturais no nível das suas particularidades embrionárias e dos seus encontros com outras culturas, das quais ela se alimenta. No final de seu livro, Kato esboça uma síntese simplificada desses movimentos, até desembocar na realidade moderna da atuação imperialista estadunidense:

Antes do século IX, foi imprescindível importar a escrita e o budismo da China e da península coreana. Quando não se sentiu mais essa necessidade, a política japonesa do final do século IX encerrou as expedições japonesas à China Tang e Sui. Em meados do século XIX, havia a necessidade de introduzir a “moderna” legislação da Europa e dos Estados Unidos, as técnicas militares e o capitalismo. Tão logo deixaram de ser necessidades, tornaram-se dispensáveis, e, depois da Guerra Russo-Japonesa, o Grande Império Japonês voltou-se para o expansionismo […] Em resumo, quando o Japão vê-se em condições de acentuadas diferenças culturais em relação aos países estrangeiros, abre-se, introduz a cultura diferente (em relação à China Antiga); no período seguinte, isola-se em maior ou menor grau; e, enquanto assimila a cultura introduzida, produz uma cultura original (períodos Heian e Tokugawa). Em relação às extremas diferenças nas relações de poder internacional, o Japão visou alcançar o modelo apresentado pelo outro (a Europa e os Estados Unidos), e cumpriu num curto período de tempo esse objetivo (da Renovação Meiji até a Guerra Russo-Japonesa), pelo menos no que se refere às forças armadas. (KATO, 2012, p. 232)

Estão entregues os termos para introduzir-nos à história moderna deste país: a Era Tokugawa, que vai de 1603 a 1867, compreende o período de isolamento mais ferrenho, beirando mesmo a uma atitude de violenta hostilidade para com outras culturas que se aproximavam, tal como é o caso relatado das comunidades cristãs que, à época, foram completamente rechaçadas e impedidas de integrarem o Japão. O fim da Era Tokugawa, no entanto, marca uma fase de grandes reviravoltas, porque o país se depara com um universo exterior em plena comunicação e em processo de “modernização”. É neste instante que a Renovação Meiji entra: é uma atitude consciente do Japão diante desse novo mundo que ele vê mover-se perigosamente a sua frente. Segundo Kato, esses dois séculos e meio que antecedem o início da Era Meiji foram marcados por um isolamento tão profundo que, ao final do século XIX, a população japonesa, de fato – exceto por alguns poucos intelectuais – não tinha a menor noção das diferenças tecnológicas desenvolvidas pelas forças centrais do Ocidente. 

Nesse sentido, o início da Era Meiji, que compreende 1868 a 1912, tem por caráter a ativação, na sociedade japonesa, de um intenso processo de pesquisa e atualização do seu conhecimento e postura em relação às potências que começavam a demarcar seu poder no mundo. Muito diferente do que ocorre posteriormente com o Japão quando os Estados Unidos, ao finalizar a Segunda Guerra Mundial com as bombas atômicas, ocupam o país e instauram um agressivo processo de “ocidentalização”. O que ocorre nesta preparação para o início de século XX é a atuação consciente de uma sociedade cuja forte estrutura interna permitiu assimilar com cautela este mundo moderno que se desvelava diante dela. É o próprio movimento do mar se convertendo, agora, em espaço de avanço em direção ao seu “exterior”, ao alheio.

É neste contexto que surge Yosano Akiko. Nascida em Osaka, em 1878 (exatamente dez anos após o início da Era Meiji e da abertura de fronteiras), desde cedo a poeta demonstrou interesse por leitura e, ainda jovem, extravasou para a escrita, integrando revistas literárias, associações de poetas, etc. Embora fosse nova, sua produção poética se destacou em meio aos círculos que participava. Essa proeminência consistia num motivo duplo: era o encontro da qualidade poética com sua capacidade de renovar uma atitude literária enrijecida pela tradição. Essa renovação não é, como talvez possa se pensar, a simples voz feminina ganhando eminência no âmbito literário. Embora o Japão não deixe de ser efetivamente uma sociedade patriarcal, essa estrutura dominante afeta o corpo e a forma como a mulher se manifesta de modos distintos de como ocorre no Ocidente; pensando em termos de produção ficcional, por exemplo, é muito evidente que em dados momentos históricos o hábito da escrita era muito mais cultivado por mulheres do que por homens. Resultado disso é a existência de obras como Genji Monogatari, escrito no início do século IX pela dama Murasaki Shikibu, considerado por eruditos como Harold Bloom (ANO) o primeiro romance literário (classificação que é, todavia, bastante discutível). Não é, portanto, a simples posição de mulher poeta que faz Akiko corresponder às expectativas de “modernização” do início da Era Meiji. O impulso de restauração da sua poética baseia-se na forma como, em contato com os universos culturais que lhe chegavam por meio da fronteira plenamente aberta do Japão, Akiko é atingida pela verve feminista e a relê no seu próprio contexto:

Chegou o dia em que as montanhas se movem
Falo, mas ninguém acredita em mim.
Por um tempo as montanhas ficaram adormecidas.
Mas, antigamente, elas dançavam com o fogo.
Não importa se acreditam nisso, meus amigos,
mas sim que acreditem no seguinte:
todas as mulheres que dormiam
agora acordaram e
se movem. (YOSANO, 2007, p. 15)

O tom inflamado e a consciência madura do que a força de um enunciado como esse produziria dão um vislumbre introdutório do jogo que o projeto poético da escritora estabelece com a sociedade tradicional japonesa e a suposta influência do ocidente. Em sua obra de maior repercussão, “Midaregami” (“Descabelados” em português), publicada em 1901, ao optar por reunir um livro apenas com tankas, a forma lírica mais tradicional e primária do Japão, Akiko Yosano, consciente ou inconscientemente, produz estalos sonoros. Donatella Natili, em apresentação à sua tradução da obra, escreve o seguinte sobre seu significado e repercussão:

O título Mideragami, composto de dois ideogramas 乱れ, que correspondem a “desordem, confuso”, e de 髪, que remete a “cabelos”, refere-se ao cabelo feminino, mas não deve ser lido como uma aparência antiestética ou desarmada da mulher. […] No Japão da época pré-moderna […], uma mulher com a cabeleira levemente em desordem evocava uma imagem particularmente erótica. Quando lemos as poesias de Akiko, portanto, temos de ter em mente o fato de que antigamente as mulheres eram orgulhosas dos seus longos cabelos pretos e faziam de tudo para mantê-los ordenados. Ser vista com os cabelos soltos era considerado vergonhoso, uma vez que uma das virtudes femininas era ter cabelos cuidadosamente limpos. Da mesma forma, as mulheres com as cabeças desarmadas eram consideradas imorais e lascivas. (NATILI, 2007, p. 12)

É com esse arcabouço imaginário em mente, portanto, que Akiko começa a construir seus tankas com uma dicção erótica inédita no contexto dessa forma poética. O movimento é tanto mais ressonante na medida em que, estabelecendo uma conexão com a sensibilidade da tradição de que partilha, constrói um elo, um ponto de encontro entre o que compõe seu universo nativo e aquilo que permite desestabilizá-lo. É por isso que a repercussão de sua poesia se alastra tão fortemente entre o povo japonês: optando pela linguagem do plenamente reconhecível, seu erotismo brota do chão com o qual partilha e de onde se alimentou toda sua sensibilidade estética, como denota o tanka:

ele não volta
no fim     da primavera
só     a escuridão
sobre o koto     cabelos
os meus     descabelados
(YOSANO, 2007, p. 93)

O koto é um instrumento musical japonês que, tradicionalmente associado a práticas de flertes, de aproximação entre amantes, surge aqui com o lugar de um derramamento, um desvairar. É sobre o koto que o corpo da personagem se alucina, nega veemente qualquer obrigação de compostura, e produz por isso mesmo esse efeito sugestivamente obsceno. A dicção erótica dos tankas de Yosano Akiko, prosseguindo nesse sentido, comporta e faz resplandecer uma gama de outros elementos tradicionais da lírica japonesa. Uma das marcas mais constantes dessa atitude é encontrada na proliferação de cores sugestivas sinalizando um processo de desabrochar sexual, que vai sutilmente elaborando um processo de transformação da experiência sexual feminina:

ouça o poema
como negar o carmim
da flor do campo?
delícias     a    menina
pecar    na primavera
(YOSANO, 2007, p. 53)

mamilos duros
revelam-se os mistérios
tão docemente
uma flor     desabrocha
vem tingida de carmim
(YOSANO, 2007, p. 63)

vermelho     o nome
das flores     não conhece
vai     pelo atalho
a menina    depressa
sob a sua sombrinha
(YOSANO, 2007, p. 81)

Como mostram os três tankas selecionados em “Midaregami”, na repetição da alegoria da flor que descobre-se vermelha ao desabrochar, persiste esse movimento da mulher percebendo na manifestação da sua sexualidade a atribuição social de um caráter pecaminoso que, agora visto por um viés sensível e corpóreo, e não moral, ela trata de ressignificar imediatamente. Nessa escrita um tanto quanto lacunar, que não tem as arestas fechadas por conectivos ou termos que as relacione comparativamente, a imagem da flor no campo primaveril e da menina descobrindo o prazer do seu corpo não só parecem se confundir, mas, mais profundamente, soam como se fossem uma coisa só. A imbricação da subjetividade humana no elemento da natureza beira a um encontro perfeito.

No segundo tanka, revela-se um ponto auge desse corpo lascivo que se desenha no projeto erótico da escrita de Yosano. É o uso pontual, aliás, desse único termo para se referir a uma parte íntima e sensível do corpo, o mamilo, que faz aflorar uma série de explosões, tanto no interior do texto, com uma insinuação ao mesmo tempo sutil e tensa, por evocar esse desenrolar tórrido do prazer no corpo desnudo ao toque do amante, quanto no contexto em que foi escrito, por termos desse nível serem não só tabu, mas inconcebíveis na composição de um tanka.

O último, o mais acanhado dos tankas selecionados, mostra mesmo uma garota em vias de começar a desvendar o erotismo. Ainda num estado de flerte com esse universo prestes a rebentar, a menina se oculta, temerosa, mas seu nome vermelho é uma dádiva que, inescapável, logo se desvelará.

Para concluir, vale dizer que não importa tanto que Yosano Akiko de fato tenha se autodeclarado feminista, em consonância com a ebulição que o movimento deflagrava no Ocidente. A veia pulsante que a conecta efetivamente com a expectativa crítica feminista se dá mesmo por meio de uma afecção íntima, corporal; o que Akiko captava vindo do “exterior”, do que provinha da Europa como uma face da “modernização”, mobilizava, no ato mesmo da tradução, uma série de deslocamentos no interior do seu universo nativo, afetando-a intimamente. Sua poesia é testemunho disso. Não se trata, portanto, de perceber uma influência, da manutenção de uma existência que se faz valer pela vontade de uma entidade superior sobre outra inferior, mas de uma espécie de cadeia perceptiva que, uma vez transladadas as fronteiras, se manifesta como pura contaminação corporal. Há uma narrativa marginal, inclusive, uma daquelas ficções subterrâneas cuja meada só se torna rastreável a partir da investigação por sinais, ao modo dos paradigmas indiciários de Carlo Ginzburg (1989), que percebe na constituição da consciência feminista na Europa um longo processo de germinação pelo contato com outros povos. Que dizer – que especular, mais precisamente – de um relato como o redigido pelo jesuíta Luís Fróis, por volta de 1585, em que, ao comparar costumes europeus e japoneses, ele constata contrastes estarrecedores:

Na Europa, as mulheres não saem de casa sem a permissão do marido. As mulheres japonesas, sem avisar o marido, vão livremente aonde desejarem. Na Europa, não fica bem as mulheres beberem vinho. No Japão, as mulheres servem-se de bebidas alcoólicas com frequência e, em dias de festa, chegam a se embriagar. (FRÓIS apud NAKAGAWA, 2008, p. 66)

O antropólogo Hisayasu Nakagawa (ANO) descreve como muito lúcida a visão do missionário lusitano. Mas, independente disso, a questão que se ergue é: Que especular acerca da recepção de um relato como esse na Europa? Entre uma imprecisão documental e uma ficção antropológica, persistem fortes no Ocidente todos os germes de seus diversos bárbaros, do qual o relato de Fróis é um exemplo apenas.

REFERÊNCIAS:

BLOOM, Harold (org). The Tale of Genji. Bloom’s modern critical interpretations. Philadelphia: Chelsea House Publishers, 2004.

GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad. Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

GREINER, Christine. Leituras do Corpo no Japão e suas diásporas cognitivas. São Paulo: n-1 Edições, 2015.

KATO, Shūichi. Tempo e Espaço na Cultura Japonesa. Trad. Neide Nagae e Fernando Chamas. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.

KAUPATEZ, Diogo. Akiko Yosano (1878 – 1942). Disponível em: http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2014/05/akiko-yosano-1878-1942.html  Acesso em: 22/01/2017.

NAKAGAWA, Hisayasu. Introdução à cultura japonesa: ensaio de antropologia recíproca. Trad. Estela dos Santos Abreu. São Paulo: Martins, 2008.

NATILI, Donatella. Apresentação. In: YOSANO, Akiko. Descabelados. Trad. Donatella Natili. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007.

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. Trad. Oiara Bonilla. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

YOSANO, Akiko. Descabelados. Trad. Donatella Natili. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007.