Dália

Agda Beatriz de Souza

Dália demorou-se em frente ao espelho. Observava atenta a nudez volumosa, marrom. Não conseguia lembrar se alguma vez em sua vida havia conseguido enxergar algo para além de imperfeições disformes. Desde cedo, como se negada da apreciação do que era, aprendeu que o belo podia estar apenas em certos moldes. Dália estava fora de qualquer proporção. Grande demais. Negra demais. Nunca boa demais.

 Durante os anos, os Outros haviam tentado de tudo para esconder ou amenizar os seus traços. Calor para domar os cabelos, silenciá-los do encrespamento que rememorava os seus ancestrais. Que permanecessem presos os rebeldes! Sombra para o desbotar de uma cor marrom que escurecia e brilhava ao toque quente do sol. 

As ideias eram muitas e inesgotáveis. Diziam-na para que pressionasse o nariz, a boca, a cintura, os seios e estes, quem sabe, se tornariam menores, mais finos e agradáveis de se olhar. Quanto a voz grave, não havia receita. Se limitavam a dizer que a menina falava e ria alto demais. Soava como um homem.

Alguns, mais afoitos, tomavam a liberdade de fazer predições do futuro inescapável de Dália: quando fosse mais velha, não passaria por nenhuma porta. Não seria desejada ou amada por um homem sequer. Assim, os Outros haviam posto sobre os olhos da pequena dália uma espécie de lente grossa e turva.

Com o passar dos anos, o exercício de observar o próprio reflexo havia se tornado uma sentença, uma punição para um crime que não sabia que havia cometido.
Via beleza, sim, num vislumbre fugaz, cada vez que se distanciava daquilo que era. Ironicamente, como se para contrariar toda a censura, a voz tornava ainda mais grave, alta, forte, rejeitando a pequenez de uma feminilidade minguante

Quando finalmente desistiu de encobrir a sua natureza resistente, viu florescem enroladinhos os cabelos, adornando-lhe a cabeça e rosto. Sabia serem parte da história que havia iniciado em terras distantes, muito antes do seu tempo. Orgulhava-se, sim. Porém, um olhar em falso e lá estavam as lentes. Os Outros entranhavam-se em cada dobra ou parte que se avultava. O corpo não mais pertencia unicamente a Dália, era vitrine para as palavras e olhares. Nesses momentos, o reflexo se tornava um monstro feio e distorcido. 

Dália quase se deu por vencida. Era exaustiva a rotina de exorcizar demônios. Mas, uma vez mais, num gesto de rebeldia, decidiu se demorar um pouco mais em frente ao espelho. Estava farta. Apagaria as velas e não cumpriria a sentença dos pecados que não eram seus. 

Com uma das mãos, Dália tocou os dedos da criatura marrom no espelho. A verdade feliz é que não havia monstro algum, apenas a sua própria imagem. Ela sorriu e então chorou. Suas lágrimas levam embora as lentes turvas. 

Pela primeira vez, pôde observar a beleza no corpo que havia vivido junto a ela a tristeza, a alegria, o medo e o amor. Cada textura, cicatriz e marca do seu corpo-história. Era verdade que não passaria por porta alguma, pois de fato era muito. Era imensa. Tanto que às vezes até transbordava. Dos Outros, não aceitaria mais nada. Não havia retorno. Agora sabia-se um mundo. Bela. Gorda. Negra. Mulher.