RESUMO: Desde o lançamento de Com Armas Sonolentas (2018c), Carola Saavedra tem participado de entrevistas, eventos literários e compartilha assiduamente resenhas sobre a obra em suas redes sociais. Chama a atenção nas entrevistas concedidas pela autora o número de perguntas que ecoam sua biografia: a maternidade recente, opiniões pessoais sobre feminismo, sobre o que é ser mulher, além de outros temas que se relacionam com as pautas sociais do momento e que também são discutidas no romance. Com base nessa observação, nossa premissa é que o flerte com dados da vida da autora pode sugerir aos leitores um laço muito mais forte entre autora e obra, entre vida e ficção do que o próprio romance sugere. Assim, ao considerarmos a entrevista como um gênero específico (ARFUCH, 2010), a hipótese aqui desenvolvida é de que as entrevistas, cujas perguntas insistem na aproximação entre vida e obra, podem sugerir uma leitura biográfica que não é confirmada pela obra. Para essa investigação serão analisadas a entrevista da autora na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) para o canal Bondelê e a entrevista concedida para a revista literária eletrônica, São Paulo Review.
PALAVRAS-CHAVE: Carola Saavedra; Com armas sonolentas; Entrevista.
ABSTRACT: Since the release of Com Armas Sonolentas (2018c), Carola Saavedra has participated in interviews, literary events and assiduously shares reviews about the book on her social networks. In the interviews given by the author, the number of questions that echo her biography draws attention: recent motherhood, personal opinions about feminism, about what it means to be a woman, in addition to other themes that relate to the social agendas of the moment and that also are discussed in the novel. Based on this observation, our premise is that the flirtation with data from the author’s life can suggest to readers a much stronger link between author and book, between life and fiction than the novel itself suggests. Thus, when considering the interview as a specific genre (Arfuch, 2010), the hypothesis developed here is that the interviews, whose questions insist on the approximation between life and novel, may suggest a biographical reading that is not confirmed by the book. For this investigation, the author’s interview at the Festa Literária Internacional de Paraty(FLIP) for the Bondelê channel and the interview granted to the electronic literary magazine, São Paulo Review will be analyzed.
KEYWORDS: Carola Saavedra; Com armas sonolentas; Interview.
A ENTREVISTA COMO GÊNERO
A entrevista surge em meados do século XIX como uma forma de apresentar as personalidades do período expondo sua privacidade para o espaço público. Ela prometia aos leitores a possibilidade de ter acesso a informações privadas de pessoas públicas, representando uma oportunidade de revelar “a face escondida” das vidas públicas. No contexto contemporâneo, o retorno do autor e a mudança no espaço público fizeram com que ela se tornasse um meio que não só pode satisfazer a curiosidade do leitor/telespectador acerca do espaço privado, como influenciar a própria forma de leitura das obras dos autores.
Ao longo do tempo a entrevista sofreu mudanças na forma de veiculação, além de abrigar hoje os mais diversos personagens, mas ela ainda mantém traços que a tornaram um gênero consolidado no século XIX:
[…] a entrevista mantém vigentes, no entanto, os traços que talvez foram a chave de seu sucesso inicial: a ilusão do pertencimento, a imediaticidade do sujeito em sua corporeidade, mesmo na distância da palavra gráfica, a vibração de uma réplica marcada pela afetividade (a surpresa, a ira, o entusiasmo), o acesso à vivência mesmo quando não se fala da vida. (ARFUCH, 2010, p. 154)
Ao manter traços que remetem o leitor a um pacto de veracidade, ela acaba se apresentando como suposto “retrato fiel” de uma situação comunicativa o que dificulta pensar que há uma elaboração para a construção de uma persona em toda entrevista. Dessa forma, muitos pontos precisam de atenção quando analisamos uma entrevista, como alerta Versiani (2014):
[…] Por mais que se deseje acesso ao autor e às confirmações ou correções de hipóteses, o equívoco maior do leitor de qualquer entrevista é acreditar que, mesmo tendo sido firmado e sacramentado um pacto de sinceridade, a situação face a face, de interação direta, possa propiciar de fato uma maior aproximação da verdade […]. (VERSIANI, 2014, p. 192)
A valoração da presença resulta no imaginário de que ela se configura como uma conversa cotidiana na qual tudo está sendo dito com sinceridade. Com essa afirmação, não estamos sugerindo que todo autor mente, mas queremos chamar a atenção para o fato de que, diferente da situação comunicativa cotidiana, nesse gênero apenas um dos interlocutores está habilitado a fazer perguntas e isso faz toda diferença. O entrevistado pode fugir das perguntas, pular, dissimular. Ele não detém o poder de orientar a trilha do diálogo.
Deleuze (1998) aponta que é um jogo do qual o entrevistado não pode fugir, pois, na entrevista, os papéis já estão estabelecidos e há uma expectativa do que deve ser dito. O dualismo presente na conversa e a estrutura em que o escritor está inserido impedem que algo fora do que é esperado produza realmente significado:
[…] Há sempre uma máquina binária que preside a distribuição dos papéis e que faz com que todas as respostas devam passar por questões pré-formadas, já que as questões são calculadas sobre as respostas prováveis segundo as significações dominantes. Assim, se constitui uma tal trama que tudo o que não passa pela trama não pode, materialmente, ser ouvido […]. (DELEUZE, 1998, p. 17)
No entanto, um exemplo raro de tentativa de fuga, uma espécie de manobra para fugir à resposta direta, está em uma entrevista do autor Marcelo Mirisola para o jornal Globo (2014) em que é perguntado acerca da semelhança entre o personagem de seu livro, O azul do filho morto (2002), e ele próprio:
GLOBO – Evidentemente todo leitor vai identificar o protagonista MM com Marcelo Mirisola. Ele é mesmo inteiramente você, sem tirar nem pôr?
MIRISOLA – Claro que não. Claro que sim. (MIRISOLA, 2014)
No caso de Mirisola percebemos que a resposta dúbia que nega e afirma faz parte da performance do autor. Nesse cenário, observamos que o suposto pacto de veracidade completa se quebra, uma vez que o autor sai pela tangente.
Entendemos, então, que a entrevista representa o interesse de uma instituição e suas perguntas serão orientadas a partir dos objetivos e da lógica de mercado em que ela se inscreve. Dentro desse gênero textual, há um jogo de poderes, hierarquias e evasivas que vão delimitar a forma como o entrevistado irá se comportar, pois não se trata de um encontro qualquer.
Para além disso, é preciso considerar que há sempre em qualquer entrevista um processo de pós-produção. Por conta de tempo, espaço no veículo, quantidade de evasivas, ela sofre diversos cortes, recortes, edições:
As estratégias de leitura desse corpo de signos precisam, portanto, considerar o conjunto de tratamentos a que foi submetido o material bruto que restou da situação de interação: não apenas a captação e o registro de voz e imagem, mas também a edição, a montagem, o acréscimo de outros textos e paratextos, a inserção de outras fontes sonoras e visuais, as legendas, as vozes em off, os efeitos especiais. (VERSIANI, 2014, p. 190).
Apesar dos elementos que estão por trás da entrevista, o leitor acredita ler nela a verdade. A curiosidade sobre o que é privado nas figuras públicas torna-se preponderante na contemporaneidade e o escritor, mais um elemento dessa curiosidade.
Arfuch (2010) menciona como fundamental que o entrevistador conheça a biografia do entrevistado para elaborar o roteiro da entrevista, mas no contexto contemporâneo essa exigência pode se configurar como o único material de interrogação.
Desde o século XIX alguns temas biográficos estão mais presentes como os relatos sobre a infância, os amores, a vocação, os filhos, a decisão ou a dificuldade de escolher o caminho. Eles orientam o percurso que o entrevistador pode seguir, além de alimentar o interesse que o leitor tem pela biografia do autor. Entretanto, no momento em que as autoficções ganham destaque, as respostas a essas perguntas podem acabar se tornando as respostas para a própria leitura da obra.
O ROMANCE, A AUTORA, AS ENTREVISTAS
Em entrevista sobre seu livro Maternidade (2018) para o Jornal El País (2019), Sheila Heti é interpelada constantemente sobre sua opinião pessoal. As perguntas parecem sugerir que o fato de Heti ser mulher e estar falando sobre um tema que faz parte do universo feminino são elementos necessários para compreender a obra:
EL PAÍS: “Não ser mãe é o mais difícil. Sempre há alguém disposto a se interpor no caminho da liberdade de uma mulher”, escreve. É tão grande a pressão que as mulheres sofrem?
HETI: Acho que ainda é uma opção muito corajosa decidir não ter filhos. Ainda é algo que uma mulher tem de explicar. Ninguém pergunta a alguém que tem filhos por que teve, mas se você não tem, precisa responder por que não teve. Essa decisão ainda vai contra as expectativas da sociedade, contra nossas ideias da mais alta vocação das mulheres, contra nossas ideias sobre o que o corpo feminino deseja intrinsecamente. (HETI, 2019)
Essa recorrência mostra também que a vida pessoal de Heti se misturou com os temas caros ao espaço público como a maternidade, o patriarcalismo e as cobranças que as mulheres sofrem para ter filhos, por exemplo. E, quando estes temas se casam à experiência da própria Heti, como autora, o vínculo entre narrador, autor e personagem é reforçado.
Nas entrevistas concedidas por Carola Saavedra sobre seu romance Com armas sonolentas (2018c) o lado de fora da narrativa, ou seja, as respostas dadas pela autora comentando o romance costumam apontar para uma ponte entre os elementos intrínsecos da obra e as vivências da autora.
Nas entrevistas, Saavedra conta episódios e situações biográficas que podem ter relação com as histórias das três mulheres do romance, Anna, Maike e a Avó. Como os temas do romance também são discutidos na imprensa, em nosso espaço social, o comentário, a opinião da autora e a evocação de dados (auto) biográficos expostos nas entrevistas podem sugerir para o leitor uma possível relação da obra com a vida de Saavedra, estimulando uma leitura biográfica da obra dada a incidência da primeira pessoa em muitas narrativas atuais.
Para análise, selecionei duas entrevistas que mostram como a autora é interpelada a falar desse pessoal-coletivo. A primeira faz parte de sua participação na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) ocorrida em 2018b para o canal Bondelê e a segunda é a que Saavedra concedeu para Raimundo Neto da revista literária eletrônica São Paulo Review.
Com armas sonolentas (2018) é dividido em duas partes chamadas de “O lado de dentro” e “O lado de fora” e conta as histórias de Anna, Maike e uma terceira personagem conhecida apenas como Avó. Nas partes de Anna e da Avó temos o discurso indireto livre em terceira pessoa, enquanto que na história de Maike há a narradora em primeira pessoa. Apesar de o livro relatar diversos temas como a construção da identidade, a ancestralidade, a volta pra casa, foi lido por parte da recepção na chave da maternidade e relacionado com a experiência da autora que pouco tempo antes havia se tornado mãe.
Saavedra, assim como diversos autores contemporâneos, rejeita o rótulo de autoficção para suas produções literárias. O que é interessante neste contexto é que mesmo que o romance de Saavedra não explore a relação ambígua entre a vida da autora e a ficção, essa aproximação acabe sendo feita, pois em entrevistas a autora tem de responder a um número de perguntas que parecem forçar uma leitura biográfica da obra, como, por exemplo, a tematização da maternidade, como já assinalamos.
Na FLIP 2018, Saavedra deu uma entrevista para a Casa Bondelê e é possível perceber que em diversos momentos a conversa realça aspectos pessoais de sua vida e a autora é levada a comentar, por exemplo, a relação entre a Avó do livro e a sua própria avó:
CAROLA SAAVEDRA: […] o que tava ali não era o que você pensou no sentido vou escrever sobre o país, mas surgiu como uma consequência de um olhar pra dentro de mim. Por exemplo, essa avó que é essa entidade avó foi tirada, quase tudo no livro, eu sempre falo, o livro uma autobiografia minha, é uma autobiografia psíquica […]. (SAAVEDRA, 2018b)
Em outro momento, o fato de Saavedra ter se tornado mãe é um mote para relacionar esse dado com a influência sobre sua produção e a pergunta também quer saber a opinião da escritora sobre o papel do movimento feminista: “[…] a existência da Vitória te fez mais emotiva nesse sentido, te faz sentir essas histórias de uma forma mais acentuada?” (SAAVEDRA, 2018b). Ou seja, para comentar aspectos do livro, a entrevistadora formula perguntas que apresentam interesse pela vida da autora:
CAROLA SAAVEDRA: É porque tem a ver com a minha trajetória, pra te falar da questão da Vitória, e quando a minha filha nasceu, aí eu que passei anos da minha vida, tipo, eu não queria ser mãe, sabe, porque eu me colocava totalmente nesse lugar “não, eu não vou ser mãe porque eu tenho que escrever” e aí nisso tudo eu comecei a querer ser mãe, eu falei “porque que eu tenho que escolher ou escrevo ou sou mãe” então nesse momento poder dizer “não, eu quero ser mãe e quero poder escrever”, enfim essas coisas acontecem. Ser a Vitória e também o fato de ser uma menina, eu comecei a pensar “gente eu pus uma menina no mundo. Em que mundo ela vai viver?”. Sabe, então, aí eu comecei a olhar pra tudo, pra mim, enfim pra coisas que foram acontecendo, pro movimento feminista e tudo calhou na minha vida dizer “não, isso é uma questão essencial e eu preciso falar sobre isso”. (SAAVEDRA, 2018b)
Saavedra nasceu no Chile, mas passou a residir no Brasil desde muito cedo. A autora relata em alguns que seus pais sempre criaram uma “ilha Chile” dentro de casa, então ela aprendeu espanhol e conhece elementos da cultura chilena, mas nunca sentiu uma conexão real com o país (SAAVEDRA, 2010). Além disso, o fato de ter estudado em um colégio alemão e depois ter realizado uma viagem para esse país fez com que ela estivesse em lugares diferentes, mas sem se sentir pertencente a nenhum:
CAROLA SAAVEDRA: Já foi um problema bastante complicado na minha vida por muitos anos, a sensação de não pertencer a lugar nenhum. Eu sou muito flexível, me adapto rapidamente a muitos lugares. E, ao mesmo tempo, eu nunca me senti em casa em lugar nenhum. Tudo isso mudou quando comecei a escrever, a publicar. Estreei levando a literatura a sério, com o projeto de escrever todos os dias. (SAAVEDRA, 2010)
No romance, ela aborda essa temática com Maike. A personagem, segundo a autora, é aquela que busca unir as pontas dessa história que não é contada. Em uma de suas entrevistas, Saavedra diz que é como se a personagem observasse o mesmo livro que está sendo escrito. Uma forma de reestruturar essa história de perdas, de dores.
Além disso, Mike é a personagem que aprende a língua portuguesa. Após ser abandonada por Anna, ela é criada por um casal alemão, mas não se sente pertencente àquela família, língua e lugar. Saavedra menciona em entrevistas que apesar de saber espanhol, alemão e inglês é na língua portuguesa que ela se sente em casa:
CAROLA SAAVEDRA: Quando eu morava na Alemanha, era raro eu falar em português. Mas ficou claro que eu me sentia em casa com a língua portuguesa, não importava onde estivesse. Essa foi uma construção que fiz, criei uma identidade. E esse mundo que criei é em português, onde me encontro. Quando isso começou a ser construído, essa questão de não pertencimento deixou de ser um problema. A língua portuguesa é a minha casa. (SAAVEDRA, 2010)
Isso é reforçado pela personagem: “[…] a sonoridade daquele idioma me transportava para um lugar desconhecido, em que eu, por mais improvável que parecesse, me sentia em casa […]” (SAAVEDRA, 2018c, p. 101). Em outro momento, Maike que resolve sair da Alemanha e fazer intercâmbio no Rio de Janeiro, percebe que estar próxima a essa língua é estar próxima de si mesma:
Sentia que meu conhecimento da língua ia ficando cada vez melhor, mais fluente, e junto a isso a sensação de viver numa língua estrangeira era tornar-se sutilmente, outra pessoa. No meu caso, essa pessoa que eu me tornava, apesar de um pouco tosca, me parecia muito mais próxima de mim do que a que vivia na Alemanha, como se em português eu me tornasse quem eu realmente era. (SAAVEDRA, 2018c, p. 217)
Esse processo também ocorre de forma inversa. Quando Anna sai do Brasil para a Alemanha passa a se sentir longe de si mesma e se nega a aprender a língua alemã, pois tudo no novo país a torna uma pessoa que ela não gosta de ser: “Alguém fora de seu idioma e de seu código social, reduzido a momices e estetorteres, uma caricatura de si mesma, ou pior, uma versão piorada, desprovida de humor, na qual seus maiores medos vinham à tona.” (SAAVEDRA, 2018c, p. 37)
A Avó do romance é uma mulher que é renegada pela família, abandonada e que não tem o direito de erguer a própria voz porque é sempre silenciada. Após a mãe da personagem expulsá-la de casa para que fosse trabalhar em uma casa de família, ela perde o contato com essa raiz ancestral, aspecto realçado pela autora em entrevistas. A perda da ancestralidade também simboliza a perda de uma identidade e isso é passado de mãe para filha em um ciclo que só pode ser quebrado quando uma delas recupera a própria história:
[…] um bebê, ela pensou, como se o bebê fosse dela, uma menina, como se a menina fosse dela, fosse a filha, e, ao mesmo tempo, como se a menina fosse ela própria, entregue, abandonada, mas também fosse a mãe e até a própria avó, uma sucessão incessante de entregas e abandonos, quando teria começado isso? (SAAVEDRA, 2018c, p. 247)
Como é perceptível, as perguntas apresentam um padrão em que ela deve ter opiniões sobre assuntos que fazem parte da obra e a atravessam enquanto sujeito. Arfuch (2010) menciona que é um traço característico das entrevistas que o entrevistado ecoe “vozes plurais” em seu discurso:
Assim, “a vida a várias vozes” que toda narração autobiográfica supõe se desdobra explicitamente na entrevista, como um jogo especular de posições, em que se confrontam os modelos narrativos comuns, se mostra sua natureza dialógica e estereotípica e se reforça o mecanismo pelo qual continuamos aprendendo a viver pelo relato da experiência alheia. (ARFUCH, 2010, p.185)
O fato de a autora brasileira mencionar sua experiência recente com a maternidade, a forma como ela diz se sentir deslocada do papel que esperam de uma mulher e como o feminismo a influenciou, alimentam o embaralhamento de uma voz que fala de si (nas entrevistas) com a voz de um coletivo (no romance).
Vale a pena observar que o leitor, hoje, mostra muito interesse em conhecer o autor e dados de vida pessoal. A performance do autor alcança um desempenho maior aos olhos do leitor quando isso acontece:
Efetivamente, a proliferação de diferenças (étnicas, culturais, religiosas, sexuais, de gênero etc.) que caracteriza o momento atual- sua afirmação ontológica como diferenças e a autocriação (coletiva) que supõem – tem uma expressão notória em nosso gênero discursivo e, em particular, em seus momentos autobiográficos, na medida em que articulam sempre o pessoal com o social. Sem intenção de propor uma adequação “representativa” entre as posições que a entrevista desdobra e as que surgem nos conflitos pelo reconhecimento dessas diferenças, há, no entanto, uma relação, na medida em que, por definição, nosso gênero opera justamente na visibilidades dessas posições. (ARFUCH, 2010, p. 189)
Os trânsitos entre o pessoal (vida) e o social (o romance) pode ser ilustrado com a resposta de Saavedra a uma das perguntas da entrevista concedida para o São Paulo Review:
Com armas sonolentas, mais do que um livro sobre mulheres, é um livro sobre o feminino. Uma instância que existe em todos nós, e que cada um vivencia de forma diferente (de acordo com suas próprias marcas), às vezes com orgulho, outras com amor, muitas vezes com medo. Para mim a misoginia nada mais é do que medo do feminino, porque por trás do ódio há sempre o medo, o mais profundo medo. Numa sociedade patriarcal, é claro que o feminino acaba se tornando quase sempre o lugar do Outro, do desconhecido, o lugar daquilo que sobra às palavras, que não cabe nelas. É também o lugar do nascimento (essa passagem indizível), todos nascemos de uma mulher, numa sociedade que valoriza o logos, a razão, é um acontecimento assustador. (SAAVEDRA, 2018a)
É interessante destacar que apesar de o entrevistador não ser tão direto quanto à maternidade recente da autora ou à sua vivência enquanto mulher, a pergunta acerca da relação entre o pessoal biográfico e a criação ficcional está presente:
SÃO PAULO REVIEW: Pensando um pouco as características autobiográficos presentes em muitos feitos literários contemporâneos, é possível uma literatura sem que a autora não viva também na obra? E quais seriam os limites do factual e ficcional em seus romances?
SAAVEDRA: No meu caso, os protagonistas são eu, sempre. Mas em cada livro isso acontece de uma forma diferente. Acho que Com armas sonolentas é o meu livro mais autobiográfico, no sentido de ser o livro mais sincero, menos defendido, é como um sonho, num sonho tudo parece estranho, mas o que ele revela é a nossa verdade, Com armas sonolentas habita esse lugar, o lugar do sonho, do inconsciente, do místico. É um livro que eu não teria conseguido escrever se não fossem dez anos de análise e o nascimento da minha filha, acontecimentos que me fizeram aprender a suportar o medo, e principalmente, escrever (e viver) não contra o medo (num eterno embate), mas apesar dele. (SAAVEDRA, 2018a)
Para o leitor incauto, é fácil associar a maternidade de Anna com a da própria Saavedra ou comparar as reflexões da personagem com as posições da autora sobre o tema ou ainda na experiência como exilada, uma marca biográfica de Saavedra, que está presente em Maike, personagem do romance. A recorrência das perguntas que exploram o posicionamento biográfico da autora em um momento em que muitas narrativas exploram a ambiguidade entre a própria vida do autor e uma voz em primeira pessoa, podem estimular o leitor a acreditar num laço efetivo entre vida e obra, mesmo quando o romance (e a própria Saavedra como vimos acima) rejeite qualquer sobreposição evidente.
Ou seja, se a análise das entrevistas mostra a tematização da biografia da autora como um dado constante das perguntas formuladas, isso não significa que a obra possa ser lida estritamente como autobiográfica ou mesmo autoficcional, mas indica, sim, que se cria um movimento de fora para dentro da obra. Não é a leitura da obra que faz o leitor se questionar sobre um possível lastro biográfico, mas a performance da autora nas entrevistas, a convocação feita pelos entrevistadores para que fale sobre sua vida, a relação próxima entre a obra e a vida da autora presente nas entrevistas que promovem essa possibilidade de leitura para o romance.
Dessa forma, a entrevista ganha destaque enquanto gênero capaz de mediar as relações entre o leitor e a obra, uma vez que realça o valor biográfico que se tornou de grande interesse no contexto midiático contemporâneo e nem os autores podem fugir disso, como mostram as próprias especulações acerca de Com armas Sonolentas (2018c).
REFERÊNCIAS
ARFUCH, Leonor. Devires biográficos: a entrevista midiática. In: ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2010. p. 151-207.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998.
HETI, Sheila. Sheila Heti: “Parem de perguntar às mulheres que não têm filhos porque elas não têm”. Entrevista concedida a Adrián Cordellat. El País, 04 mai. 2019.
MIRISOLA, Marcelo. Marcelo Mirisola: ‘A literatura brasileira virou um sofá da Hebe Camargo. Entrevista concedida a Luciano Trigo. G1, 16 nov. 2014.
SAAVEDRA, Carola. “A palavra é a única coisa que pode nos salvar de nós mesmos”, diz em entrevista Carola Saavedra. Entrevista concedida a Raimundo Neto. São Paulo Review. 18 jul. 2018a.
SAAVEDRA, Carola. Carola Saavedra: “A língua portuguesa é minha casa”. Rio de Janeiro: Saraiva. 2010. Entrevista concedida a Ramon Mello.
SAAVEDRA, Carola. Casa Bondelê FLIP 2018: Bate-papo com Carola Saavedra, autora de Com armas sonolentas. Entrevista concedida a Anna Monteiro. Bondelê, Paraty, 27 jul. 2018b.
SAAVEDRA, Carola. Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras, 2018c.
VERSIANI, Daniela Beccaccia. Entrevista, performance e a alternativa dramática. In: OLINTO, Heidrun Krieger; SCHOLLHAMMER, Karl Erik (Orgs.). Cenário contemporâneos de escrita. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014. p. 185-201