Subjetividades em Graciliano Ramos

Rafaella Giordano

RESUMO: Neste artigo busquei entender as questões literárias, políticas e autobiográficas do escritor Graciliano Ramos. Como objeto de estudo, utilizei as obras, cartas e os relatos de viagem publicados, além do material presente no acervo do IEB-USP. Para isso, apresentei um panorama teórico sobre o autobiográfico e o estudo da correspondência literária. A pesquisa epistolar proporciona uma visão diferente da presença política do autor em sua vida, principalmente após a prisão de Ramos. As escolhas discursivas, através da intersubjetividade, aparecem nos textos, demarcando um panorama político e autobiográfico. 

PALAVRAS-CHAVE: Graciliano; Arquivo; Correspondência; Diário; Subjetividade.

ABSTRACT: In this text, I tried to understand literary, political and autobiographical issues of writer Graciliano Ramos. I used letters, diaries, travel reports already published and IEB-USP’s collection material as objects of study. The epistolary research provides a different vision of political presence in the author’s life, mainly after Ramos’s arrest. Through intersubjectivity, discursive choices appear in Graciliano’s texts and demarcate a political and autobiographical panorama. 

KEYWORDS: Graciliano; Archive; Letters; Diaries; Subjectivity. 

Introdução

Primeiramente, para abordar as cartas do escritor Graciliano Ramos e a trajetória do autobiográfico no conjunto de sua obra, como é o objetivo desse artigo, deve-se estabelecer algumas questões teóricas e salientar a importância de estudos literários do campo autobiográfico a historiografia da literatura brasileira e a recepção crítica.

Com o estudo de cartas e/ou de correspondências ativas, a leitura das obras de determinado autor se amplia a partir das visões colocadas em textos intersubjetivos, como são aqueles que guardam as trocas epistolares, remetendo-nos, então, às “inquietações, sentimentos, dificuldades” (PERES, 2008, p. 9) do escritor, como estabelecido por Fernando Peres na apresentação do livro. Para além disso, os estudos de relatos de viagem, bilhetes e diários demonstram o cotidiano do autor, fazendo com que surjam muitas questões interpretativas através de reflexões e percepções do que é visto na sociedade pelo autor desses gêneros de textos. 

Segundo Marcelo dos Santos (2017, p. 106), a carta também é um espaço ensaístico, em que os escritores apresentam projetos literários futuros, críticas aos textos e obras já publicados e percepções do dia a dia.

Os escritos de escritores viajantes demonstram, de maneira muito específica, as percepções acerca de posições inicialmente estranhas se comparadas àquelas assumidas pelo autor no seu local de origem, e servem não apenas para produzir as referências nacionais, mas regionais, locais, que se concentram nas especificidades da relação entre o habitante e seu espaço – como veremos. A carta, gênero primordial para estreitar as distâncias, integra o conjunto de textos de viagem, e nela ficam registradas as nuances que marcam as observações do viajante, enquanto os diários relatam, de maneira diferente de um texto literário, as vivências em determinado local. As reflexões sobre as culturas locais, os personagens que habitam os espaços visitados e vistos, de maneira que as comparações sejam inevitáveis a um autor atento à sociedade, como é o caso de Graciliano Ramos. Vale salientar que as cartas de exílio (e, aqui, utilizaremos o termo “exílio” para designar o fora do local de origem – seja na prisão ou em outro lugar de moradia) “demonstram de forma clara como o exílio voluntário foi a integração entre corpo no mundo e palavra; o experimentar em forma de rebentação na linguagem” (NOTAROBERTO, 2017, p. 13). No caso de Gráci, diferentemente à experiência de Clarice Lispector, como sugere o trabalho de Marco Antonio Notaroberto (2017), não há exílio voluntário, mas forçado. 

As cartas do escritor, assim como alguns manuscritos, foram entregues pela família, após sua morte, ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP), onde tive a oportunidade de extrair algumas informações pertinentes à pesquisa. A análise do arquivo e o debruçamento nos papéis do escritor alagoano só foi possível graças à bolsa de Iniciação Científica da UNIRIO. Além disso, a leitura de outros textos também foi possível graças às publicações póstumas e às organizadas por outros pesquisadores de arquivos literários e dos documentos de Graciliano Ramos. 

Entre o exterior e o interior: a carta como gênero do trânsito

Segundo Rojas (2017, p. 4), o contexto histórico é importante para a construção de um estudo sobre a carta, mas não podemos nos esquecer dos apontamentos que Brigitte Diaz lançou sobre o gênero nômade: “As cartas são textos híbridos e rebeldes a quaisquer identificações genéricas. Gênero literário indefinível, flutuam entre categorias vagas: arquivos, documentos, testemunhos” (DIAZ, 2016, 11). Como explicitado pela francesa, a correspondência, geralmente, está em um entre-lugar e flutua por diversos locais que os críticos costumam colocar o espaço literário possível de estudo. Essa subjetividade e essa subjetivação – processo de criação do sujeito – também ficam em um trânsito, como a carta de viagem, que tem desvio físico e interior, quando o autor olha para dentro de si, do interior. 

A carta, portanto, é um espaço dialógico e reflexivo para os interlocutores, para o próprio autor e para a sociedade. Passando pelo texto epistolográfico, tem-se a percepção do remetente e do destinatário sobre a escrita de si e seus desdobramentos e trânsitos. A criação de personas (do próprio autor, das personagens, de identidades, de sujeitos) é produzida também na correspondência do escritor, se a compreendermos como bastidor da obra e de si mesmo. Isso é explicado por José-Luis Diaz (2012, p. 122), que amplia o debate sobre como a carta pode ser mais do que um repositório de acontecimentos do cotidiano ou de experimentações, mas como as personas são criadas pelo autor. Além disso, é fundamental na criação do que se pode determinar como estilo literário, mas também na formação de uma subjetividade literária e como a intersubjetividade se dá entre essas diversas instâncias. Segundo Leonor Arfuch (2010, p. 128-129), isso se dá pelo constante “desdobramento em direção à outridade de si mesmo” e, ao colocarmos na linguagem, já passa a ser sobre o indivíduo que escreve/enuncia, mas também sobre uma construção para o outro. 

Ainda sobre a produção de um si-mesmo e de sua relação com o outro, Clément Rosset (1999), filósofo francês, caracteriza o “eu-mesmo” a partir do corpo que está no mundo, interagindo com o outro o corpo de outro. O filósofo desarticula, na sua argumentação, a concepção de uma subjetividade concentrada num “perto” de si, numa interiorização, e propõe pensar uma subjetividade exteriorizada, “distante de mim”, no mundo. Esse “eu-mesmo” no mundo, em consequência, é sempre político, pois demonstra a posição do indivíduo nos questionamentos da sociedade sempre em relação com ela.

Os textos autobiográficos, no geral, são percebidos como produções do próprio sujeito, do eu fundante; porém, simbolizam muito mais do que isso. Alargando o debate, no tocante à intersubjetividade – importante para compreender uma subjetividade construída em relação -, é um ponto fundamental para percorrermos o autobiográfico na obra de Graciliano Ramos: a relação com o outro.

 Segundo Leonor Arfuch aponta, “toda biografia ou relato de experiência é, num ponto, coletivo, expressão de uma época, de um grupo, de uma geração, de uma classe, de uma narrativa comum de identidade.” (ARFUCH, 2010, p. 100, grifos da autora). Ou seja, os textos (auto)biográficos apresentam uma questão do sujeito, mas também o retrato de uma questão de toda a sociedade, do grupo a que o escritor pertence ou ao qual ele pretende visibilizar; assim como as interpretações de suas peculiaridades na sociedade. Os privilégios que o indivíduo detém devem ser levados em conta, assim como as análises acerca da política, da sociedade e dos grupos menos favorecidos. Para alguns escritores, isso poderia pouco importar. Entretanto, como veremos, Graciliano Ramos sempre valorizou bastante as ideias relativas ao coletivo e ao plano da sociedade, mesmo que as reflexões começassem a partir do eu. De forma análoga, algumas se iniciavam do outro para o eu, realizando uma comparação, por exemplo, ou se diminuindo perante a tarefa de narrar a si e ao outro – fosse na escrita, na sociedade, na literatura e na posição social e/ou financeira. 

A diminuição mencionada, em diversas vezes, dizia respeito à comparação feita ao longo das observações que o escritor registra em suas cartas. Quando observou a vida carioca, após a liberdade, relatou em diversas cartas como esta era diferente de Alagoas e quais eram as mudanças em relação ao social, ao povo e ao trabalho. Ao estar na URSS, pensou, da mesma forma, nas relações entre os operários e seus chefes e nas relações dos estudantes com a literatura “panfletária”, que teriam um fim político de instruir a população soviética sobre o regime. Essas percepções aconteceram não só quando o autor estava na condição de viajante, mas também enquanto brasileiro/nordestino/escritor ao notar as questões do eixo Rio de Janeiro – São Paulo nos jornais ao perceber como o povo nordestino estava sendo representado nos discursos e como a literatura produzida pelos nordestinos era criticada. 

Além disso, o autor também menosprezou muito a sua própria escrita. Em cartas, podemos perceber como retrata seus livros com tons pastéis, como obras que precisam de uma revisão mais atenta. Angústia, por exemplo, em cartas a Benjamin de Garay, surge como este caso cheio de pastéis, pela falta excessiva de revisão que Ramos sempre realizou com os livros:

Tenho coisa melhor [que São Bernardo], o livro que saiu em agosto. A composição é medonha, cheia de erros e pastéis, porque não pude vigiar a publicação. Em todo o caso, entende-se o que está escrito.(MAIA;PERES, 2008, p. 43)

Esse desgraçado livro [Angústia] saiu cheio de pastéis. Quando foi para composição, eu era considerado elemento perigoso e naturalmente os cavalheiros que me hospedavam não julgavam necessária a revisão das provas. Foi um desastre. (MAIA; PERES, 2008, p. 53)

O autor passa, então, a colocar nos textos dialógicos como os escritos necessitam de uma leitura atenta a todo tempo, principalmente antes de chegarem ao grande público nas livrarias. Esse menosprezo pelo próprio trabalho pode ser sentido, em parte, graças à comparação com os outros escritores da época – mesmo que o autor diga como são poucos os admiráveis, em carta que será analisada adiante – e em comparação às obras que o autor já tinha lido, nacionais ou não. Conforme será analisado, perceberemos que essas relações de diminuição entre o eu e o outro sempre ocorreram, mas se intensificaram após sua prisão. 

O epistolar de Graciliano Ramos

Graciliano Ramos, escritor alagoano, foi preso em março de 1936 por ser considerado “comunista” pelo governo Vargas, mesmo que não houvesse qualquer processo relativo a isso – e desde sempre relatou a falta de provas e até mesmo de processo para a sua prisão, como Heloísa Ramos escreveu a Benjamín de Garay: “sendo ele [Graciliano] vítima, tão-somente de ódios políticos locais.” (MAIA; PERES, 2008, p. 38-40). Após ser solto no Rio de Janeiro, em 1937, passou por grandes dificuldades financeiras e pessoais – principalmente por estar longe da família e por ser extremamente crítico aos seus escritos que, quase sempre, passavam por diversas revisões realizadas por ele, antes mesmo de serem entregues à editora. Esses obstáculos sempre eram retratados em seus textos de arquivo e nas cartas que enviava à esposa Heloísa. Após um tempo solto no Rio, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro em 1945 e, em 1952, foi à Tchecoslováquia. Os livros que abordam as experiências do cárcere e da viagem à URSS foram publicados postumamente: Memórias do cárcere (1953, disposto em 4 volumes) contém as anotações da época em que ficou preso e detém informações importantes sobre os meios sociais em que ficou encarcerado; Viagem (1954) é um relato de viagem/diário com anotações de suas vivências na Europa (URSS, França e Portugal) e conta com informações do dia a dia – como chegar a outro país, andar de trem etc. –, mas também detalhes e olhares sobre populações na Europa, trabalhadores e estudantes. O período no qual ficou livre no Rio de Janeiro, porém longe de sua esposa (Heloísa), inspirou Silviano Santigo a escrever o ficcional Em liberdade, visto que não há relatos do próprio Graciliano, mas, na última página de Memórias do cárcere, sugere-se o relato dos dias após a prisão. Assim, há um Graciliano personagem e ficcional, escrito por Santiago, que muita se aproxima do escritor que observa tanto o seu redor. 

Graciliano Ramos politikós

O escritor alagoano sempre apresentou, segundo Antonio Candido (2006), uma carga autobiográfica em suas obras publicadas, a partir do momento em que a ficção podia dedicar-se a “explicar a vida do autor” (CANDIDO, 2006, p. 71). Assim, a vida e obra se misturavam, da mesma forma que ocorreu com seus personagens (CANDIDO, 2006, p. 61). Mesmo que a obra publicada pelo autor tenha forte relação com a sua própria vida, esse aspecto não será o foco deste texto por já termos diversos estudos sobre o assunto – principalmente após o estudo realizado por Antonio Candido. 

A vida de Ramos foi difícil em diversos aspectos: nordestino, encarcerado, liberto – mas sem dinheiro –, estrangeiro. Ainda conforme o crítico Antonio Candido, os livros dele são pessimistas e com fatalidade cega e má, com “meninos, rapazes, homens, mulheres; pobres, ricos, miseráveis” (2006, p. 75). Os limites entre sua vida e a obra foram tênues justamente por se enxergar nestas populações “marginalizadas”, quando se viu, após liberto, vulnerabilizado pela precária situação financeira.

Conforme o historiador Joel Rufino dos Santos (2004, p. 29) define: 

Pobres são os despossuídos, não de qualquer posse mas de território, de casa, de emprego (embora não de trabalho), de local (embora não de lugar), de família (embora não de nome) e enfim do próprio corpo (no casos dos escravos e servos da Colônia e Império). 

Se seguirmos a discussão de Rufino (2004), Graciliano se viu como um pobre, mas não necessariamente com a categorização comum que é dada pela sociedade. Por isso, escreveu os pobres em seus diversos textos e buscou com atenção as vivências deles nos locais que habitou (sertão, nordeste brasileiro, prisão, Rio de Janeiro e Tchecoslováquia). O autobiográfico, o aspecto “confessional”, como propõe Candido (2006), portanto, representa também como o autor se preocupou com as populações que tinham algo em comum com ele. Em carta ao crítico literário Antonio Candido (2006, p. 6), Graci sinaliza o quanto é próximo de Fabiano, na sua visão, em relação à vida sofrida do dia a dia nordestino e pobre, como salienta Schmitz (2019). 

Os trânsitos entre vida e obra, autor e personagem se complexificam quando podemos ter acesso aos papéis da intimidade do escritor. O filósofo Jacques Derrida (2005), na palestra “Gênese, genealogias, gêneros e o gênio”, apresenta uma perspectiva sobre a desordem do arquivo, dos papéis de trabalho que o autor produz e como esses se misturam com os da vida pessoal. Por isso, há uma mistura das diversas personas que aparecem: pessoal, produtora de si, literária etc. Essa mescla, organizada majoritariamente no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), nos apresenta a voz de Graciliano sobre a escrita, sobre a sociedade e sobre a política brasileira. Assim, essa desordem apresenta um fio político no discurso de Graciliano, como Antonio Candido definiu: “antes de qualquer adesão ao comunismo, já havia na sua sensibilidade a inconformada negação da ordem dominante e certa nostalgia de humanidade depurada” (2006, p. 94). No entanto, tal organização histórica e sobre o envio ou recebimento da carta – entre cartas ativas e passivas do Graciliano – não necessariamente segue a mesma lógica que o próprio utilizava para organizar seus textos e arquivos, provocando uma mudança de material e de corpus para cada pesquisador que for utilizar os textos, tendo em mente o próprio objetivo de pesquisa. 

Ademais, as noções de público e privado no autor eram delimitadas de forma diferente do usual – como aprofundaremos em cada momento de sua vida a partir da prisão (encarcerado, liberto e viajante) –, talvez, por suas peculiaridades. A dicotomia citada é colocada por Leonor Arfuch a partir da pluralidade de vozes: “(…) haverá vários espaços públicos e privados, coexistentes, divergentes, talvez antagônicos, o que é também uma maneira de dar conta das diferenças – e desigualdades” (2010, p. 101). Com o auxílio de uma cena da obra ficcional de Santiago, conseguimos perceber como o suor do autor se joga na folha de papel e o leitor percebe as marcas do privado, do eu autoral (SANTIAGO, 2004, p. 101-102). Além disso, o binômio público/privado ganha, em cada caso, uma nova relação (ARFUCH, 2010, p. 83). Ao analisar a obra de Graciliano, podemos sempre perceber variações de ricos X (versus) pobres, trabalhadores X (versus) burgueses, nordestinos X (versus) demais brasileiros. 

Desde sempre, Gráci se colocou de forma política ao fazer escolhas (qual personagem entrará, como essa será, literatura de panfletagem etc.), ainda mais se contarmos com as aventuras que teve ao longo da vida: prefeito, preso político, militante do PCB, representante do PCB na URSS. Discutiremos, então, como cada ambiente/momento propiciou cada uma das variações e das escolhas do autor ao retratar (n)a literatura.

Graciliano: ser em cárcere

O primeiro ponto a ser tocado em relação ao sujeito político se dá na escolha pelo uso da primeira pessoa, uma questão fundamental para o escritor, ainda mais quando essa problemática aparece nas memórias, conforme o trecho abaixo de Memórias do Cárcere (RAMOS, 1996, p. 37): 

Desgosta-me usar a primeira pessoa. Se se tratasse de ficção, bem: fala um sujeito mais ou menos imaginário; fora daí é desagradável adotar o pronomezinho irritante, embora se façam malabarismos por evitá-lo. Desculpo-me alegando que ele me facilita a narração. Além disso não desejo ultrapassar o meu tamanho ordinário. Esgueirar-me-ei para os cantos obscuros, fugirei às discussões, esconder-me-ei prudente por detrás dos que merecem patentear-se.

Essa demarcação do eu demonstra, a despeito da reserva do autor, também uma marcação do privado, do obscuro, do particular que deve(ria) aparecer em suas obras após editadas – vale lembrar que as memórias foram publicadas postumamente e de forma incompleta. No entanto, ocorre uma mudança para a esfera pública quando uma intromissão surge ao longo do texto, principalmente quando passa a falar sobre a sociedade e o grupo que está sendo descrito. Assim, em alguns momentos, distancia-se do povo relatado.  

Em um bilhete a sua segunda esposa, Heloísa, escreveu (RAMOS, 2011, p. 223): 

Julgo que sou um dos mais ignorantes daqui. Pediram-me uma conferência sobre a literatura do nordeste, mas não tenho coragem de fazê-la. As conferências aqui são feitas de improviso, algumas admiráveis. Tudo bem. As camas têm percevejo, mas ainda não os senti. Quanto ao mais, água abundante, alimentação regular, bastante luz, bastante ar.

Ainda, com o bilhete, percebe-se a inserção do autor no espaço e como este interfere na sua vida e na escrita daquele. O espaço (físico e social) aparece em outros momentos da vida do autor, mas, por vezes, dificulta o processo de escrita de novos textos, ou até mesmo a edição de textos antigos (publicados ou inéditos). A precariedade destes ambientes impacta a construção literária e autobiográfica de Graciliano, mostrando como há questões entre o corpo e o mundo em sua obra. O primeiro dilema entre público e privado surge nesse trecho após percebermos que as pessoas saberem mais do que ele – e fazerem tudo de improviso – impossibilita a conferência do Graciliano, mesmo que ele seja um importante escritor do próprio movimento literário modernista no Nordeste e, enquanto escritor, perceba que “tudo bem” não fazer de improviso, por ser necessária, na visão do autor, uma intensa revisão e um trabalho com o texto em si. Isso, também, remete à percepção de Ramos sobre a necessidade de sempre refazer os textos, reescrevê-los – como demonstra em diversos relatos e cartas – para que possam chegar a um determinado nível e possam ser publicados/expostos/recitados. A reescrita, então, deve estar sempre em jogo para que o público tenha noção do que se passa no eu pensante e questionador. 

Graciliano: ser em liberdade

Um aspecto fundamental para analisar a obra de Graça é notar como foi a sua postura quando esteve fora do cárcere, no Rio de Janeiro: sem dinheiro e sem a presença da completa e grande família. Ao sair da prisão, passa a viver de favor na casa de amigos enquanto tenta publicar em diversos lugares para possibilitar um sustento à esposa e aos filhos. Como Silviano Santiago mostrou brilhantemente na ficção Em Liberdade (1994), Ramos tem um estilo muito singular na literatura brasileira, especialmente ao escrever sobre suas situações, muitas vezes situações-limite – o que é realçado quando estudamos suas cartas associadas às obras e relatos de viagem. 

Pouco antes do cárcere, Graciliano passou por uma cirurgia e teve algumas complicações médicas – que aparecem nas memórias publicadas. No livro de Santiago, conseguimos perceber o quanto a observação da paisagem remete ao público e, por consequência ao privado, como no trecho abaixo (SANTIAGO, 1994, p. 38-39): 

No Nordeste praia é um lugar para meninos. Depois de certa idade, olha-se o mar de alguma varanda. Não se permite o contato com a natureza, no momento em que o corpo mais o exige, isto é, quando tudo é feito para restringir os seus percursos, amansá-lo nas suas arrogâncias, domá-lo nos seus ímpetos, reduzi-lo pouco a pouco às cinzas da morte. É da morte que quero afastar-me, a tal ponto de não poder reconhecer mais os seus traços fisionômicos, o seu cheiro de miasmas e podridão.

A ficção, exercício principal de imaginação em relação à autobiografia real e à memória, pode nos dar pistas para olhar a obra graciliana com outras perspectivas. O trecho acima é extremamente interessante e depreende diversos pontos importantes para o estudo. De início, temos a já comentada observação da paisagem desencadeando reflexão e percepção sobre o próprio indivíduo. A partir disso, o narrador passa a pensar em uma relação dicotômica muito presente em seus escritos: o Nordeste contra alguma outra localização (no caso, Rio de Janeiro, mas em outros, a URSS) e, para isso, apresenta suas percepções pessoais sobre essas vistas de praias que geram uma interpretação da morte – quando comparando as belezas nordestinas e cariocas – que pode recair sobre o próprio após as diversas dores e complicações de saúde. 

Nós nos criamos para o outro, mas também através do outro. Ainda, como David Hume aponta, conforme retoma o filósofo Clément Rosset, em seu estudo Longe de mim (1999, p. 15), “eu não posso nunca me colocar, eu mesmo, em nenhum momento, sem uma percepção e eu não posso nada observar que não seja uma percepção”. Então, o personagem Graciliano, no último trecho de Silviano Santiago, se criou e se colocou a partir de uma percepção. 

A questão da liberdade aparece, também, quando o escritor – como personagem de Santiago – compara o cárcere com a proteção (1994, p. 204-205):

Como seria diferente o nosso conhecimento do mundo se só pudéssemos enxergar detalhes. […] A multiplicidade caótica de percepção põe ordem e significado no ambiente. […] Quero uma forma de autoproteção que não seja carcerária; quero uma forma de liberdade que não seja bárbara. […] Com a abstração, o cubo do cárcere deste quarto torna-se mais severo e opressor. […] Fabricamos os números e a soma para dar conta do acúmulo. Com a aritmética, sentimo-nos donos das coisas que nos rodeiam. E prisioneiros.

Essa liberdade, vestida de proteção, pode simbolizar o espaço público do momento em que o autor vivia, assim como o cárcere simboliza o privado. Este eu, tão confuso, se auto-oprime ao perceber como os outros detêm privilégios, enquanto ele apenas sofre de saúde, de dinheiro, de fome, da falta de emprego e com a distância da família, enquanto, por outro lado, todos os outros escritores que o cercam estariam em uma “plenitude”.

Além disso, Graciliano em liberdade, pela visão de Silviano, apresenta traços que ainda não tinham sido evidenciados: a ideia de sobrevivente, o não dependente dos amigos e do governo: “Moro na pensão de dona Elvira. Pago o meu quarto e a minha comida, o meu cigarro e a minha cachaça. Sustento-me no presente, como o trapezista no trapézio” (SANTIAGO, 1994, p. 201). Essa imagem de sobrevivente aparece na escrita de Graciliano, como na carta abaixo enviada ao tradutor Benjamín de Garay em 26 de fevereiro de 1937 (MAIA; PERES, 2008, p. 43, grifos meus): “Afinal cá estou novamente em circulação e talvez em estado de servir, se é que não tenho qualquer peça importante do interior estragada. […] Creio que agora vou começar a trabalhar, embora ainda me sinta um pouco enferrujado.”

A semelhança entre a liberdade-prisão e este corpo estragado e enferrujado demonstra como a sobrevivência foi tão recorrente e fulcral ao autor. Isso aparece ao público, na conversa por correspondência com o amigo/tradutor. O sobrevivente desponta, também, na questão sexual, como no episódio da Praia de Botafogo (SANTIAGO, 1994, p. 96): 

Andando de membro duro pela praia de Botafogo, sentia-me finalmente em liberdade. Entregava-me à imagem do corpo gracioso da moça à minha frente. Recebia de cheio no rosto o sol e a brisa marinha. Reparava o movimento pacífico das ondas na enseada (tão diferente da máquina violenta águas do mar de Ipanema). Submetia-me à plenitude do Pão de Açúcar dominando a paisagem.

Talvez a ficção de Santiago tenha imaginariamente tratado o momento após o grande trauma (a prisão), na medida em que se vê preso e encarcerado sexualmente – talvez em parte pela distância de sua esposa – e, ao andar pelas ruas de Botafogo, e entrar nos espaços relativamente estranhos, ele começa a se liberar, a se libertar das grades. 

O sobrevivente-crítico à sociedade, que apresenta tamanhas dificuldades no cotidiano, também surge ao falar da literatura, principalmente ao pensar sobre escritores e o mercado literário brasileiro, como no trecho (RAMOS, 1985, p. 100) a seguir: “Há realmente uns figurões que se tornaram, com habilidade, proprietários da literatura nacional, como poderiam ser proprietários de estabelecimentos comerciais, arranha-céus, usinas, charqueadas ou seringais.”

Ao falar disso, Graciliano demonstra que está no meio editorial, como escritor e “dono da literatura” – o título do texto de 1937 é este: “Os donos da literatura” –, mas também que se abstém dessa carga de “figurões”. Então, ele passa a ser o eu por estar construindo, também, o literário, e o outro pelo distanciamento que tem com o meio que vive dentre os literatos. Esse Graci crítico aparece em diversos momentos das suas narrativas, cartas e dos seus relatos/diários, mas é importante fazer uma aproximação com a carta a Benjamín de Garay (2008, p. 73), que apresenta tantas semelhanças ao trecho anterior e a um relato que aparecerá na próxima seção:

A literatura brasileira, coitada, anda bem magra, muito por baixo: há nela uns pobres diabos famintos e uns sujeitos ricos, que felizmente não escrevem. Todos juntos valem pouco. Em horas de patriotismo e entusiasmo falamos alto e enchemo-nos de fumaça, naturalmente. Podia ser pior, já foi pior – e isto consola. Afinal alguns desses que você menciona e mais talvez uns dois não são ruins de todo. É possível que desta medonha trapalhada se salve meia dúzia de páginas.

Segundo esse pensamento, a literatura brasileira conta com o Graciliano e seus escritos que “valem pouco”, mas, ao mesmo tempo, conta com autores que não apresentam escritas boas, porém têm certo glamour e fama. 

Vale salientar que Graciliano, nesse momento pós-cárcere, não estava em seu território de origem/nascimento (Alagoas), mas no Rio de Janeiro e sem condições de voltar ao lar por ter viajado por causa da prisão ou, como o próprio escritor caracterizou, “mudei-me para o Rio, ou antes, mudaram-me para o Rio, onde existo, agora” (RAMOS, 2011, p. 227). Então, a capital carioca não deixa de ser uma viagem (subseção seguinte) e liberdade estranha ao autor. Além disso, Graciliano nesse tempo se filiou ao Partido Comunista Brasileiro e, com as participações políticas, aflorou ainda mais algumas questões em seus textos e em suas correspondências, como veremos na próxima seção. 

Graciliano: ser em viagem

Ramos coloca em seus relatos de viagem e cartas diversos aspectos de sua escrita e da criação de seu estilo como autor, e é necessário frisar que isso perpassa por toda a sua obra. 

Ao colocar sua escrita seca e árida, como alguns críticos o falam, Graciliano demonstra como está a olhar para baixo, para o pobre, sempre permitindo que o suor escorra pela sua testa e possa ser nitidamente identificado nas entrelinhas e no seu processo de escrita rasurado e manchado – como Silviano expressou no trecho já citado de Em liberdade

Além disso, pode-se dizer que houve uma representação a si de Graciliano, uma espécie de identificação autobiográfica, pois as criaturas do autor (SANTOS, 2004, p. 65) são, de alguma forma, as suas vivências. Diferentemente do que houve na literatura brasileira anterior, a produção de Ramos representa uma vivência própria, justamente por Graci se aproximar do pobre, na definição já exposta aqui por Joel Rufino. Sob a perspectiva dos encontros e desencontros entre as personas do escrito literário, Maingueneau (2014, p. 136) considera o relacionamento entre a pessoa, o escritor e o inscritor na produção do discurso literário, e indica, portanto, mais um motivo para a valência da carta e do relato de viagem como espaço literário de um autor.

Em Viagem (RAMOS, 2007), tem-se diversos relatos e diários da viagem para a URSS. Nos textos, percebemos diversas pontuações acerca da população, dos trabalhadores, da educação e da forma que a literatura era feita nos países soviéticos. O trecho abaixo demonstra como a preocupação com o povo simboliza uma inquietação para ele: “Nesse terrível museu vemos isso. A família imperial, a santa Igreja, cavaleiros metidos em cotas de malhas, pedras e pérolas. Onde estava o povo? Ainda não se falava nele. Iria aparecer alguns séculos depois.” (RAMOS, 2007, p. 91)

Além desse caso, temos uma carta – que será analisada melhor na próxima seção – aos filhos relatando os acontecimentos do dia 01/05/1952, dia do trabalhador, em que um grande desfile aconteceu para celebrar a data. Ao invés de prestar atenção nos grandes carros, nas pessoas que desfilavam ou em Stalin – segundo Ricardo Ramos (2011, p. 197), filho do autor, Graciliano era grande stalinista –, prefere recuar e observar quem, de fato, realizava toda a festa: os trabalhadores. 

A educação também chamou a atenção do autor, como no relato de 24/07/1952 (RAMOS, 2011, p. 107-111), principalmente quanto à diferença do sistema educacional russo para o brasileiro. É possível ampliar a pesquisa de Clément Rosset para a análise de Graciliano: a lembrança do eu, no caso o Brasil e seu meio educacional, vem através da felicidade e sucesso do outro; da educação soviética valorizando a linguagem, a literatura e os meios de produção de outros países. Para exemplificar, trago a lembrança que o autor tem ao observar as formandas estudando sobre produções brasileiras e, quando questionado se os tupiniquins estudavam as cidades da União Soviética, reflete: “[l]embrava-me dos analfabetos da minha pobre terra, dos pequenos vagabundos famintos que circulam nas ruas, quase nus a mendigar” (RAMOS, 2011, p. 109). Logo, a diminuição do eu surge ao analisar o outro, e as diferenças instigam a reflexão sobre as diferentes sociedades. 

O episódio se repete ao visitar a residência de uma cidadã com 12 filhos: ele olhou o conforto da família – cômodo, móvel, livro, comida, bebida – e pensou sobre a miséria que o povo brasileiro viveria se todos tivessem este mesmo número de filhos. Após conversar com o dono da segunda casa visitada sobre o Brasil, traduz para a escrita que “não trabalhamos. Realmente não trabalhamos. Quando possuiremos kolkhozes como este? Quando, entre nós [brasileiros], terão prosperidade a terra fértil e as mulheres férteis?” (RAMOS, 2011, p. 154). 

Escolhas e representações 

As representações e escolhas realizadas por Graciliano Ramos para a construção de uma sociedade em suas obras indicam um caminho que o autor estabeleceu nas narrativas (autobiográficas ou não). Os seus olhares atentos às populações menos privilegiadas sempre ocorreram, mas aumentaram após a prisão política. A preocupação com a possibilidade de a linguagem chegar à massa, e se o autor seria entendido, entretanto, não demonstrou ser o principal em seus escritos, visto que há uma questão sobre não se tornar panfletário, como é apontado no trecho abaixo, retirado de uma carta enviada ao filho Junio Ramos em 12/10/1945: “Decidi, pois, falar num discurso como falo nos livros. Iriam entender-me? Talvez metade do auditório fosse formado pelas escolas de samba”. Relacionado a isso, Graciliano, na Tchecoslováquia, foi contra a publicação de suas obras em russo, justamente por não se encaixar em uma literatura político-panfletária como a da revolução. Sua colocação sobre o sucesso de vendas de Jorge Amado (SANTOS, 2004, p. 65) pode se relacionar também justamente com essa decisão de não se submeter ao mercado editorial. Isso demonstra a aposta ética do autor, definida por Leonor Arfuch (2010, p. 110) como: “A narrativa [que] envolve como configurativa do espaço privado e comunal e, consequentemente, o de seu papel preponderante nas lógicas da diferença que propõem novas regras, direitos e legitimidades nas atuais democracias.”

Essa aposta indica como o autor não se colocou nesse mercado panfletário e revolucionário justamente por não desejar a literatura ideológica, de fácil acesso. Desejou, então, apresentar o menos privilegiado com uma linguagem mais árida e seca para que pudessem observar essa realidade que fugia do eixo comumente colocado no meio literário. 

Em relação à escolha das pessoas e personagens, também podemos perceber uma diferença após a prisão – ainda que alguns traços já existissem antes. Em São Bernardo, por exemplo, temos um binômio bem explícito da pessoa que se interessa pela educação, pelos trabalhadores – Madalena – e um indivíduo que não se interessa tanto por questões ligadas ao coletivo e à sociedade – Paulo Honório. A obra, lançada em 1934, contrasta com as percepções e colocações do livro publicado após a liberdade: Vidas Secas, escrito majoritariamente na prisão e no período recém-liberto. Sinhá Vitória e Fabiano, retirantes e protagonistas da obra, pertencem ao grupo que Madalena, em São Bernardo, desejou tanto auxiliar na mobilidade e ascensão social, ao mesmo tempo em que os personagens refletem sobre a vida levada por Tomás da Bolandeira, homem com maior prestígio social do que a família pobre na narrativa. 

A questão, com o tempo, passou a tomar um grau de percepção ainda maior: ainda no Rio de Janeiro, logo após se filiar ao Partido Comunista Brasileiro, o autor discursou em um comício no bairro da Tijuca, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Em carta a Junio Ramos – mesma citada nesta seção –, relatou que os microfones foram cortados, mas o evento continuou. Ao escrever sobre sua fala, apresentou:

Afirma a reação que a massa é estúpida, insensível, e por isso devemos oferecer-lhe chavões e bobagens rudimentares. Resolvi não fazer ao público nenhuma concessão: escrevi na minha prosa ordinária, que, se não é natural, pois a linguagem escrita não pode ser natural, me parece compreensível.

Logo, coloca, como no trecho acima, a sua percepção sobre a massa e como as pessoas realmente devem ser tratadas – mesmo que isso difira da lógica de outros escritores e/ou políticos da época: sem preconceitos, em uma conversa justa e oralizada, pois a escrita é sempre (re)pensada. 

Além disso, olhar para baixo aconteceu em uma carta um pouco anterior, de 09/04/1938 para o mesmo filho, e que se relaciona intimamente com o início de Pequena História da República– a última versão deste texto foi feita em 13 de janeiro de 1940. 

E enquanto esperamos vivemos chocando um projeto vago, qualquer coisa a respeito dum romance que vá da favela ao arranha-céu onde os tubarões da indústria digerem o país, e entre o morro e o escritório – a livraria, o jornal, a pensão do Catete, o restaurante Reis, o bar automático, o cinema, o teatro, o mangue e o café da Cinelândia. 

Em 1889 o Brasil se diferenciava muito do que é hoje: não possuíamos Cinelândia nem arranha-céus; os bondes eram puxados por burros e ninguém rodava de automóvel; o rádio não anunciava o encontro do Flamengo com o Vasco, porque nos faltavam rádio, Vasco e Flamengo; na estrada de ferro Central do Brasil morria pouca gente, pois os homens, escassos, viajavam com moderação; existia o morro do Castelo, e Rio Branco não era uma avenida – era um barão, filho de visconde. (RAMOS, 1977, p. 126)

Nos dois trechos, podemos observar sua preocupação em notar e dar atenção às populações que habitavam a cidade carioca, seja as que moravam nas favelas ou nos morros, seja as que morriam na estrada de ferro. Ao longo do texto, Graciliano faz uma breve explicação da história brasileira, a partir da República, e apresenta diversos pontos importantes sobre a sociedade que vive no Brasil, salientando as desigualdades e quem está sem os privilégios mais básicos, se matando de trabalhar para obter o mínimo. 

Em trecho já trabalhado aqui, podemos refletir sobre o relato do dia 01/05/1952, em que o autor decide observar a população que realiza, de fato, o desfile e a festa soviética. 

Hoje, a festa para que fomos convidados. O desfile começou às dez horas e deve ter-se prolongado até sete da noite. Deixamos o Kremlin às três horas. Víamos de longe, com dificuldade, a cabeça de Stalin. Furor de aplausos na multidão. Cristine, mulher de Joffily, emprestou-me um binóculo. Subi à última plataforma exterior do Kremlin, fui andando para a esquerda, cheguei a poucos metros do túmulo do Lenin, no momento em que Stalin ia subindo a escada. Aproximei-o com o binóculo. Está velho, gordo e curvo. […] Stalin passou. Recuei dez metros, quis examinar os figurões que estavam ali a pequena distância. (RAMOS, 2011, p. 298)

Graciliano Ramos prefere se afastar um pouco e analisar quem fazia a festa para depois colocar no texto, no relato ou no livro, quem é posto ao lado da sociedade e quem é apagado da literatura. 

Conclusão

O autor alagoano, portanto, apresentou em diversos textos as suas percepções sobre a sociedade desde as primeiras publicações. Sua literatura, tão rasurada e riscada, buscou sempre dar atenção à representação de grupos marginalizados nas quais ele também se encaixava – nordestino, preso político, viajante –, mas após sua prisão no governo Vargas, a situação ficou ainda mais evidente. Ainda existe material a ser estudado e analisado em  diversos arquivos no Brasil, porém, com as publicações feitas e o material do IEB, já é possível notar as relações de escolha que foram feitas e como o sujeito outro interferiu de forma tão intensa no eu do autor. As relações, mais uma vez na literatura, se mostraram tão intersubjetivas quanto as feitas na escrita de Graciliano. 

As questões relativas ao entendimento de um corpo social, de um grupo politikós, se apresentaram de diversas maneiras ao longo das leituras e interpretações da grande obra de Graciliano. Entrar no arquivo do autor possibilitou contato com os textos não publicados, ainda inéditos – com os trechos colocados aqui para análise e exemplificação – e adquirir informações e comparações entre cada um deles. Através disso, as questões relativas ao sujeito apareceram de forma ainda mais clara e, diferente do que pensei no início da pesquisa, as marcas sociais estiveram nas rasuras e nos tons pastéis do autor desde o início; apenas se intensificaram após o período mencionado. Com a filiação ao partido, a questão aumentou ainda mais do que o supracitado. 

Por isso, podemos pensar que a escrita graciliânica sempre esteve carregada de pensamentos políticos e representativos, mesmo que não de forma objetiva e sempre dita em seus textos, mas principalmente nas entrelinhas de seus diversos discursos. Os livros anteriores à prisão, assim como suas cartas, apresentam grande diversidade de populações marginalizadas, trabalhadores e sujeitos menosprezados pelos mais privilegiados. Então, dando voz aos grupos que de alguma forma inserem Graciliano Ramos na sociedade – nordestinos, brasileiros, pobres, famintos, escritores não valorizados e sem vendas, oprimidos, presos políticos. 

REFERÊNCIAS

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