No Monte Roroima, o Outro

Sofia da Silva Quarezemin

Depois de voltar da cidade-organismo-selva de São Paulo, no tepui se escondia o Macunaíma, que gemia e gemia de preguiça, e virava na rede, e comia uma banana e catava um piolho, ai que preguiiiiça, e brincava e se ria, e criava uma historinha, e vivia em cima de uma perna só, mas não era saci não. Quando era noite e a lua estava magricela, Macunaíma não saía da toca não. Que tinha medo da noite preta que nem índia tapanhuma. 

Então era noite e Macunaíma se foi banhar no rio, porque naquele dia tinha comido três corações de gato do mato, e coração de gato do mato era como coração de leão. Coração de leão dá coragem, que nem dizem as velhas. Não tinha mais medo da noite preta, não. Daí que Macunaíma lembrou que quando criou o Monte Roroima teve preguiça de botar os peixes no rio, se foi rir com uma cunhatã e nunca mais voltou pra completar a criação. Então Macunaíma chamou a Iara Mãe D’Água. Quando o rio estava calmo, Macunaíma pediu para Iara que brincassem para fazer os peixinhos, que tinham que pôr a nadar no rio. A Mãe D’Água muito queria brincar para fazer peixinhos mas o Macunaíma sabia que ela fazia era pegar homem e levar pro fundo do rio, que virava o sagrado barro verde, que as índias Icamiabas pegavam para fazer as muiraquitãs e davam pros índios quando estavam se rindo depois de brincar. 

Brincaram brincaram e fizeram pacu pescado aracu cabeça gorda matrinxã piau cabeça gorda tucunaré e pirarucu. Ai que preguiça, mas a Mãe D’Água era esperta danada e já ia puxando o Macunaíma pra debaixo das águas do Arabopó. Macunaíma não era bobo nem nada, ele logo se agarrou num cipó e a Mãe D’Água ia descendo descendo e ele descendo descendo junto Ave Maria! Então o Macunaíma fez cosquinha na Iara e ela começou a se rir e largou do pé do Macunaíma, ele que estava agarrado no cipó saiu voando mata acima e foi parar lá do outro lado do Roroima. 

Macunaíma, depois de voar por cima de muitas árvores, levar uma bicada de um beija flor de leque canela e arrancar um caju do pé, caiu em cima de uma cabana e saiu rolando morro abaixo. Mas que tanto chão pra cair e o Macunaíma cai bem em cima da cabana do Macunaíma, o Outro. Macunaíma, o Outro, sofria de muito desgoverno, é que ele viajou pra cidade-organismo-selva de São Paulo, ficou doido de pedra e voltou pro Roroima descabeçado. Ele logo saiu correndo morreba abaixo atrás do Macunaíma que destruiu a cabana dele. Macunaíma xispou ligeiro e deu três voltas ao redor do cajueiro com o Macunaíma, o Outro, logo atrás no seu pé. Macunaíma então parou cansado cansado e deu as caras com Macunaíma, o Outro. Minha Nossa Senhora Mãe Santinha que o Macunaíma, o Outro, era o Macunaíma que perdeu metade da consciência na cidade-organismo-selva e se dividiu em dois. Estava certo então porque eram doidinhos doidinhos, um ai que preguiça e o outro com bicho carpinteiro. 

Macunaíma, parado virado em olhos, se espantava com o Macunaíma, o Outro, branquelo branquelo que parecia um inglês, usava uma capa nas pernas que tinha cor de arara e parecia uma trama de fibra de palmeira açaí de tão grossa. Macunaíma, o Outro, tinha medo da noite preta e só dormia debaixo de teto, por isso que não podia deixar o Macunaíma ir-se embora sem arreparar a cabana dele não. Era crime grave cair em cima da cabana dos outros e Macunaíma, o Outro, tinha mais lugar nenhum onde encontrar folha de bananeira pra fazer tudo de novo o telhado. Ali tinha tanto cajueiro e mangueira, mas boa mesmo para telhado era folha de bananeira. 

Mas ai que preguiça, Macunaíma não queria trabalhar não, estava espantado demais com o Macunaíma, o Outro. Mas nem se preocupava em entender como que viveu vários tempos sem perceber que só tinha metade da consciência e que a outra ficou na cidade-organismo-selva de São Paulo e só voltou mais tarde com o Macunaíma, o Outro, esbranquecido, usador de roupa comprida e dormidor debaixo de teto. Mas bem, se Macunaíma podia ter vivido tantos tempos sem metade da consciência, podia viver ainda mais outros tempos assim! Fazia mal não, e Macunaíma, o Outro, muito doidinho de pedra, só aporrinhava que queria uma cabana nova com folha de bananeira bem grossa que era pra não entrar luz das estrelas na hora de dormir. 

Macunaíma se aligeirou em dar um jeito de se livrar do Macunaíma, o Outro, porque não queria trabalhar não, ai que preguiça. Se esforçou muito dentro da cabeça de meia consciência para se lembrar do que fazia no início dos tempos quando alguém estorvava assim. Ah, era! Ele transformava em pedra e era assim que criava as terras, as montanhas e os chãos que as gentes todas pisavam. Macunaíma, o Outro, que tinha metade da consciência do Macunaíma, entendeu o  que estava em plano e agora era ele que xispava corrido do Macunaíma. Mas não tinha problema não, que o Macunaíma era danado que nem Saci numa perna só, pulava alto. Macunaíma logo alcançou o Macunaíma, o Outro, se escondendo por detrás duma anta que comia formiguinhas e, saltando rolando caindo, transformou o Macunaíma, o Outro, em pedra. 

Parece esse um final muito triste pro Macunaíma, o Outro. Mas a verdade é que Macunaíma o transformou no grande monte Anunté-lemon, pedra forte onde nasceram filhos da cor da terra. Hoje, Macunaíma, o Outro, é pai de todo o povo, e seus descendentes o recordam como um muito sábio avô que provê tudo de que precisam. 

 


Da criação 

Para a construção do conto, me aproprio dos escritos de Theodor Koch-Grunberg utilizando os episódios “Incêndio Universal” e “Feitos de Makunaíma”, a partir dos quais teço uma narrativa que os utiliza na criação de feitos com consequências diversas para os atos citados no texto original. Nesse sentido, priorizo também a intertextualidade, já amplamente trabalhada por Mário de Andrade em “Macunaíma”, para servir ao projeto modernista ao me valer de elementos provenientes de diversas fontes e construir um conto único, no qual ainda se pode perceber a presença das peças que o constituem. 

Seguindo esse propósito, o primeiro feito de Macunaíma aqui é a criação de peixes para o rio, o que também se faz presente no texto de Koch Grunberg. Nesse momento, insiro no enredo uma entidade do folclore brasileiro, a sereia Iara, que representa o mito geral das sereias, trazendo ainda o aspecto brasileiro e amazônico. Utilizo, ainda, traços estilísticos do texto de Mário de Andrade, como “brincar e se rir” e a enunciação sem pausas de diversas espécies típicas da região de Roraima, como feito pelo autor em alguns pontos do livro, com animais e frutas, além de escrever com linguagem que tenta se aproximar da fala coloquial, com repetições, interjeições e expressões regionalistas. 

Retomemos o início da narrativa com a volta de Macunaíma da cidade de São Paulo, viagem criada por Mário de Andrade para colocar em contato a cultura indígena e a cultura urbana ocidental, a partir da qual crio o conflito principal da trama: o encontro entre Macunaíma e Macunaíma, o Outro, que se tornou branco na sua passagem pela cidade-organismo-selva. Esse encontro está inserido no texto seguindo o enredo que Koch Grunberg descreve quando, em “Feitos de Makunaíma”, Macunaíma vai até o outro lado do Monte Roroima, onde sofre uma tentativa de roubo de um homem, e prossegue caçando-o, cortando-lhe a cabeça e o transformando em pedra. Aqui, Macunaíma volta de São Paulo com sua metade perdida, Macunaíma, o Outro, e mata-o como uma forma de representar a resistência da cultura indígena na mata virgem em relação à cultura europeia colonizadora, representada pelos hábitos de Macunaíma, o Outro, como usar calças jeans e dormir somente sob teto fechado, ao qual dava tanta importância. Entretanto, temos nesse desfecho a afirmação de Macunaíma, o Outro, como antepassado do povo brasileiro, recurso utilizado para aludir ao massacre histórico e contemporâneo vivenciado pelos povos originários. Nesse ponto, viso explicitar que, mesmo com a forte resistência dos grupos indígenas aos processos colonizatórios empreendidos pela sociedade ocidental, a memória do branco como instituidor da cultura brasileira se sobrepõe à memória da cultura indígena por conta do seu aparato de privilégio social. Por conta disso, escrevo Macunaíma, o Outro, sendo hoje considerado “fundador” do povo brasileiro, o grande avô que provê a terra e a sobrevivência dessa gente. Macunaíma não é, aqui, o herói de nossa gente, mas sim Macunaíma, o Outro, que mesmo morto por Macunaíma na intenção de preservar a integridade da mata e do seu povo, toma protagonismo e reconhecimento pelo povo brasileiro. 

 


Referências 

ANDRADE, M. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. 

KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Del Roraima al Orinoco: Mitos y leyendas de los índios Taulipang y Arekuná. Vol. II. Trad. Federica de Ritter. Caracas: Ernesto Armitano, 1989.