Uma maldição que salva: a experiência de escrita em Clarice Lispector

Natália da Natividade

RESUMO: A literatura de Clarice Lispector burla constantemente a linguagem pautada na convenção e, com isso, o pressuposto mimético que parece orientar parte considerável da atividade literária no século XX. Em uma eterna busca pela transformação na instância discursiva, Clarice coloca em movimento uma cadeia de significantes, de maneira que a realidade tende a se deslocar continuamente em direção a um real inapreensível. Isso aparece, em suas narrativas, na tentativa de inscrever a palavra no “instante-já”, momento preciso em que traduziria o “silêncio”, o “it”, o “atrás do pensamento”, o “indizível”, etc. Apropriando-se do entrelaçamento entre as obras Água Viva (1973), A Hora da Estrela (1977) e Um Sopro de Vida (1978, póstumo), este artigo propõe salientar e analisar a manifestação desses recursos, cujas estruturas apontam para um projeto estético avesso à conformidade de uma história progressiva, linear e causal. O cotejamento teórico e crítico parte de características já apontadas pela crítica literária acerca da obra da autora, baseando-se na bibliografia de Maria L. Homem e Berta Waldman, em ensaios selecionados de Eucanaã Ferraz e de Alexandre Nodari, além das contribuições de Anatol Rosenfeld sobre o romance moderno.

PALAVRAS-CHAVE: Clarice Lispector; literatura; linguagem; silêncio; instante-já.

ABSTRACT: Clarice Lispector’s writing is constantly circumventing language conventions, as well as mimetic patterns that seem to guide a considerable part of literary activity in the 20th century. In an eternal search for transformation in the discursive instance, Clarice sets in motion a chain of signifiers that consequently trigger reality to move continuously towards an inapprehensible state. This is used, in her narratives, to inscribe the word in the “instant-now”, the precise moment in which it would translate the “silence”, the “it”, the “beyond thought”, the “unutterable”, etc. Appropriating the intertwining of works such as Água Viva (1973), A Hora da Estrela (1977) and Um Sopro de Vida (1978, posthumous), this article attempts to highlight and analyze the manifestation of these resources, whose structures point to a dissimilar aesthetic to the conformity of a progressive, linear, and causal history. The theoretical and critical comparisons are reiterated from the author’s aforementioned literary criticisms, based on the bibliography of Maria L. Homem and Berta Waldman, on selected essays by Eucanaã Ferraz and Alexandre Nodari, and also on the contributions of Anatol Rosenfeld on modern romance.

KEYWORDS: Clarice Lispector; literature; language; silence; instant-now.

O que é que se tornou importante para mim? No entanto, o que quer que seja, é através da literatura que poderá talvez se manifestar. (Clarice Lispector – “Ainda Sem Resposta”)

O espetacular e contínuo fracasso da escrita

Perguntaram a Clarice Lispector qual era o objetivo específico de sua escrita quando jovem, se é que havia um, com que a autora respondeu: “apenas escrever”. Não só durante a imaturidade de sua escrita, como em todo seu projeto estético, Clarice é marcada pelo ato de escrever como um fim em si mesmo, em que se escreve apenas porque o simples fato de não escrever poderia matá-la, como Clarice ainda afirma na mesma entrevista concedida à TV Cultura, em 1977. Na necessidade de escrever, surge também a necessidade de ser discursivo, mas o que atrapalha ao escrever é ter de usar palavras, como a autora nos diz na crônica “Lembrança da Feitura de um Romance” (1984). O texto de Clarice é, nesse sentido, o mais puro literário: um fazer que não leva a nada.

A estética de Clarice é marcada pela renovação da linguagem, pelo rompimento com as convenções de gênero, enredo, tempo, espaço e personagens, bem como pela exploração de alternativas nas instâncias narrativas que possibilitam um fazer literário contrário ao pressuposto mimético. Seu texto penetra uma dimensão de escrita que ultrapassa os impasses causados pela crise da representação, desprendendo-se do figurativo e do enredo linear e causal, apontando para tudo aquilo que não se cessa de não se inscrever – o “it”, o “silêncio”, o “indizível”, etc. Clarice foge dos gêneros e da classificação, escreve matéria-prima e apenas isso, afastando-se de uma escrita limitada a ter ou ser lógica.

Obras clariceanas como Água Viva (2020 [1973]), A Hora da Estrela (1998 [1977]) e Um Sopro de Vida (2020 [1978, póstumo]) abordam a questão de maneira notável, sendo todas igualmente bem sucedidas na subversão das instâncias convencionais de narrativa. As respectivas obras não se encaixam nos gêneros romance ou novela, mas tampouco são feixes de anotações livres sobre o mundo, o tempo e a linguagem, de modo a divergir, também, dos moldes de diários ou ensaios filosóficos. O que Clarice propõe é que suas obras sejam, sobretudo, ficções. Trata-se, desse modo, de uma via criativa intensificada pela crítica à cultura hegemônica e à instituição literária, considerando que Clarice defendia com vigor esse local de escrita marginal, carregada de um caráter irresoluto e experimental e, também, de um certo espírito contestatório.

Vê-se bem, assim, que a literatura de Clarice, nas palavras da epígrafe emblemática de Michel Seuphor em Água Viva (2020a, p. 5), não tem a pretensão de ilustrar coisa alguma, sequer de contar uma história ou lançar um mito. A ela, interessava muito mais capturar o instrumento da representação em si, esmiuçar o fazer literário, não mais apreender o real, mas sim eternizá-lo. A linguagem, no entanto, configura-se em uma espécie persistente de limitação, incapaz de completar a construção de sentido.

Não sendo mais passível de ser controlada e dominada, a linguagem passa a conduzir, também, o sujeito. Este, por sua vez, se dá através de suas relações com o mundo e com um outro, o que implica, necessariamente, o acesso e interação com a linguagem, uma vez que ambos são, nos termos do psicanalista Jacques Lacan (apud CULLER, 1999, p. 123), efeitos dela. Em Clarice, a linguagem como suporte do ser é um eixo criador, considerando que há, em suas narrativas, um conflito no que se refere à noção de sujeito como um detentor de uma voz e do potencial de manipular a linguagem. O impasse dessa, por sua vez, encontra-se no inenarrável, nessa distância entre dois pontos que jamais é preenchida. Maria L. Homem (2011, p. 112), também psicanalista, conclui que o discurso é a única união possível entre os pontos desse novo sujeito fragmentado e efêmero.

A pintora de Água Viva, por exemplo, dirige-se eternamente a um interlocutor, pois na carência de completar o sentido é que se apela a um outro que a lê, uma vez que o um só se faz a partir de dois, como afirmou Maria L. Homem (2011, p. 112). Há o desejo constante de tornar-se um sujeito que “é-se” (LISPECTOR, 2020a, p. 24) esse “eu que é” ao redor do “it”, e para isso deve-se inscrever a palavra no preciso momento do “instante-já”, quando não há defasagem entre vivência e escrita e a interferência do tempo dos relógios passa a não importar. O “instante-já”, no entanto, é efêmero e fugidio (LISPECTOR, 2020a, p. 7), jamais sendo capturado. A transformação do ser está vinculada, também, à transformação da linguagem em um novo texto, com que a obra clariceana mostra que só a partir de uma “escrita por intermédio” é que será possível transpor a linguagem a um outro nível, onde o que se manifestará será a “não-palavra”, o “indizível”, o “silêncio”.

Em Um Sopro de Vida, por outro lado, um autor cria uma personagem para sanar suas inquietações sobre a falta de sentido da vida, intercalando vozes. É na comunhão dos dois que se dá a narrativa, posto que um é o preenchimento do que falta no outro: um é a consciência e o outro é o corpo. A questão fica ainda mais evidente nesta obra, em que a eterna busca pela transformação na instância discursiva se dá ao enfrentar os limites impostos pela linguagem, avançando sobre uma dimensão do silêncio que impede o dizer pleno. O autor quer morrer para surgir um sujeito que “é-se”, então sopra a vida em Ângela (LISPECTOR, 2020b, p. 79), criando-a para que ela fale por ele. Tenta, em vão, se despedir dos limites ao delegar as palavras a Ângela, a qual preencherá o espaço das reticências — o “inconcluso” — com a pura abstração, uma vez que o afã da escrita de Ângela é diretamente o próprio escrever, esse escrever que consome o escrever (LISPECTOR, 2020b, p. 84).

Assim também se vê no elo afetivo que Rodrigo S.M., narrador de A Hora da Estrela, nutre por Macabéa, sua personagem, o que faz com que ele se torne sujeito narrado também, posto que ela o gruda na pele (LISPECTOR, 1998, p. 21), e quando a personagem morre ao final do texto, ele morre junto (LISPECTOR, 1998, p. 86). Suas posições fazem com que coexistam: se não houver um, não haverá o outro. Esta obra explora o problema conflituoso de estabelecer relações entre linguagem e realidade, uma vez que a realidade sempre escapa da representação. Rodrigo S.M. escreve por motivo grave de “força maior” (LISPECTOR, 1998, p. 18) e, na compreensão de que as perguntas permanecem, o narrador segue escrevendo, pois só por meio da revelação do ato e da agonia de escrever que se pode alcançar respostas (LISPECTOR, 1998, p. 11).

Nas respectivas obras, os narradores morrem e renascem a todo momento, de tal modo que pulsa, na mesma frequência, o fim e o reinício, o acabamento e a transformação. Eles, sujeitos que detêm o potencial de manipulação da linguagem, morrem na convenção para renascerem em um novo texto, e para isso abandonam a posição tirânica daquele que domina a palavra. O que surge, então, é uma escritura pautada pelo “escrever como procura”, percorrendo o caminho da eterna busca por outro significante na instância discursiva, lutando por alcançar um novo texto capaz de suprir o esgotamento dos significados.

Na tentativa de alcançar um realismo mais sensível, tocando o corpo vivo da realidade, a forma que Clarice Lispector encontra para traduzir literariamente o viver pleno e a experiência em sua totalidade é sempre privilegiar a linguagem, permitindo-se ser instrumento dela e não o contrário. Abstendo-se dessa autoridade sobre o texto é que é possível explorar os limites inerentes do fazer literário, rompendo com as instâncias narrativas e prescindindo o ser discursivo. No parágrafo a seguir, vê-se como o autor de Um Sopro de Vida revela a fragilidade da palavra verdadeira:

Eu escrevo por intermédio de palavras que ocultam outras — as verdadeiras. É que as verdadeiras não podem ser denominadas. Mesmo que eu não saiba quais são as “verdadeiras palavras”, eu estou sempre aludindo a elas. Meu espetacular e contínuo fracasso prova que existe o seu contrário: o sucesso. Mesmo que a mim não seja dado o sucesso, satisfaço-me em saber de sua existência (LISPECTOR, 2020b, p. 79).

Justamente quando a linguagem admite o fracasso em expressar o indizível ao qual está fadada, é que há a possibilidade de manifestá-lo. Na busca por traduzir literariamente um movimento puro, a linguagem mostra-se limitada, até mesmo sufocante, de tal modo que a dimensão do silêncio toca a impossibilidade da totalidade da experiência. Jacques Lacan (apud, HOMEM, 2011, p. 14) insiste que estamos fadados justamente a tentar falar sobre o que não se pode dizer, com o que Clarice parece compreender que há sempre um limite, ao mesmo tempo em que segue tentando ultrapassá-lo.

A necessidade de prescindir de ser discursivo

Na falta de um dizer pleno, a prosa clariceana busca outras formas de gerar significados que compreendam suas inquietações, ou em que possa, pelo menos, exercitar e explorar os limites de se fazer literário. No parágrafo abaixo, vê-se o que o autor de Um Sopro de Vida diz a esse respeito:

Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? esgotaram-se os significados. Como surdos e mudos comunicamo-nos com as mãos. Eu queria que me dessem licença para eu escrever ao som harpejado e agreste a sucata da palavra. E prescindir de ser discursivo. Assim: poluição (LISPECTOR, 2020b, p. 13).

A prosa do autor-narrador é um retrato da busca por uma escrita que aja na transformação da escritura em direção a outras formas de manifestar o que se deseja, de modo a renunciar a tirania do ser discursivo ao se fazer literário, uma vez que a escrita pautada na convenção já não basta. O que nos parece é que em um primeiro momento ele afirma querer escrever de forma quase sinestésica, e mais adiante parece conseguir transformar sua escritura sem abandoná-la. O autor, constantemente refletindo sobre o exercício do ato de escrever, percebe que é inevitável atingir as barreiras que a linguagem o impõe, frequentemente falhando na manipulação da mesma, mas só quando admite a falta de controle sobre a linguagem é que consegue transpô-la a outro nível:

Faço o possível para escrever por acaso. Eu quero que a frase aconteça. Não sei expressar-me por palavras. O que sinto não é traduzível. Eu me expresso melhor pelo silêncio. Expressar-me por meio de palavras é um desafio. Mas não correspondo à altura do desafio. Saem pobres palavras (LISPECTOR, 2020b, p. 37-38).

Essas “pobres palavras”, desconexas e improvisadas, muito representam a estética de Clarice, pois a palavra plena não pode ser escondida e enfeitada em artifícios. Sua desconexão é parte da prosa fragmentada e do fluxo incessante da consciência e do pensamento, soluções encontradas por Clarice para burlar o modernismo literário. Colocamos, então, o autor de Um Sopro de Vida sob a afirmação que Berta Waldman fez, no ensaio “Armadilha para o real (Uma leitura de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector)” (2012, p. 69), sobre Rodrigo S.M, pois, tal como ele, o autor se priva de algo que lhe pertence como sujeito, realizando um voto de pobreza em relação à palavra a ser usada. O desnudamento da linguagem possibilita um grande avanço perante a realidade em seu polo sensível.
A realidade equivale, para Jacques Lacan (apud JORGE, 2008, p. 10-11), ao simbólico-imaginário, sendo uma construção que faz face ao real em diferentes percepções para cada sujeito. A realidade é formulada, mas se estrutura apenas pela linguagem. O real, por sua vez, é marcado pelo caráter evasivo ao sentido, é o informulável e o impossível. A busca pelo real inapreensível causa uma falta constante, em que mesmo aquele advertido sobre tal vazio, ainda assim, empenha-se em transpô-lo.

Em Clarice, há o apagamento do real e a perda da sua origem, o que aparece em suas narrativas pela sugestão da infinitude de imagens causadas pelos personagens, os quais se espelham persistentemente. O sutil universo de significações constantes do texto de Clarice coloca em movimento uma cadeia de significantes, de maneira que o sentido tende a se deslocar continuamente em direção a um real inapreensível. Desse modo, é muito mais fascinante, para a autora, observar essa manobra de reflexos do que o objeto refletido em si, a fim de alcançar não o real, mas sim o corpo inteiro e vivo da realidade. O que guia, então, a revelação de um realismo mais sensível é justamente a naturalização da linguagem, permitindo que esta seja livre, autônoma e despojada. O leitor de Clarice deve deslocar-se para a posição de “não-leitor” (WALDMAN, 1998, p. 294), onde ele compreende que o real não pertence à ordem do simbólico. Ler Clarice é despir-se de tudo aquilo que se conhece como literário, renunciando a compreensão completa e a busca por significados, resultando em uma experiência, por vezes, perturbadora e radical.

A narrativa há de ser simples, tornando-se uma literatura sem ser literatura propriamente dita, uma vez que as condições em que o texto está imerso são de impotência na manipulação da linguagem fundada na convenção, cuja consequência é dada pelo rompimento para com a linearidade das instâncias narrativas. No seu desejo de transgredir a forma tradicional de literatura, Clarice encontra no “improviso verbal” – na libertação da palavra – uma fuga aos limites estreitos do fazer literário. Vê-se o modo privilegiado pelo qual o próprio Rodrigo S.M., narrador de A Hora da Estrela, experimenta e transforma a linguagem em exercício existencial:

Tudo isso, sim, a história é história. Mas sabendo antes para nunca esquecer que a palavra é fruto da palavra. A palavra tem que se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo. E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela. […] E quero aceitar minha liberdade sem pensar o que muito acham: que existir é coisa de doido, caso de loucura. Porque parece. Existir não é lógico. A ação desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto (LISPECTOR, 1998, p. 20).

Não havendo mais preocupações com estilos, gêneros, enredos, tempo, espaço e personagens, Clarice Lispector encontra um campo de intensificação da linguagem propício para exercitar o fazer literário em busca do polo sensível da vida. Berta Waldman, no ensaio “Lamento de um Blue” (1992, p. 103), ressalta que há na estética de Clarice aspectos como: a diluição dos gêneros, a quebra do tempo linear e do espaço físico, o desnudamento contínuo do processo narrativo e dos problemas de ficção. Clarice enfrenta, incansavelmente, os limites do discursivo, buscando expressar o indizível nesta instância, mas inevitavelmente há sempre uma ausência de palavras que consigam traduzir a complexidade de sentimentos e o ritmo pulsante dos pensamentos.

A pintora de Água Viva, por sua vez, insiste que faltam palavras para dizer tudo aquilo que se quer dizer (LISPECTOR, 2020a, p. 23), sendo mais fácil se expressar por meio da pintura. Mas ao se propor a ser “é-se”, dependendo do tu que a lê para completar a construção do sentido, a pintora necessita seguir com o ato da escrita porque quem a lê só conhece a palavra discursiva. Nota-se que o cerne da questão clariceana aqui discutida não se reduz à busca no léxico por novas formas de expressão, mas sim como ir além do discurso linear e causal, o qual já não parece bastar para responder suas inquietações.

Estou consciente de que tudo que sei não posso dizer, só sei pintando ou pronunciando, sílabas cegas de sentido. E se tenho aqui que usar-te palavras, elas têm que fazer um sentido quase que só corpóreo, estou em luta com a vibração última. Para te dizer o meu substrato faço uma frase de palavras feitas apenas dos instantes-já. Lê então o meu invento de pura vibração sem significado senão o de cada esfuziante sílaba […]. Isso que te escrevi é um desenho eletrônico e não tem passado ou futuro: é simplesmente já. Também tenho que te escrever porque tua seara é a das palavras discursivas e não o direto de minha pintura. Sei que são primárias as minhas frases, escrevo com amor demais por elas e esse amor supre as faltas, mas amor demais prejudica os trabalhos. Este não é um livro porque não é assim que se escreve. (LISPECTOR, 2020a, p. 9)

Se partirmos da compreensão diluída de que a linguagem é a expressão do pensamento, encontramos a barreira formada por outra compreensão: o pensamento é abstrato, sendo inevitável que haja arbitrariedade nessa tradução. A pintora de Água Viva parece estar em um exercício constante de experimentar uma linguagem que tenha condições de traduzir e frasear o que só é passível de expressar na pintura (LISPECTOR, 2020a, p. 9). Se a pintura é pura abstração, como transcrevê-la? Valendo-se não só da pintora de Água Viva, como também das outras personagens clariceanas, Alexandre Nodari (2021) nos diz:

Aqui não se trata em absoluto de abandonar o escrever, nem mesmo no caso extremo de não usar palavras; antes, o que é visado é um “escrever por intermédio” de algo outro que a escrita […]. No projeto (ou desejo) mesmo de abandonar a escritura, o que se pretende, na verdade, é a sua transformação em algo outro, no qual o que deve se manifestar através do escrever não é a palavra, mas a não-palavra. (NODARI, 2021)

Dissonante, a pintora de Água Viva quer harmonizar a desordem na própria escritura, pois só se mantém presa à palavra por falta de opção. Pela busca de um realismo mais sensível, que só se encontra no que está atrás do pensamento, é que a pintora afirma ser:

[…] tão curioso e difícil substituir agora o pincel por essa coisa estranhamente familiar mas sempre remota, a palavra. A beleza extrema e íntima está nela. Mas é inalcançável — e quando está ao alcance eis que é ilusório porque de novo continua inalcançável. Evola-se de minha pintura e destas minhas palavras acotoveladas um silêncio que também é como o substrato dos olhos. Há uma coisa que me escapa o tempo todo (LISPECTOR, 2020a, p. 60).

Seu afã não é, necessariamente, abandonar a escrita, mas buscar por meio dela, e por elementos de uma estética interartística, manifestar o “não-dito” e a “não-palavra”. O rompimento para com a linguagem fundada na convenção, de tal modo a prescindir de ser discursivo, é consequência da necessidade de traduzir literariamente o viver pleno e a experiência em sua totalidade, não mais inscrevendo um pensamento, mas sendo em si o pensamento presente. Vê-se assim que as personagens de Clarice passam a buscar meios de eliminar o tempo cronológico dos relógios, evitando que a “coisa” — o que nas narrativas também surge como “instante-já”, “indizível”, “atrás do pensamento”, etc. — escape (LISPECTOR, 2020a, p. 60).

A eliminação da distância entre vivência e escrita

As linhas do limite de se fazer literário são irrevogavelmente borradas nas obras de Clarice, ao questionar, deformar e atravessar o cerne do silêncio, uma vez que a linguagem mostra-se cada vez mais limitada, enfrentando barreiras que só ela própria pode atravessar e estando constantemente fadada ao fracasso. Sua escrita é o retrato da inquietação causada em decorrência da instabilidade entre realidade e representação, entre tempo da vivência e tempo da escrita, em que o eu que narra se distancia do eu narrado, uma vez que este já se tornou objeto e não mais o presente da escrita, como observa Anatol Rosenfeld no ensaio “Reflexões sobre o Romance Moderno” (1973, p. 93).

Em uma atmosfera de urgência, Clarice busca, em sua escrita, diminuir tal defasagem, lutando por alcançar e pegar com a própria mão o pensamento em si, o pré-pensamento e o que está atrás do pensamento. Há, então, nas narrativas clariceanas, uma exploração da consciência dos personagens, pois é no cerne do pensamento que o leitor acompanha o instante em que os questionamentos e respostas são desenvolvidos, sem revisão ou correção.

As personagens clariceanas querem, constantemente, capturar o “indizível” sem hiato temporal, em uma busca conturbada pela palavra em direção à sua plenitude, lutando por ultrapassar o além ou aquém desta. A impotência da escrita e da manipulação da palavra são questões que estão indubitavelmente entrelaçadas ao inconsciente, âmbito em que não se tem controle sobre o que se produz. Diante do exposto, o autor de Um Sopro de Vida reflete:

Tudo o que aqui escrevo é forjado no meu silêncio e na penumbra. […] Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim. Quer dizer: não sei o que fazer com meu espírito. O corpo informa muito. Mas eu desconheço as leis do espírito: ele vagueia. Meu pensamento, com a enunciação das palavras mentalmente brotando, sem depois eu falar ou escrever — esse meu pensamento de palavras é precedido por uma instantânea visão, sem palavras, do pensamento — palavra que se seguirá, quase imediatamente — diferença espacial de menos de um milímetro. Antes de pensar, pois, eu já pensei. Suponho que o compositor de uma sinfonia tem somente o “pensamento antes do pensamento”, o que se vê nessa rapidíssima ideia muda é pouco mais que uma atmosfera? […] O pré-pensamento é em preto e branco. O pensamento com palavras tem cores outras. O pré-pensamento é o pré-instante. O pré-pensamento é o passado imediato do instante. Pensar é a concretização, materialização do que se pré-pensou. Na verdade o pré-pensar é o que nos guia, pois está intimamente ligado à minha muda inconsciência. O pré-pensar não é racional (LISPECTOR, 2020b, p. 17).

Para Anatol Rosenfeld (1973, p. 80), os relógios foram destruídos, devido à eliminação da ilusão do espaço e as alterações na continuidade temporal que ocorrem nos romances modernos. Contudo, a técnica de escrita de Clarice vai além da ficção psicológica já muito utilizada pelos autores modernos, pois enquanto esta se ocupava da área da apreensão racional e comunicável, por vezes ainda se mantendo no âmbito representacional, a intenção estética de Clarice carregava um caráter próximo ao inconsciente da personagem e do que é menos desenvolvido, rompendo com a estrutura e linearidade de todas as instâncias narrativas — enredo, espaço, tempo, personagens.

É no inconsciente que o “instante-já” de Clarice poderá ser apreendido, uma vez que este engloba, em cada instante, a atualidade presente, o passado e, além disso, o futuro, como um horizonte de possibilidades e expectativas, como nos diria Anatol Rosenfeld (1973, p. 82), não havendo defasagem temporal entre a experiência da vivência e a narrada. Na tentativa de eliminar a sucessão temporal e escrever no próprio “já”, a pintora de Água Viva abdica do controle sobre a escrita, não dirigindo nada, nem mesmo suas palavras. A ela, cabe obedecer o trabalho da linguagem, cuja síntese é diretamente o inesperado e o imprevisível, encontrando na fuga da convenção a beleza do improviso (LISPECTOR, 2020a, p. 38). O “improviso verbal” de Clarice implica fugir de uma linguagem limitante e incompleta, explorando os impasses inerentes ao fazer literário.

Maria L. Homem (2011, p. 11) afirma que há uma ânsia de Clarice em eliminar o intervalo entre palavra e coisa, e também entre narrador e objeto narrado. Nota-se que as personagens das obras elencadas se inserem nesse conflito e embate temporal de diferentes perspectivas. Rodrigo S.M., narrador de A Hora da Estrela, diz escrever na mesma hora em que é lido (LISPECTOR, 1998, p. 12), enquanto a pintora de Água Viva afirma reunir em si o passado, o presente e o futuro, uma vez que o tempo é quanto dura um pensamento (LISPECTOR, 2020a, p. 18). Por outro lado, o autor de Um Sopro de Vida ainda se encontra na condição de querer viver vários minutos em um só minuto (LISPECTOR, 2020b, p. 12), sem ter realmente alcançado tal estado. É Ângela quem alcança a marcação de todas as desinências do verbo ser, o “eu” que “é-se” no instante atemporal. Com isso, ela afirma: “Eu sou o atrás do pensamento. […] E acho certo encanto na liberdade das frases, sem ligar muito para uma aparente desconexão. As frases não têm interferência de tempo” (LISPECTOR, 2020b, p. 77).

Clarice tenta, incansavelmente, fundir o tempo de suas narrativas com o tempo da própria escrita, eliminando a distância entre esses pontos, do mesmo modo que tenta aproximar-se do tempo da leitura. No entanto, é inevitável que o texto seja lido temporalmente. A pintora de Água Viva, por exemplo, admite que de qualquer forma sempre haverá alguma defasagem (LISPECTOR, 2020a, p. 44), e, sabendo-se disso, Clarice demonstra em seus textos dois polos extremos: a tentativa de avançar sobre o silêncio e alcançá-lo, mas também a consciência do fracasso dessa busca, respeitando o processo desse anseio impossível. Há, assim, o equilíbrio da inércia e da mudança na mesma dosagem, tal como um perpétuo movimento que não leva a lugar algum.

Traduzir literariamente o momento preciso do “instante-já”

Segundo o ângulo em que nos situamos, Clarice notavelmente busca por outro significante na instância discursiva, lutando por alcançar um texto sem hiato temporal. As limitações, barreiras e dificuldades da linguagem surgem a todo momento, mas há, entretanto, maneiras para driblar tais impasses. Ocorre, então, um incessante exercício de pensar/narrar/escrever no mesmo instante, no “agora”, no “já”:

Agora vou escrever ao correr da mão: não mexo no que ela escrever. Esse é um modo de não haver defasagem entre o instante e eu: ajo no âmago do próprio instante. Mas de qualquer modo há alguma defasagem. Começa assim: como o amor impede a morte, e não sei o que estou querendo dizer com isto. Confio na minha incompreensão que tem me dado vida liberta do entendimento, perdi amigos, não entendo a morte. O horrível dever é o de ir até o fim. E sem contar com ninguém. Viver-se a si mesma. E para sofrer menos embotar-me um pouco. Porque não posso mais carregar as dores do mundo. Que fazer quando sinto totalmente o que outras pessoas são e sentem? Vivo-as mas não tenho mais força. Não quero contar nem a mim mesma certas coisas. Seria trair o é-se. Sinto que sei de umas verdades. Que já pressinto. Mas verdades não têm palavras. Verdades ou verdade? Não vou falar no Deus, Ele é segredo meu. Está fazendo um dia de sol. A praia estava cheia de vento bom e de uma liberdade. E eu estava só. Sem precisar de ninguém. É difícil porque preciso repartir contigo o que sinto. O mar calmo. Mas à espreita e em suspeita. Como se tal calma não pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O imprevisto improvisado e fatal me fascina. Já entrei contigo em comunicação tão grande que deixei de existir sendo. Você tornou-se um eu. é tão difícil falar e dizer coisas que não podem ser ditas. É tão silencioso. Como traduzir o silêncio do encontro real entre nós dois? Dificílimo contar: olhei para você fixamente por uns instantes. Tais momentos são meus segredos. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isto de estado agudo de felicidade. Estou terrivelmente lúcida e parece que alcanço um plano mais alto de humanidade. Ou da desumanidade – o it (LISPECTOR, 2020a, p. 44).

Há, não só em Água Viva, como também nas outras duas obras elencadas, um conflito entre o ato da escrita e a autoridade do escritor em relação à manipulação da linguagem, posto que instintivamente compreende-se que o escritor é o detentor da escolha das palavras e do destino que sua história percorrerá, mas a prosa clariceana demonstra estar em desacordo ao privilegiar totalmente a linguagem. Vê-se bem, então, que o narrador, em princípio, seria a autoridade de seu texto, como nos diz Maria L. Homem (2011, p. 78), uma vez que é ele quem detém a prerrogativa de reescrever, corrigir e alinhar o texto, fato impossível àquele que faz associações em uma sessão de análise, quando a palavra dita não pode ser apagada jamais. Poderíamos pensar, segundo a perspectiva psicanalítica, que as personagens de Clarice são colocadas em um divã, falando sem texto previamente ensaiado.

Não gosto do que acabo de escrever — mas sou obrigada a aceitar o trecho todo porque ele me aconteceu. E respeito muito o que eu me aconteço. Minha essência é inconsciente de si própria e é por isso que cegamente me obedeço (LISPECTOR, 2020a, p. 24).

Tomamos como exemplo a pintora de Água Viva, sendo ela quem deve obedecer a linguagem e não o contrário, tornando-se o instrumento da escritura. O âmago do discursivo clariceano reflete o improviso e o inesperado da vida, situando o trabalho da palavra, nos termos de Rodrigo S.M., em um vazio de artifícios. É nessa perspectiva que se dá o contínuo e complexo mistério da criação literária. Berta Waldman (1992) arrisca uma hipótese sobre o exercício discursivo de Clarice e suas intenções técnicas:

A abordagem direta do ato criativo, enquanto ele se faz, espontâneo e crítico, sem preocupação de fazer estilo, esse improviso verbal que é Água Viva situa-se, acima de tudo, como um exercício existencial. Sua meta é testemunhar a vida. Por isso […] a imposição de uma forma que seja vital, visceral mesmo, onde escrever é viver (WALDMAN, 1992, p. 83).

Em Clarice, a experiência da escrita parte do desejo de inscrever-se no “agora”. O que é importante para a pintora de Água Viva é capturar e transfigurar o próprio viver em ficção, eternizando-o. Para isso, permite-se adentrar no âmbito da falta de construção, da falta de sentido e da falta de lógica, uma vez que a própria existência é carente dessas instâncias. Elástica, excessiva, sinuosa e complexa: a linguagem clariceana se contorce em “malabarismos sintáticos”, como define Berta Waldman (1992, p. 83), pulsando como a vida.

Mas bem sei o que quero aqui: quero o inconcluso. Quero a profunda desordem orgânica que no entanto dá a pressentir uma ordem subjacente. A grande potência da potencialidade. Estas minhas frases balbuciadas são feitas na hora mesma em que estão sendo escritas e crepitam de tão novas e ainda verdes. Elas são o já. Quero a experiência de uma falta de construção (LISPECTOR, 2020a, p. 22).

Há, assim, um contínuo abandono da sintaxe comedida e das sequências regulares, reconstituindo e restaurando a linguagem em um modo de puro desregulamento, procurando por uma nova ordem nascida da desordem, harmonizando a própria desarmonia. A coerência da antiga ordem pautada na convenção e na linearidade das instâncias temporais, espaciais e de enredo, passa a ser desrespeitada por Clarice, realizando uma escrita preocupada apenas com a matéria-prima da palavra. Eucanaã Ferraz, no posfácio “Água de Beber: Água Viva” da edição comemorativa de Água Viva (2020), nos diz que:

As frases de Água Viva são estruturas compactas, conexas, onde fragmentos se combinam graças ao retesamento extremo entre dispersão e concentração. […] Em vez de sentidos completos, imprimem-se como sequências abertas, sinuosas, irregulares, porém em rigorosa harmonia. […] As frases não traduzem experiências — elas são a experiência (FERRAZ, apud, LISPECTOR, 2020a, p. 90).

A tradução da vivência em palavras discursivas livres e despojadas se dá no ato presente ao acolher o denso tecido das associações, confundindo e misturando fragmentos do que é menos desenvolvido. As linhas dos limites da vida se fundem, em simultaneidade, à distensão temporal da escrita e esse processo afeta e modifica diretamente a estrutura do discurso, da frase e do ritmo do texto em geral. Em uma obra literária, a palavra escrita é o modo de expressar o produto da atividade discursiva em que um eu diz algo a um tu. Por sua vez, a fala em princípio é um movimento sem diretrizes, em que o discurso se manifesta sem revisão, de modo a potencializar as estruturas livremente desenvolvidas.

O aspecto da oralidade surge em Clarice na intenção de aproximar-se da falta de revisão que ocorre durante a fala, que quando articulada para o outro, não tem retrocesso ou correção que a retire do mundo. A manifestação desse elemento na escrita clariceana configura o “improviso verbal” anteriormente citado por Berta Waldman (1992), alternativa que Clarice encontra para alcançar a totalidade da experiência. Posto que não só Água Viva se vale desse recurso, como também Um Sopro de Vida, faz necessário salientar a recorrente afirmação do autor de Ângela: “[…] eu não escrevo: eu falo” (LISPECTOR, 2020b, p. 39). Ângela surge, como citado anteriormente, para suprir os questionamentos do próprio autor, sanando as inquietações quanto à falta de significado da vida, e a ela cabe dizer tudo aquilo que o autor não tem coragem de dizer (LISPECTOR, 2020b, p. 40).

AUTOR — As palavras de Ângela são antipalavras: vêm de um abstrato lugar nela onde não se pensa, esse lugar escuro, amorfo e gotejante como uma primitiva caverna. Ângela, ao contrário de mim, raramente raciocina: ela só acredita. Agora, por medo de escrever, deixo-te falar, mesmo inconseqüentemente como te criei (LISPECTOR, 2020b, p. 39).

Faz-se, assim, explícito o fato de que o uso de estruturas livremente desenvolvidas, a exemplo da fala oral, remete à ideia de não haver possibilidade de revisar, apagar ou corrigir, abdicando o domínio sobre a palavra escrita, não podendo, e sequer querendo, interferir. Ao permitir que a palavra seja autônoma, aproximamo-nos do âmago do pré-pensamento, uma vez que o pensamento surge quando quer, sem previsibilidade ou controle, e não quando o sujeito quer, havendo um fluxo incessante da linguagem e uma aproximação para com a realidade efetiva.

A escrita como experiência completa

Como em um fluxo de pensamento, em que o fim de um é necessariamente o começo de outro, o texto clariceano pulsa entre finais e reinícios, entre morte e nascimento, entre silêncio e palavra. Ocorre, assim, a “morte” de uma linguagem pautada na convenção, das palavras em que os significados já se esgotaram e de uma linearidade nas instâncias do fazer literário. Em consequência, há o “nascimento” — também “surgimento” ou “transformação” — de um escrever por intermédio de outras linguagens que não a escrita fundada na antiga ordem.

Clarice, evidentemente, transpõe o discursivo a um outro nível, a fim de manifestar não a palavra em si, mas a “não-palavra”, o “não-dito”, o “silêncio”. Se faz necessário que a escrita aceite sua própria desimportância e sua falha de construção. A via criativa de Clarice caminha em direção à captura do que é menos desenvolvido e de tudo aquilo que não sofre interferência do tempo – o inconsciente –, rompendo com a linearidade do enredo, espaço, tempo e personagens. A prosa clariceana não tem a pretensão de representar coisa alguma, pois não é isso que lhe interessa, seu fazer literário já é a experiência completa.

O texto de Clarice encontra seu fim em si mesmo, um escrever que consome o próprio escrever, em uma eterna busca por outra instância que possa suprir as lacunas da linguagem. É durante o incessante exercício de buscar e não encontrar que a escrita clariceana se depara com a realidade em seu polo sensível, pois justamente no fracasso em expressar o “não-dito”  permite que ele tenha condições de se manifestar. Se a realidade é a matéria-prima, é só a partir da exploração do fazer literário e da linguagem livremente desenvolvida que se poderá alcançá-la. O limiar da dimensão do silêncio toca a impossibilidade de um dizer pleno e isso nada mais é do que o indizível se manifestando no instante preciso em que a linguagem fracassa.

Clarice afirmou em “Ao Linotipista” (1984) que escrever era uma maldição e na crônica “Escrever” reafirmou o argumento, porém ainda acrescentou: “Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. Não me lembro por que exatamente eu o disse, e com sinceridade. Hoje repito: é uma maldição, mas uma maldição que salva” (LISPECTOR, 1984, p. 191). Nessa perspectiva, todo aquele que se propõe “escrever como procura”, enfrentando os desafios do tempo, espaço e significados, está amaldiçoado, isto é, fadado a tentar falar justamente o que não se pode dizer.

Em princípio, o embate entre palavra e silêncio parece não ter solução, mas as personagens de Clarice, enquanto potenciais manipuladoras da linguagem, demonstram se abster de dominá-la completamente. Os narradores de Água Viva, A Hora da Estrela e Um Sopro de Vida deveriam assumir a autoridade sobre seus textos, pois a eles eram concedidos o poder e a habilidade de tecer a palavra e condicionar a apreensão do real, mas, para transpor a linguagem a outro nível e alcançar um novo significante na instância discursiva, tornam-se eles mesmos instrumentos da escritura.

O exercício de Clarice não é, necessariamente, abandonar a escrita ou esquivar-se do uso de palavras, mas sim a busca por um “escrever por intermédio”, transformando-a em um novo texto no qual se deve manifestar o “inenarrável”. As vozes narrativas, as quais têm o seu espaço de vida traçado pelos limites da ficção, emudecem ao final de seus respectivos textos, caindo em um inevitável silêncio que só a falta de palavras pode causar. Contudo, a morte dessas vozes está rigorosamente vinculada ao renascimento e surgimento de um sujeito que “é-se”. É apenas privilegiando-se a linguagem e abstendo-se do domínio sobre a palavra que é possível alcançar o cerne do silêncio, o qual aponta, sobretudo, para um estado de plenitude.

REFERÊNCIAS

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FERRAZ, Eucanaã. Uma Literatura Sem Literatura. 2021. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2021/08/09/uma-literatura-sem-literatura/. Acesso em: 10 dez. 21.

HOMEM, Maria L. No Limiar do Silêncio e da Letra: Traços da Autoria em Clarice Lispector. 2011. 205 f. Tese (Doutorado) – Curso de Letras, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.

LISPECTOR, Clarice. Água Viva. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2020a. 96 p.

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 87 p.

LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 782 p.

LISPECTOR, Clarice. Um Sopro de Vida. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2020b.190 p.

JORGE, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan: a clínica da fantasia. Vol. 2. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. 291 p.

NODARI, Alexandre. A Sombra da Palavra. 2021. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2018/11/26/a-sombra-da-palavra/. Acesso em: 10 dez 2021.

ROSENFELD, Anatol. Reflexões Sobre o Romance Moderno. In: ROSENFELD, Anatol. Texto / Contexto. 2. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973. p. 75-97.

PANORAMA com Clarice Lispector. São Paulo: Tv Cultura, 1977. (28min 31s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU. Acesso em: 02 maio de 2022.

WALDMAN, Berta. Armadilha para o Real: (Uma Leitura de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector). Remate de Males, Campinas, SP, v. 1, p. 63–70, 2012.

WALDMAN, Berta. Clarice Lispector: A Paixão Segundo C. L. 2. ed. São Paulo: Editora Escuta, 1992. 181 p.

WALDMAN, Berta. A Retórica do Silêncio em Clarice Lispector. In: FILHO, Luiz Carlos Uchôa Junqueira (organizador). Silêncios e luzes: sobre a experiência psíquica do vazio e da forma. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. p. 283-294.