As múltiplas faces de Fernando Pessoa: aproximações entre Alberto Caeiro e Bernardo Soares

Monalisa Alves Fernandes Pimenta, Victor Soares Nogueira

RESUMO: O presente artigo procura refletir sobre a obra heteronímica, o processo criativo e a personalidade de Fernando Pessoa através da comparação entre dois de seus heterônimos, o mestre Alberto Caeiro e o guarda-livros Bernardo Soares. Com base nos escritos teóricos de Pessoa e na produção literária dos três autores, utilizamos de três pontos de contato: a inspiração em Cesário Verde, a relação entre o campo e a cidade e a dicotomia entre corpo e mente. Após estabelecermos os posicionamentos dos dois autores fictícios dentro de um eixo temático comum, desenvolvemos a relação de Pessoa dentro desse eixo para evidenciarmos uma ligação entre os autores fictícios e o autor real. Por fim, demonstramos que Pessoa utiliza-se de seus medos e estados emocionais como parte de seu processo criativo, atribuindo certos estados a determinados heterônimos como forma de lidar com a dor de existir.

PALAVRAS-CHAVE: Fernando Pessoa; Alberto Caeiro; Bernardo Soares; Eixo Temático.

 

ABSTRACT: The following article searches to reflect about the heteronymic work, the creative process, and the personality of Fernando Pessoa through the comparison between two of his heteronyms, the master Alberto Caeiro and the bookkeeper Bernardo Soares. With basis on the theoric writings of Pessoa and the literary work of the three authors, we utilize three points of contact: the inspiration in Cesário Verde, the relationship between the country and the city, and the dichotomy between mind and body. After establishing the opinions of the two fictional authors in a same thematic axis, we develop the relationship of Pessoa in this very axis to establish a connection between the fictional authors with the real author. Finally, we demonstrate that Pessoa utilizes his fears and emotional states as part of his creative process, attributing certain states to certain heteronyms as a way of dealing with the pain of existing.

KEY-WORDS: Fernando Pessoa; Alberto Caeiro; Bernardo Soares; Thematic Axis.

 

Dentre as inúmeras produções literárias de Fernando Pessoa, o heterônimo Alberto Caeiro e o semi-heterônimo Bernardo Soares podem ser consideradas as mais interessantes em virtude do relacionamento íntimo que possuem com seu criador, sendo o primeiro o mestre de outros dois heterônimos e do próprio ortônimo, e o segundo um companheiro por grande parte de sua vida e um dos autores de um complexo e fragmentário texto em prosa poética, O livro do desassossego.

Os dois apresentam uma posição elevada e única em comparação aos outros heterônimos, ainda que de formas diferentes, com Caeiro estando acima de todos, incluindo Pessoa, e Soares estando em pé de igualdade com este. É com base nessas relações que procuramos comparar a obra dos dois autores fictícios, analisar seus pontos de contato e desacordo, e estabelecer uma conexão com o seu autor real.

Antes de comparar as personalidades e estilos desses dois grandes autores, ambos frutos da mente de um outro supra-autor, Fernando Pessoa, é importante, primeiramente, conhecer as particularidades e origem de cada um deles dentro do drama pessoano para encontrar os pontos de contato e distanciamento. Para este propósito, nossa análise partirá da carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, em que explica a gênese de seus heterônimos.

A começar por Caeiro, temos que:

[…] – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e tomando um papel comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. […] E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive (PESSOA, 2015b).

Esse momento de êxtase vivenciado por Pessoa quando criou Alberto Caeiro é relevante para compreender o motivo da personalidade e estilo deste. É curioso pensarmos que o surgimento do mestre Caeiro aconteceu no ano anterior à sua morte em 1915. Mesmo tendo aparecido somente em 1914, Caeiro tem data de nascimento, vida e personalidade próprias. Nasceu em 1889, em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo, órfão de pai e mãe, foi criado por uma tia-avó. Sua educação foi bastante limitada, tendo cursado apenas o ensino primário. 

Pessoa caracteriza-o como pessoa simples e ingênua, para quem não era necessário pensar para conhecer as coisas do mundo, apenas olhar, enxergar, sentir e tocar o mundo à sua volta. Caeiro era contra a filosofia e religião, para ele, se existisse Deus, com certeza Deus era a natureza, aquilo que ele pudesse ver, e sendo as coisas da natureza, não precisam ser chamadas de Deus. 

Fernando Pessoa, ao criar Alberto Caeiro, intitulou-o logo como seu mestre, o qual valorizava seus sentidos, principalmente a visão, sem se entregar a qualquer pensamento filosófico, religioso ou metafísico. Para ele, o que importava era aquilo que estivesse vendo, o que era sempre uma novidade, pois “Toda a coisa que vemos, devemos vê-la sempre pela primeira vez” (Id., 2016, p. 532). E não precisava buscar encontrar explicações do porquê a flor é amarela, ela simplesmente é, pois os olhos a veem assim.

Em contraste a essa personalidade bem definida do heterônimo, temos agora a do semi-heterônimo, que se diferencia “porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade” (Id., 2015b).

Com essa mutilação da personalidade, Soares surge fragmentado, vivendo o constante movimento da cidade: os avanços e refluxos, as angústias e esperanças. Diferente de Caeiro, que tinha seu caráter próprio, definido e sem alterações, Soares representa algumas das variadas personalidades que permeavam a vida do supra-autor: “nas páginas do Livro do Desassossego ecoam praticamente todas as vozes que habitaram Pessoa” (LOURENÇO, 2009, p. 63 apud MADURO, 2016).

Apesar de não ser o único autor, função que divide com outros dois semi-heterônimos, Vicente Guedes e Barão de Teive, Soares foi o primeiro a assinar o livro, antes desse papel ser propriamente designado a Guedes (cf. LOPES, 2017, p. 22). E, dentro do drama pessoano, é o único dos três autores a ter sobrevivido o seu supra-autor (cf. Ibid., p. 30).

Portanto, temos em Bernardo Soares, um segundo eu de Fernando Pessoa. Uma persona que surge na sua vida a partir de 1913 e lhe acompanha até o ano de sua morte, representando um possível reflexo da mentalidade do ortônimo, o que dá à sua obra um valor significativo para o entendimento do ortônimo e seus heterônimos.

Quanto ao indivíduo em si, Soares foi um ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Aparentava ter trinta anos, e carregava consigo um ar de sofrimento e angústia, do qual era difícil identificar o motivo. Sua mãe faleceu quando tinha um ano de vida e o pai suicidou-se quando tinha três (cf. PESSOA, 2017, p. 518). Foi acolhido pelas tias na província, e levado por um tio “para um escritório de Lisboa” (Ibid., p. 344).

Já no caráter de escrita, diferente do ânimo em Caeiro, Pessoa diz escrever Soares quando está com sono: “meu semi-heterónimo [sic] Bernardo Soares, […] aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio” (Id., 2015b).

Com essas informações em mente, seguimos para o primeiro ponto de contato entre os dois: a inspiração em Cesário Verde. Tanto Caeiro quanto Soares declaram abertamente a influência ou a admiração que sentem por Cesário, com aquele dedicando O pastor amoroso, uma coletânea de poemas, a ele, “Esta obra inteira é dedicada por desejo do próprio autor à memória de Cesário Verde.” (Id., 2015a); e com este pondo-o no topo de sua lista hipotética de influências literárias, “abriria o espaço ponteado com o nome de Cesário Verde” (Id., 2017, p. 344).

Essas homenagens evidenciam a importância de Cesário aos dois autores, os quais apresentam importantes influências temáticas do poeta em suas obras. O foco no presente, na realidade que os cerca, e nas sensações que vivenciam e o estilo observador e impressionista de descrever a realidade em que se encontram são todos elementos cesarianos que se encontram, com variadas intensidades, presentes na obra de Caeiro e Soares.

Cada um, porém, molda esses elementos para servirem aos seus propósitos estéticos e literários. Caeiro, por estar situado no campo, longe dos conflitos urbanos, toma a ideia de observação da realidade e a eleva como forma de conceber o mundo apenas pelo que vê e sente na natureza, focando nas sensações que esta lhe produz para apreciar sua beleza, alcançar a verdade e não pensar, de forma que tudo parte do exterior:

Sou um guardador de rebanhos.

O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés

E com o nariz e a boca. 

 

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la

E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

 

Por isso quando num dia de calor

Me sinto triste de gozá-lo tanto.

E me deito ao comprido na erva,

E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz (Id., 2016, p. 549-550).

Soares, por sua vez, como habitante da cidade, mantém grande parte dos elementos mencionados, mas os aplica não apenas ao ambiente urbano em que vive e às pessoas que encontra, mas, principalmente, ao seu interior, construindo uma realidade interna com base nos seus pensamentos e sonhos, onde tudo parte de si mesmo: “Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos. Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que universo? O universo não é meu: sou eu” (Id., 2017, p. 349).

Percebemos que essas diferentes formas de construir uma realidade por sensações sofrem influência do ambiente que cada autor habita, o que nos leva ao próximo ponto: a relação com o campo e com a cidade.

Como foi dito, Caeiro vive em um ambiente campestre, local que lhe permite viver em harmonia com a natureza, longe das preocupações e estruturas urbanas que impedem o homem de ver e sentir a natureza, pois está cercado de construções:

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo…

Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer

Porque eu sou do tamanho do que vejo

E não do tamanho da minha altura…

 

Nas cidades a vida é mais pequena

Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,

Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,

Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,

E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver (Id., 2016, p. 544).

Nesses versos, chamamos atenção para a imagem negativa de uma cidade fechada, em que o homem é pobre e pequeno, em oposição à positiva de um campo aberto, em que o homem é rico e grande. Tal lógica é utilizada pelo autor para explicar a tristeza que sente ao ler as poesias de Cesário Verde, pois este é um prisioneiro na cidade (cf. BAROSA, 1995, p. 259), tal julgamento nos permite atribuir a liberdade como outro elemento positivo ligado ao campo. 

Curiosamente, Soares concorda, ainda que indiretamente, com a dicotomia entre campo-positivo e cidade-negativa de Caeiro:

Uma aurora no campo faz-me bem; uma aurora na cidade faz-me bem e mal, e por isso me faz mais que bem. […] A manhã do campo existe; a manhã da cidade promete. Uma faz viver; a outra faz pensar. E eu hei sempre de sentir, como os grandes malditos, que mais vale pensar que viver (Id., 2017, p. 386).

Faz, contudo, uma reconfiguração, o campo é um ambiente estático, enquanto a cidade é mutável, oferecendo sempre novas possibilidades e potencialidades, o que a torna quantitativamente superior ao campo que só faz bem. Por essa lógica, percebemos que o ajudante de guarda-livros, ainda que à sua maneira pensativa, também busca experimentar coisas novas, sejam elas boas ou ruins, ideia que o assemelha a Caeiro e sua perspectiva de ver tudo pela primeira vez.

Nesse mesmo fragmento, temos também outra justificativa para a preferência do mestre. No campo se vive e na cidade se pensa, para quem prefere sentir e nunca pensar, o primeiro é o ambiente perfeito. Da mesma forma, o segundo é o local ideal para quem vive a sonhar e pensar. Em consonância a essas preferências, seguimos para o próximo ponto: a concepção de mundo com base na relação entre interior e exterior. 

O mestre busca negar o interior, pois “Caeiro se concebe como um ente sem ‘dentro’, sem ‘interior’, isto é, fora de si, sua relação consigo e com a realidade é pautada pelo ‘fora’, pelo ‘externo’ desta forma, o corpo é seu referencial para a vida” (HENRIQUES, 2007, p. 135). Nessa concepção, temos uma associação entre exterior e corpo, em que este permite conceber o mundo, em oposição à associação interior e mente, em que esta permite conhecer a si mesmo.

Neste raciocínio, retomamos as associações feitas anteriormente entre campo, sensação e liberdade em oposição à cidade, pensamento e prisão, que passam agora a ser subordinadas à dicotomia principal entre corpo e mente. Soares sustenta nosso argumento ao caracterizar o homem de ação: “Todo homem de acção [sic] é essencialmente animado e optimista porque quem não sente é feliz” (PESSOA, 2017, p. 436). Nesta frase, a palavra “sente” está no contexto de simpatia pelos outros, referindo-se, portanto, ao pensamento e à capacidade mental de reconhecer os outros e sentir com a mente.

Caeiro, por sua vez, também concorda, pois, apesar de querer viver apenas pelo corpo, ele é capaz de sentir e compreender seus sentimentos internos, o que lhe traz infelicidade:

Os meus pensamentos são contentes.

Só tenho pena de saber que eles são contentes,

Porque, se o não soubesse,

Em vez de serem contentes e tristes,

Seriam alegres e contentes (Id., 2016, p. 536-7).

O raciocínio, a lógica, a empatia e toda outra forma de conhecimento de si representam capacidades mentais, são internas e, portanto, levam à infelicidade. Nisso, podemos entender a linguagem e a argumentação simples que Caeiro emprega em suas obras e conversas como uma forma de alcançar o estado ideal de contato exclusivo com o exterior.

Enquanto o heterônimo busca ser apenas corpo, o semi-heterônimo segue o caminho oposto para ser apenas mente, onde a realidade passa a ser uma extensão, ou até um produto da mente do indivíduo, o que resulta em um universo egocêntrico em que tudo se baseia em si mesmo e a existência concreta dos outros é questionável e subordinada à imaginação:

Uma das minhas preocupações constantes é o compreender como é que outra gente existe, como é que há almas que não sejam a minha, consciências estranhas à minha consciência que, por ser consciência, me parece ser a única.

[…]

Tenho por mais minhas, com maior parentesco e intimidade, certas figuras que estão escritas em livros, certas imagens que conheci de estampas, do que muitas pessoas, a que chamam reais, que são dessa inutilidade metafísica chamada carne e osso (Id., 2017, p. 439-440).

Neste fragmento, vemos que a existência corporal é praticamente deixada de lado em favor da fictícia, os seres da imaginação são mais concretos que os que estão na realidade. Toda a existência parte da mente, tudo se volta para o interior de Soares, incluindo os sentimentos pelos outros, pois “Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso — em suma, é a nós mesmos — que amamos” (Ibid., p. 339).

Apesar dessa lógica, não há uma rejeição da realidade em si, pois é graças a ela que se pode sonhar o impossível:

Mais vale, na verdade, o patrão Vasques que os Reis de Sonho; mais vale, na verdade, o escritório da Rua dos Douradores do que as grandes áleas dos parques impossíveis. Tendo o patrão Vasques, posso gozar o sonho dos Reis de Sonho; tendo o escritório da Rua dos Douradores, posso gozar a visão interior das paisagens que não existem. Mas se tivesse os Reis de Sonho, que me ficaria para sonhar? Se tivesse as paisagens impossíveis, que me restaria de impossível? (Ibid., p. 374)

Com isso, percebemos que Soares busca uma rota mais conciliável entre realidade e pensamento, contudo, como vimos, a relação não é equilibrada e aquela está sempre servindo aos interesses deste. Isso revela o extremismo de Soares, tudo existe em função de seu interior, com o exterior atuando como extensão de sua mente, apesar disso, o ajudante também sente a necessidade de encarar a realidade para fortalecer seus pensamentos. 

Nesses fragmentos, percebemos também a linguagem mais complexa e a argumentação mais elaborada do guarda-livros, que questiona e reflete sobre todos os aspectos de sua identidade, de seus sentimentos e do mundo que o cerca, tirando-lhes sua concretude e trazendo-os para seu plano mental.

Frente a esses dois caminhos extremos, entendemos que ambos buscam sentir o mundo de acordo com seu referente preferido, o qual também influencia sua forma de expressão literária. Para Caeiro, o mundo é exclusivamente a realidade exterior que ele sente com o corpo, já para Soares o mundo é majoritariamente interno, mas precisa subordinar a realidade externa para intensificar seu mundo e senti-lo com a mente.

Esses métodos opostos revelam um objetivo comum de integração com a realidade, a perspectiva exterior busca fazer do indivíduo uma parte da realidade, favorecendo o corpo em detrimento do indivíduo; enquanto a interior busca fazer da realidade uma parte do indivíduo, favorecendo a mente e controlando o mundo exterior. 

Vemos, com isso, que, apesar de serem bastante diferentes, com um preferindo viver o mundo apenas de forma externa e sensorial, enquanto o outro escolhe a vida internalizada, Caeiro e Soares compartilham de uma espécie de eixo temático comum, em que se debruçam sobre assuntos similares, mas adotam pontos e opiniões completamente opostos. Ambos admiram Cesário Verde, tomando seu estilo para suas obras, e ambos têm uma forte relação com o ambiente onde vivem, diretamente ligada à sua relação com corpo e mente. A partir deste eixo, consideremos agora outro indivíduo quanto a seus posicionamentos, o discípulo e amigo, Fernando Pessoa.

Este compartilha da estima dos heterônimos por Cesário Verde, considera-o um grande poeta (cf. PESSOA, 2015e) e reconhece seu papel como “precursor inconsciente” para o surgimento do movimento Sensacionista (cf. Id., 2015d). Contudo, Pessoa não apresenta o mesmo nível de admiração ou influência vista nos heterônimos, e isso se deve à forma em que concebe seu ambiente.

Em um poema dedicado a Santo Antônio, Pessoa descreve seu próprio nascimento, “Nasci exactamente no teu dia —/Treze de Junho, quente de alegria,/Citadino, bucólico e humano” (Id., 2015c). Há, na origem do ortônimo, a presença do campo e da cidade, o que possibilitaria uma abordagem poética complexa ao considerarmos as dicotomias expostas até agora, contudo, o ambiente externo raramente aparece na poesia pessoana, ao invés disso, encontra-se uma rejeição dele:

Ama, canta-me. Eu nada quero

Do mundo lá fora ouvir.

Sofro e, se penso, desespero,

Eu quero dormir.

 

Um sono em que a alma se esqueça,

Vazio embalar —

Que o som do teu canto próprio desfaleça

E eu durma sem sonhar. 

[…] (Id., 2016, p. 280)

 

Pessoa não está interessado em seu ambiente, seja ele rural ou urbano, e prefere refugiar-se nos sonhos, atitude que o aproximaria de uma preferência pelo interior, contudo, como vemos no poema, esse refúgio para o sono é acompanhado de um desejo para dormir “sem sonhar”, ou seja, sem pensar. O próprio ato de dormir afasta-se da dicotomia corpo e mente, uma vez que o sono traz uma dormência dos sentidos, das sensações e dos pensamentos. Tudo isso se ramifica em uma rejeição maior da própria existência:

Um elemento muito comum nos poemas de Pessoa é o estar doente. Pessoa sente dor, queixa-se dela em diversos poemas, de dores no corpo, na cabeça, mas a dor maior vem de pensar e do existir como ser pensante. Adoecer é quando dói o ser. Penso que esta é a doença falada, as doenças da alma. Em Fernando Pessoa, é a dor de ser que predomina sobre todas as outras, supostas ou reais (PROCHET, 2012, p.19).

A dor de existir como um ser possuidor de mente e corpo, capaz de pensar e sentir, é apenas fonte de sofrimento para Pessoa, que prefere distanciar-se e rejeitar tudo isso, em busca de um estado de sono sem sonho, de não existência. Uma situação completamente diferente para Soares e Caeiro, que apesar de terem suas rejeições e aflições, encontram refúgio em aspectos da realidade, seja de forma externa, com o uso do corpo, ou interna, com o uso da mente.

Chegamos, assim, à última parte deste trabalho, a relação de Alberto Caeiro e Bernardo Soares com seu criador, Fernando Pessoa. O fato de que os dois primeiros partem de um eixo base para desenvolverem-se e criarem opiniões próprias e distintas, revela um possível método para a criação heteronímica do último. Se ele considera sua criação como uma forma de despersonalização (cf. PESSOA, 2015b), ou seja, um distanciamento do indivíduo Fernando Pessoa para o desenvolvimento dos heterônimos, podemos concluir, então, que esse processo envolve partir de elementos conhecidos pelo ortônimo, a admiração por Cesário e as dicotomias campo-cidade e corpo-mente, para criar indivíduos parcialmente libertos de seus temores e pavores.

Ao considerarmos isso, voltamos para a gênese em êxtase de Caeiro e a escrita sonolenta de Soares mencionadas no início. Pessoa elabora suas identidades de acordo com seu humor e estado mental, e para cada um desses momentos concebe e sente o mundo de uma forma diferente, adotando um heterônimo apropriado capaz de abraçar parte de seus temores.

Em um raro momento de extrema euforia, nasce um ser distante de si mesmo, isto é, o elevado mestre Caeiro que vive a sentir no exterior do campo, escolhas completamente alheias ao ortônimo. Já em momentos mais comuns e frequentes de sonolência, surge um ser mais próximo, isto é, o colega Soares que vive a pensar e internalizar a vida urbana, atitudes mais próximas das do supra-autor.

É com base nesse método que vemos a importância de um semi-heterônimo como Soares. Pela suspensão do raciocínio e da inibição que Pessoa diz sentir ao escrevê-lo, entendemos que este foi capaz de refletir Fernando Pessoa ele mesmo. Devido ao cansaço e à sonolência, o autor encontrava-se em um estado de devaneio, com suas qualidades mentais limitadas, e, portanto, menos inclinado à despersonalização.

Em virtude disso, encontramos semelhanças entre os dois autores, ambos possuem um ar por vezes depressivo, cansado e angustiado, que deseja fechar-se em si mesmo, e uma escrita guiada por pensamentos vagos, lembranças, sonhos, esperanças vazias e crenças sem fundamentos. Em oposição a esse paralelo, Alberto Caeiro surge em um momento de êxtase, de excitação mental elevada e fortemente envolvida com o distanciamento pessoano, o que o leva a possuir valores fortemente distintos do supra-autor.

Como afirma Lopes (2017, p. 30), “Pode-se dizer que cada um dos seus ‘outros’ foi ele, a seu próprio modo.” Por isso, Soares, em sua condição de semi-heterônimo que acompanha Pessoa em seus momentos mais frágeis, bem como os outros autores do extenso livro, são uma ponte para conhecer Fernando Pessoa e aplicar essas relações aos heterônimos, como foi feito neste trabalho com Caeiro, não apenas para entender suas identidades e estilos, mas encontrar o Pessoa que se esconde dentro deles, tanto como criador, com métodos, estéticas e processos, quanto como indivíduo, com medos, humores e opiniões.

 

Referências bibliográficas

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