Entre luzes e sombras: a especulação metafísica nos poemas de João Filho em a Dimensão Necessária

Érique Santana Oliveira

RESUMO: João Filho, nascente no cenário poético contemporâneo, já pode ser incluído dentro do resumido grupo de poetas que fazem poesia metafísica no Brasil atualmente. Destaca-se pela facilidade com que percorre os mais variados terrenos no fazer poético e com que trata de assuntos comuns originalmente ao eixo filosófico dentro de sua lírica. O referido trabalho busca apontar os elementos da poesia de João Filho em A Dimensão Necessária que podem ser compreendidos como uma experiência de especulação metafísica através da ars poetica pela qual o poeta baiano dialoga com a tradição metafísica e literária ocidental. Além de apresentar a poesia de João Filho ao crivo da pesquisa acadêmica.

PALAVRAS-CHAVE: Poesia; Metafísica; João Filho.

 

ABSTRACT: João Filho, born in the contemporary poetic scene, can already be included within the summarized group of poets who make metaphysical poetry in Brazil nowadays. He stands out for the facility he uses to traverse the most varied fields in poetic making and with which he deals with subjects originally common to the philosophical axis within his lyric. This work seeks to point out the elements of João Filho’s poetry in A Dimensão Necessária that can be understood as an experience of metaphysical speculation through the ars poetica by which the Bahian poet dialogues with the Western metaphysical and literary tradition. In addition to presenting the poetry of João Filho to the sieve of academic research

Key Words: Poetry; Metaphysical; João Filho.

 

 

INTRODUÇÃO

A Poesia Metafísica é um movimento literário que se destacou entre 1600 e 1680 e foi influenciado por questões filosóficas, religiosas e científicas da época. Segundo Fábio Alcides de Souza (2016, p. 37) “a chamada ‘poesia metafísica’ teria suas origens ainda no século XVII, na Inglaterra; posteriormente, já no final do século XVIII, haverá a retomada desta temática pelos filósofos românticos alemães”. Os poetas metafísicos são conhecidos por utilizar uma linguagem complexa e desafiadora, com uso frequente de metáforas elaboradas, paradoxos e conceitos abstratos. Eles buscavam expressar reflexões sobre a natureza da realidade, a espiritualidade, o amor, a mortalidade e a relação entre o mundo material e o mundo espiritual. John Donne é um dos principais expoentes da Poesia Metafísica, e sua obra influenciou outros poetas dessa corrente, como George Herbert, Andrew Marvell, Richard Crashaw, entre outros. Esses poetas foram inovadores em seu uso da linguagem e da forma, rompendo com as convenções poéticas mais suaves e sentimentais da época. Sua poesia desafiava as normas estabelecidas e buscava explorar questões mais profundas e abstratas, tornando-se uma importante expressão literária do período do Renascimento.

O questionamento que coloco é: há espaço para especulações metafísicas na poesia contemporânea? O poeta baiano João Filho é um exemplo que pode nos dar uma resposta afirmativa a essa questão. Nascido em Bom Jesus da Lapa – BA no ano de 1975, João Filho destaca-se pela facilidade com que percorre os mais variados terrenos no fazer poético e com que trata de assuntos comuns ao eixo filosófico dentro de sua lírica. Um poeta capaz de manter, em sua poética, uma grande sensibilidade ao estado de coisas captado por si, sendo assim um exemplo vivo do que Pound definiu por “antenas da raça”.

Críticos do século XX, como Herbert Grierson e T. S. Eliot, valorizaram a Poesia Metafísica, resgatando sua herança lírica e influenciando poetas em outras nações. Esse reconhecimento, como atesta Cantuário (2021), permitiu que a herança lírica dos poetas metafísicos fosse resgatada e também influenciasse poetas em outros países, transcendendo fronteiras culturais. Neste ensaio, direcionado por uma “compreensão filosófica da literatura como poesia, trabalho interior das palavras que desvela ao homem seu modo de ser no mundo” (NUNES, 2009, p. 100 apud PINHEIRO, 2011, p. 18), pretendo apontar os elementos da poesia de João Filho em A Dimensão Necessária que podem ser compreendidos como uma experiência de especulação metafísica através da ars poetica pela qual o poeta baiano dialoga com a tradição metafísica e literária ocidental, visto que “julgar uma obra individual é, antes de mais nada, assinalar-lhe a posição no conjunto de que participa (NUNES, 2009, p. 100 apud PINHEIRO, 2011, p. 20). Para isso, analiso, brevemente, Nitidez Submersa e O Riacho, dois poemas incluídos no livro A Dimensão Necessária.

 

A LUMINOSIDADE DE NITIDEZ SUBMERSA

A luz é um símbolo tradicional no ocidente quando o assunto é fazer referências de natureza ontológicas, para citar dois exemplos: na teologia de São João Evangelista, a luz está sempre associada à verdade e em oposição às trevas da mentira. Para o discípulo amado a verdade não é somente o ser das coisas, mas o Ser por excelência (HAHN e MITCH, 2015). Nessa mesma linha, Pseudo-Dionísio Areopagita (séc. V) desenvolveu uma metafísica da luz, que terá no gótico “a mais perfeita expressão concreta […] o ser tem a natureza da luz e emana como esta. O Bem é belo, e é harmonia e luz, proporção e claridade. Esplendor. Luz. O homem deve mirá-la, amá-la e aspirar a ela” (TATARKIEWICZ, 2002, p. 33 apud COSTA, 2009, p. 39-40). Disso infere-se, portanto, a importância do conceito metafísico de claritas no legado cultural ocidental, sobretudo medieval. O próprio João Filho na seção Pequenos Tesouros Portáteis apresenta ao leitor uma série de poemas que manifestam uma profunda fenomenologia da luz.

Já na primeira seção de A Dimensão Necessária, intitulada Luz Alheia, se deixa uma imagem, um símbolo muito recorrente no livro e na abordagem metafísica que o poeta envereda. Como bem observa Wladimir Saldanha, a imagem da luz manifesta a direção que o poeta assume para dar largada à sua romaria lírica pelos cantos de Salvador, “pela qual a ordem da Criação, no sentido que lhe compreende a tradição judaico-cristã, aqui e ali se entremostra” (SALDANHA, 2018, p. 113).

Com o poema Nitidez Submersa, o canto que traz os sinais de um princípio ordenador inteligível que rege toda a estrutura da realidade, João Filho ilumina os caminhos do leitor, em especial daquele que não conhece Salvador. O autor de Auto de Romaria se transfere de Bom Jesus da Lapa para, desta vez, apresentar a capital baiana. Esse poema, posto já no início, é muito sugestivo, pois toda busca da ordem pressupõe a consciência de uma dimensão necessária que nos remete à urgência da “visão metafísica de mundo”, porque ao passo que o sujeito desperta essa visão, alargando suas pupilas e inspecionando pacientemente a realidade das coisas, será possível enxergar o quão frágil são os fios que sustentam a imanência em que os indivíduos estão inseridos: “Nas grafias do diáfano/ se entrevê pela fuligem/ a clara sustentação/ dos fios frágeis do mundo” (FILHO, 2018, p. 14).

Na primeira estrofe o eu lírico canta: “Nos sapatos confortáveis/ um pouco velhos e gastos/ a fuligem das cidades/ redesenha o seu mapa”. Na fuligem dos sapatos do eu lírico o mapa da cidade é redesenhado, isto é, a sua essência, aquilo que a faz ser o que é, e não outra coisa é cartografada pelos passos “do poeta andarilho”, que, assim como em Auto de Romaria, perfaz uma peregrinação subjetiva enquanto se (re)descobre como sujeito dessa história. Em última análise, não se trata de contemplar a ordem superior da realidade em oposição com o que compõe a ordem temporal, tal como fez Augusto dos Anjos em Nirvana (SOUZA, 2016), mas de descobrir na história e nas coisas efêmeras incluídas nela as coisas eternas.

João nos dá o resultado acabado de suas meditações, nas quais terá reconhecido que a cidade ou o amor a uma mulher, o espaço público ou o quarto de dormir, com toda a sua circunstancialidade, com todo o seu componente demasiado humano, não excluem – antes reativam − a percepção de uma ordem maior (SALDANHA, 2018, p. 114).

Santiago (2018, p. 128) destaca o valor transcendental que João Filho emprega nas imagens que pulam de seus versos em Nitidez Submersa. A fuligem está associada ao pó do mundo; “pó” faz recorrente referência, na poesia de João Filho, à natureza efêmera daquilo que é material e à mortalidade humana.

Através de uma existência errante, em trânsito – em trânsito = transitória, que é a própria condição do homem como ser mortal – e figurada pela fuligem no sapato, é possível vislumbrar ‘as grafias do diáfano’, isto é, os vestígios de um plano maior, escritos por um Criador. A ‘nitidez submersa’ que o poema menciona são, portanto, os sinais de um princípio ordenador inteligível em meio ao aparente caos da existência (SANTIAGO, 2018, p. 128).

A arte é um agente de interpretação da realidade, é isso o que nos mostra Victor Sales Pinheiro (2009) ao observar a interface entre o pensamento de Benedito Nunes e Hans-Georg Gadamer, salientando como a arte goza dessa posição privilegiada. Desse modo, conclui-se que a arte, como experiência da verdade do ser, é muito mais que puro esteticismo. A arte promove uma genuína experiência ontológica. Aplicando esse raciocínio a Nitidez Submersa, o eu lírico busca definitivamente transmitir uma especulação, enquanto o poeta busca transmitir uma verdade inescapável, como fica evidente na quinta estrofe: “Na verdade nada escapa/ é preciso a cada istmo/ contra essa névoa cegante/ renovar o gesto limpo”, e trazer o claritas, a luz da verdade ao leitor a fim de abrir-lhe os olhos para enxergar essa nitidez que apesar de submersa na fuligem não pode ser sufocada pelo peso e profundidade das coisas  (cf. FILHO, 2018, p. 13-14).

Sem dúvidas, os poemas em Luz Alheia se mostram verdadeiros poemas filosóficos que apresentam ao leitor como a dimensão metafísica está posta na dimensão física, e João Filho, como moderno profeta, se dá o trabalho de anunciar essa dupla condição da estrutura da realidade, porque a linguagem poética é também especulativa:

Para Gadamer, a linguagem poética tem uma estrutura intrinsecamente especulativa, e processa-se sempre como evento de revelação. Pela sua intimidade com o núcleo poético, criativo da linguagem, o poeta a experimenta, vive-a com mais intensidade do que os outros homens, alargando-lhe a potência ontológico-especulativa de revelação do ser (PINHEIRO, 2009, p. 11).

Nitidez Submersa não trata apenas da descrição poética a partir das percepções do vate baiano, poesia como espelho, mas da iluminação — já que a ideia de luz é assaz pertinente aqui — de aspectos não evidentes da realidade mediante a imaginação poética e atinge seu verdadeiro centro, poesia como lâmpada (ABRAMS, M. H. 2010 apud SANTIAGO, 2018).

 

O OCASO DE O RIACHO

Se na primeira parte João Filho nos apresenta essa energia espiritual vislumbrada também por T.S Eliot (Light Invisible) e por São João Evangelista, a Luz capaz de fecundar o mundo de sentido, na segunda parte veremos a “noturnidade” de Sonoite. Esta segunda seção é composta por dois longos poemas – Riacho na abertura; Sonoite para fechar – entremeada por dois sonetos e um poema em sete quadras.

Tomada por pressuposto a noção da ambivalência da estrutura da realidade, o imanente reflete o transcendente, e o transcendente se manifesta de alguma forma no imanente, João precisa cantar sobre aquilo que compõe a humanidade, mas sempre com o olhar da eternidade. E um dos mais frequentes temas na história da humanidade é o problema do sofrimento humano, e “o conhecimento da dor não lhe poderia escapar, digo, porque essa é uma pedra de toque das mais importantes para um metafísico. Sonoite é uma seção sobre a dor, sobre o conhecimento da dor” (SALDANHA, 2018, p. 116). João Filho não trata esse problema de forma leviana, seria muito mais fácil definir o sofrimento como o resultado da suposta maldade do cosmos, do nefasto estrago de algum demiurgo, a perspectiva gnóstica não é a melhor maneira de analisar o sofrimento. É preciso olhar novamente para a questão e percebê-la de novo desde a origem. Diante da impossibilidade de fazer esse recuo com todo o gênero humano, João Filho se contenta em voltar para dentro de si.

O Riacho, poema de abertura da sessão Sonoite, carrega em sua forma a marca da tradição medieval ocidental em sua terza rima de decassílabos ao bom estilo de Dante. Saldanha (2018) destaca uma voz que relata ao poeta “coisas da sua humanidade”, inclusive a dor que circunda a alma humana. A estrofe de abertura apresenta essa voz a atravessar a memória do eu lírico: “Canta a voz do riacho mansamente/ indo por entre a mata da memória/ para despertar o mundo ao sol nascente” (FILHO, 2018, p.45). A voz do riacho, tal como as musas das grandes epopeias, inspira o eu lírico a contemplar as ambivalências e contradições de sua alma, as águas do riacho o conduz a uma viagem para dentro de si “descendo pro restrito/ coração-calabouço onde a luz dual/ da candeia moral os seus mosquitos/ queima”. Chega-se à constatação dolorosa da condição daquela alma humana que enxerga sua miséria e vileza: “tudo que em mim é vil e miserável/ ao me deitar corrompe os travesseiros/ o recinto mais fundo e inescapável”.

Entretanto, o eu lírico se posiciona diante disso não como um niilista nos píncaros de seu desespero, mas como um santo medieval sustentado “no barbante invisível” de um “mistério palpável e concreto”. Porque apesar das coisas de sua humanidade, há algo intraduzível, que se mostra maior que a morte, a tornar a vida imensa:

Na casa-coração nosso transporte

é a profunda inteireza da presença,

transubstanciação maior que a morte,

 

tornando a vida imensa, imensa, imensa…

O sincero exercício de unidade,

O sentido inconsútil da evidência,

 

que desce e transfigura. Ah…  mas verdade

se diga: intraduzível sendo claro,

por ser simples o todo na metade (FILHO, 2018, p. 45).

O Riacho pode ser entendido como o canto-tensão de um eu lírico que sabe da brevidade da vida, pois ouviu o “que disse o pássaro com sua queda”. Dessa breve vida, gastou parte amando “profundamente mais o adorno do que o real”, contudo, conserva no seu imo peito um gesto de esperança de quem tem dentro de si a plena consciência de um mais-além a quem recorre a piedade.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Dimensão Necessária é, mutatis mutandis, como um evangelho, no sentido mais estrito da palavra, uma boa notícia que desvela e revela ao indivíduo imerso na agitação moderna o substrato espiritual que compõe a realidade humana. Realidade esta que não está excluída das ambivalências, que tem suas luzes e suas trevas, seu sentido preservado até nos momentos de sofrimento, no conhecimento da dor.

Nitidez Submersa promove uma genuína experiência ontológica, traz os sinais de um princípio ordenador inteligível que rege toda a estrutura da realidade, manifesta a consciência de uma dimensão necessária alargando suas pupilas e inspecionando pacientemente a realidade das coisas, com o intuito de evidenciar o quão frágil são os fios que sustentam a imanência em que os indivíduos estão inseridos. Aqui está a luz que preenche a realidade de sentido.

O Riacho se mostrou o canto sobre a perecividade da vida. A tensão ao se notar que gastou parte dessa breve vida dando demasiada importância às aparências , contudo, ainda se conserva no peito um gesto que transmite esperança na plena consciência de um mais-além a quem recorrer a piedade.

João Filho, nascente no cenário poético contemporâneo, se mostra capaz de manter, em sua arte, uma grande fidelidade à realidade do estado de coisas captado por si. Dialoga com a tradição ocidental, sobretudo lusófona, com a mesma grandeza com que se desvincula dela, seu caráter apolíneo é perfeitamente contrabalanceado por seu caráter dionisíaco. Mediante sua imaginação lírica somos conduzidos a contemplar o verdadeiro centro das questões levantadas pela tradição filosófica que se desenvolveu no mundo ocidental, somos convidados a fazer parte de uma espécie de “segunda navegação” na arte poética.

 

REFERÊNCIAS

COSTA, Ricardo da. A luz deriva do Bem e é imagem da Bondade: a metafísica da luz do pseudo-dionísio areopagita (séc. v) na concepção artística do abade suger de saint-denis (c. 1085-1151). Scintilla: Revista de Filosofia e Mística Medieval, Curitiba, v. 6, n. 2, p. 39-52, jul./dez. 2009.

CANTUÁRIO, Victor André Pinheiro. Desvelando o inefável: a força metafísica da poesia de Hilda Hilst em torno do amor, da morte e de Deus. 2021. 225 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2021. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/215464.  Acesso em: 04 ago. 2023.

FILHO, João. A dimensão necessária. 2.ed. Itabuna: Mondrongo, 2018.

HAHN, Scott; MITCH, Curtis. O evangelho de São João: cadernos de estudo bíblico. Campinas: Ecclesiae, 2015.

PINHEIRO, Victor Sales. O Diálogo entre Filosofia e Literatura: a Crítica de Benedito Nunes e a Hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. Intuitio, Porto Alegre, v. 2, n. 3, p. 364-376, nov. 2009.

PINHEIRO, Victor Sales. Benedito Nunes, filósofo da literatura. A Palo Seco: Escritos de Filosofia e Literatura, Aracaju, ano 3, v. 1, ed. 3, p. 18-28, 2011.

SALDANHA, Wladimir. Entre coisa e céu, amoravelmente. In: FILHO, João. A dimensão necessária. 2.ed. Itabuna: Mondrongo, 2018. Cap. Alguma crítica sobre A dimensão necessária, p. 113-121.

SANTIAGO, Emmanuel. Poesia Comunhão: a poesia de João Filho à luz de João Cabral. In: FILHO, João. A dimensão necessária. 2.ed. Itabuna: Mondrongo, 2018. Cap. Alguma crítica sobre A dimensão necessária, p. 122-141.

SOUZA, Fábio Alcides dos. A metafísica possível em Augusto dos Anjos. Ribanceira: Revista do curso de Letras da UEPA, Belém, v. 6, n. 1, p. 36-43, jan./jun. 2016. Semestral.