A cosmovisão dos povos originários em Eliane Potiguara

Bernadete Sandy Vicente

RESUMO: O objetivo deste artigo é pesquisar o significado da cosmovisão dos povos originários em O pássaro encantado e A cura da terra, de Eliane Potiguara, que apresentam em comum o respeito que os povos originários têm pelos seus ancestrais indígenas, pois trazem as memórias ancestrais e os ensinamentos para a vida. Dessa forma, outros escritores indígenas começam a expressar a escrita sobre a literatura indígena e a preservação da natureza, assim como para mostrar a cosmovisão indígena e entender a importância dela para os povos originários com relação à natureza.

PALAVRAS-CHAVES: Literatura indígena; Eliane Potiguara; Cosmovisão indígena.

RESUMO: The objective of this article is to research the meaning of the cosmovision of the native peoples in Eliane Potiguara’s O pássaro encantado and A cura da terra, that share in common the respect that native peoples have for their indigenous ancestors, as they bring ancestral memories and teachings to life. In this way, other indigenous writers begin to express writing about indigenous literature and nature preservation, as well as to show the indigenous cosmovision and understand its importance for indigenous peoples in relation to nature. 

KEY-WORDS: Indigenous Literature; Eliane Potiguara; Indigenous worldview.

 

1 INTRODUÇÃO

A literatura de autoria indígena veio para agregar conhecimentos sobre a cultura indígena, por meio da escrita e oralidade; para que se possa ler e escutar; entender a luta dos direitos desses povos pela identidade, pelo respeito e, também, para valorizar a natureza. Dessa forma, os autores indígenas obtiveram a resistência na escrita, com o objetivo de proporcionar aos leitores o aprendizado sobre as histórias dos antepassados, que eram a invasão dos colonizadores no território indígena e a presença da espiritualidade nos elementos da natureza.

Na literatura indígena, a escrita, assim como o canto, tem o peso da ancestralidade. Diferencia-se de outras literaturas por carregar um povo, história de vida, identidade, espiritualidade. Essa palavra está impregnada de simbologias e referências coletadas durante anos de convivência com os mais velhos, tidos como sábios e guardiões de saberes e repassados aos seus pela oralidade. Essa prática ainda é usada, pois é parte integrante da cultura em movimento (KAMBEBA, 2018, p. 40).

Percebe-se que o surgimento da literatura indígena acrescenta o aprendizado sobre a cultura dos povos originários, oportunidade de conhecer a cosmovisão indígena, que está relacionada com a presença da espiritualidade nos elementos da natureza. Esses são representados por espíritos ancestrais ou curandeiros. Portanto, os cosmos da natureza são símbolos de respeito, fé e proteção para os povos indígenas.

A literatura na vida dos povos indígenas sempre se fez presente, a primeira forma foi através das rodas de conversa ao pé de uma árvore e ao cair da noite. Ao redor dos mais velhos, as crianças ouviam as narrativas e os narradores iam se revezando na contação. Muitas dessas narrativas trazem figuras lendárias, como Curupira, Boto, Matinta; outras traziam a cosmogonia do povo, as lutas, as resistências, mas o que importava era que todas tinham uma prática peculiar de informação presente na expressão de quem contava – o narrador (KAMBEBA, 2018, p. 41).

A voz da ancestralidade está presente nas histórias ancestrais, porque traz costumes e ensinamentos de vida transmitidos de geração a geração. Diante disso, os avós indígenas são considerados figuras importantes de respeito para os povos originários, pois os anciãos resgatam as memórias dos antepassados. Um exemplo é a escritora Eliane Potiguara que teve, na sua escrita e oralidade, a oportunidade de trazer a voz ancestral feminina da avó indígena, Maria de Lourdes de Souza, com o intuito de resgatar a identidade e valorizar a cultura dos povos originários.

Com uma perspectiva infantil, as obras O pássaro encantado (2014) e A cura da terra (2015), de Eliane Potiguara, apresentam, em comum, a cosmovisão indígena, a presença da espiritualidade nos elementos da natureza e, também, trazem os aprendizados que a avó indígena transmite para as crianças na comunidade.

pássaro encantado começa com um diálogo no meio da mata, em que as crianças brincavam perto da casa onde moravam. Ao escutarem o som de um pássaro que cantava muito alto, a avó indígena conta que – em certa época – as crianças estavam tristes, porque o pajé tinha morrido, pois ele curava todos na aldeia. Um dia, a anciã resolveu ir para a floresta e ficar sozinha refletindo no meio da mata onde tinha os elementos da natureza e com eles haviam muitos seres encantados. A avó indígena assobiava; e foi então que vieram as lembranças de um pássaro que ela escutava quando era criança. Após o pássaro ancestral pousar no seu braço, ela o levou para a comunidade e, quando esse vai embora, deixa algumas penas coloridas e a alegria de volta ao coração das crianças.

É importante dizer que, na história, existe o narrador impessoal, com isso pode-se trazer um exemplo que se refere ao espaço que apresenta os movimentos dos personagens no meio da natureza, conforme verifica-se em: “O meio da mata, as crianças brincavam bem perto da casa onde moravam. Adoravam jogar bola e peteca. E riam… e riam… e riam…” (POTIGUARA, 2014, p. 4).

A narrativa é dividida entre dois tempos verbais: o passado e o presente. No passado, existem as memórias ancestrais da avó indígena que conta às crianças sobre a morte do pajé, a qual, consequentemente, deixou todos os povos originários tristes. Por outro lado, no tempo presente, surgiu o pássaro encantado para curar a tristeza e, com isso, trazer alegria e harmonia. A Grande Avó indígena é uma narradora oral, que traz as memórias do passado para que as crianças fiquem sabendo o que aconteceu de triste na aldeia. No trecho a seguir, é apresentado uma história do passado transmitida pela Grande Avó indígena:

Num tempo muito antigo, todas as crianças da aldeia estavam muito quietas e sérias. Elas não brincavam com seus brinquedos, não corriam como antes e nem pulavam nos rios. Nem um sorriso elas davam… E criança parada é sinal de algo que não vai bem!

Ela estavam assim porque o Grande Avô tinha morrido. Todos sentiam a falta dele, que era o pajé da comunidade, aquele que curava e conversava com todos.

Era normal que as pessoas ficassem dias e meses meditando sobre a morte dos parentes. Era um momento de reflexão sobre a passagem da pessoa pela vida, o que ela construiu, como contribuiu para o bem-estar da família, como amou seus filhos, netos e bisnetos… Mas as crianças não entendiam as coisas dessa maneira. Só viam a tristeza (POTIGUARA, 2014, p. 8).

Nesse momento, a voz ancestral feminina relata as memórias de um tempo que deixou marcas sobre a morte do pajé, uma pessoa que cuidava dos povos indígenas. Além disso, o pássaro encantado chega para alegrar a comunidade que estava triste. É necessário inferir que a reflexão ou o ato de meditar acontece sempre no lugar sagrado, a natureza, porque é um espaço que apresenta harmonia e, também, pelo fato de os indígenas conversarem com os espíritos da floresta.

O tema central do livro está voltado para a espiritualidade dos seres encantados ou espíritos das florestas que estão nos elementos da natureza. Diante disso, percebe-se a preocupação dos povos originários em valorizar a floresta, pois consideram um lugar sagrado, para realizar a reflexão e as orações, pedindo ajuda e proteção aos espíritos de luz. A religiosidade é a força para manter os indígenas na caminhada pela luta dos direitos.

Certo dia, a Grande avó, muito triste, foi para a mata. Lá havia animais, frutas, árvores gigantes e rios. Também havia os seres encantados, os espíritos da floresta, das pedras, das águas, das cachoeiras e o espírito dos rios (POTIGUARA, 2014, p. 11).

A cosmovisão indígena está presente na espiritualidade dos elementos da natureza, os quais são essenciais para os povos originários. Com a chegada da avó indígena no lugar sagrado, que é a mata junto com os seres espirituais ou encantados, percebe-se a afinidade que ela tem com a natureza: “Também havia os seres encantados, os espíritos da floresta, das pedras, das águas, das cachoeiras e o espírito dos rios” (POTIGUARA, 2014, p. 11).

Nesse trecho, observa-se que a avó indígena foi para a mata para encontrar a espiritualidade que está presente nos elementos da natureza, isto é, os seres encantados, os espíritos da floresta, das pedras, águas, cachoeiras e o espírito dos rios, os quais representam a fé para os povos originários. Entende-se que a espiritualidade dos cosmos é a salvação dos indígenas, vista com o intuito de não desistirem de si mesmos e continuarem na resistência para serem respeitados no espaço que vivem. Acredita-se que esse afeto destinado à natureza é fruto da educação e do respeito que os indígenas receberam dos seus ancestrais.

Há uma relevante passagem dessa obra que se pode acrescentar, que são as plumas coloridas do pássaro encantado. Elas deixam subentendido que sejam indicação das cores que representam a bandeira do Brasil. A evidência entre as cores das penas e da bandeira mostra que os povos originários pertencem ao Brasil: “O imenso pássaro começou a cantar a melodia de outrora e a bater as asas sobre a cabeça da Grande Avó, soltando penas verdes, amarelas, azuis e brancas. Era o pássaro gigante!” (POTIGUARA, 2014, p. 15).

Entende-se que a ligação direta que a avó indígena tem com o pássaro ancestral está relacionada ao afeto com os elementos da natureza. Nesse caso, é o pássaro que simboliza a força espiritual, amenizando o sofrimento dos povos indígenas no que toca à ausência do pajé. Acrescenta-se que a espiritualidade do pajé que morreu está presente no pássaro, ou seja, sua alma espiritual. Ao mesmo tempo, pode-se falar que, com a afinidade do reencontro deles, é como se já se conhecessem de outras vidas.

Era como se ele reconhecesse na Avó a Grande Mãe da Terra, aquela que tudo sabe e protege, a que tem a intuição como estrada e anda com a guerreira à sua frente contra qualquer perigo à sua espécie. É a mulher que detém o conhecimento da história daquele povo e que tem o dom de curar a todos: a mulher sábia! A mulher que todos respeitam!

A vó recolheu as penas do chão e mostrou o braço soberano para que o grande pássaro nele pousasse (POTIGUARA, 2014, p. 18).

É importante ressaltar que o som do canto do pássaro faz com que a avó indígena lembre de sua infância, melhor dizendo, de quando escutava a avó dela contar as histórias ancestrais, as quais são transmitidas para as próximas gerações. Obter os saberes indígenas é considerado, para muitos deles, uma herança cultural que os anciãos deixam; é um legado para as crianças com o propósito de crescerem com os ensinamentos dos ancestrais. É necessário não esquecer que o canto representa a essência da cultura dos povos originários, uma cosmovisão indígena.

Além da mãe terra, um outro lugar sagrado da etnia Potiguara são as matas, local onde moram os espíritos e os ancestrais. O Cacique Aníbal afirma que os espíritos estão todos dentro da mata. Se derrubar as matas, tudo se acaba. Essa dimensão sagrada é confirmada também pelo cacique Djalma, quando diz que as matas são onde os ancestrais vivem lá dentro. A etnia Potiguara tem a convicção do valor sagrado presente nas matas” (BARCELLOS, 2014, p. 116-117).

Sobre o contato com a natureza, o Cacique Djalma expressa-se com as seguintes palavras:

Eu vou por lá, nos pé de árvores, perto de casa ou distante, converso, faço minhas orações e meus pedidos e aí eu me entrego. Me sinto livre: eu peço pela paz, para o meu povo Potiguara. Eu peço muito a Deus Tupã, pai, que dê força a minha pessoa, que olhe para o meu povo (BARCELLOS, 2014, p. 117).

É relevante dizer que os caciques têm o pleno conhecimento da cultura dos povos potiguara. Com isso, percebe-se que as matas são importantes, porque a espiritualidade dos ancestrais manifesta-se através dos cosmos da natureza com intuito de aconselhar os melhores caminhos aos povos originários. Portanto, entende-se que preservar a natureza é essencial para os indígenas, pois existe uma conexão de afeto e respeito com o lugar sagrado.

 

Para os Potiguaras, os encantos, os aliados que protegem a natureza e os lugares dos rituais fazem parte da cosmovisão indígena. […] Para os Potiguaras, a Terra é sagrada, lugar onde existe vida mineral, vegetal animal e sobrenatural, lugar onde moram os espíritos, os ancestrais e os encantados. Toca no fundo da alma, mexe com a estrutura emocional, psíquica, subjetiva do índio. É algo que está arraigado, marcado nas entranhas e na vida indígena. Mexer com algo sagrado é tocar na essência do ser. Isso porque, na mãe terra, povoam os encantos, os espíritos e os aliados que protegem a natureza e os lugares dos rituais. É da mãe Terra que provêm todos os alimentos da humanidade. Essa dupla dimensão é vital para os Potiguara e não pode estar dissociada uma da outra (BARCELLOS, 2014, p. 159).

Diante disso, percebe-se que os povos originários apresentam subjetividade com os elementos da natureza, pois cada um desses têm um significado importante que é a religiosidade. A crença vem dos espíritos ancestrais que estão encarnados nos elementos da natureza, porque transmitem a sabedoria ancestral e resistência indígena. Portanto, entende-se que o ato dos indígenas preservarem a natureza mostra que o espaço é o lugar sagrado em que ocorrem os rituais e as orações com o intuito de pedirem ajuda aos espíritos dos antepassados.

O livro A cura da terra começa com o diálogo entre a menina Moína e a sábia senhora indígena, uma história ancestral, repassada para as futuras gerações. A avó conta para a neta sobre o passado triste do seu povo que sofreu com a invasão dos estrangeiros nas terras dos povos originários, em que muitas mulheres adoeceram de tristeza, não cantavam mais e tão pouco pintavam o corpo. Ela conhece a identidade indígena, que são os cantos e as danças que trazem alegrias para os povos originários. A menina adquire saberes sobre a espiritualidade ancestral que está nos passarinhos que chegaram trazendo felicidade e saúde por conta do sofrimento causado pelos estrangeiros nas terras indígenas.

A narrativa é testemunhal, porque a avó indígena traz as lembranças dos antepassados. Portanto, ela conta para a neta as histórias dos povos originários, para que, assim, Moína conheça a cultura indígena. Com o narrador em terceira pessoa, a história mostra acontecimentos sobre os antepassados, mas, ao mesmo tempo, ele mostra-se em defesa da cultura indígena, porque caracteriza a avó indígena e a neta Moína: “a anciã conhece o jeitinho suave da neta, tão se­denta por entender o sentido da vida e a razão do existir” (POTIGUARA, 2015, p. 8).

A voz da ancestralidade é muito importante para os povos indígenas, posto que existe uma relação de respeito das crianças com os anciãos. Diante disso, observa-se que as histórias ancestrais são sempre repassadas para as crianças com o propósito de ensiná-las a cultura indígena e a espiritualidade. Na leitura de A cura da terra, acontece o diálogo entre avó indígena e a menina Moína:

A anciã conhece o jeitinho suave da neta, tão sedenta por entender o sentido da vida e a razão de existir. A conversa começa sempre com uma pergunta infantil como esta:

— Vovó, por que eu sou criança?

— Você é a transformação – responde pacientemente, a sábia senhora índia.

— Você é a vida em um mágico movimento crescente. É a razão de viver de seus amados pais. Veja o tamanho de seu pé… Não é o mesmo de quando você tinha quatro anos de idade! Lembra-se de seus cabelos? Como cresceram! Hoje, suas perguntas são diferentes das de ontem! Você está mudando todo dia, e assim é a transformação da vida, a bênção dos céus (POTIGUARA, 2015, p. 3-4).

Com base no diálogo entre avó indígena e Moína, observa-se que a menina é uma personagem simples. Ela não muda a personalidade durante a narrativa, mesmo que a avó diga, na conversa, que a neta está mudando, só que continua a mesma personagem do começo ao fim da narrativa.

Veja o tamanho de seu pé… Não é o mesmo de quando você tinha quatro anos de idade! Lembra-se de seus cabelos? Como cresceram! Hoje, suas perguntas são diferentes das de ontem! Você está mudando todo dia. e assim é a transformação da vida, a bênção dos céus (POTIGUARA, 2015, p. 3-4).

Pela leitura do livro, entende-se que existe também a cosmovisão indígena que está espiritualizada nos alimentos e nas águas, que expressam a tristeza e a revolta pelo sofrimento dos ancestrais. Pode-se acrescentar, também, a presença da multimodalidade no texto, uma interação que ocorre com as palavras e os elementos da natureza, que são os alimentos e as águas. Essa é uma separação da escrita, a qual demonstra um sentimento de tristeza; as águas representam um movimento no formato de ondas:

Até os alimentos ficaram

t  r  i  s  t  e  s

por não poderem servir  mais os humanos de forma coletiva e aprazível.

Acabaram fugindo para não serem consumidos.

(POTIGUARA, 2015, p. 14).

 

As águas corriam mais rápidas do que o normal pelos leitos dos rios, porque não queriam mais matar a sede de ninguém naquela aldeia. Quando eram recolhidas, choravam até evaporar (POTIGUARA, 2015, p. 15).

Para os povos indígenas, esses símbolos da natureza são como humanos que expressam sentimentos. Portanto, mais uma vez a cosmovisão está presente, pois é a essência humana que pede ajuda para que volte a paz nas terras indígenas.

A Carta, de Pero Vaz de Caminha, é um documento que informa as primeiras impressões sobre a beleza das terras brasileiras, porém, é descrita pelo olhar eurocêntrico. Ela apresenta uma visão imaginativa de que tudo que é detalhado, estando em plena perfeição. Por outro lado, percebe-se a desconstrução das concepções preestabelecidas sobre os indígenas no Brasil; com isso, surgem os textos dos escritores indígenas, que buscam relatar as memórias dos ancestrais que testemunharam o sofrimento diante das invasões dos portugueses, mostrando uma versão diferente das relatadas por autores brancos.

É importante mencionar um trecho que se refere ao documento informativo, que é a Carta de Pero Vaz de Caminha, e mostrar, através da leitura A cura da terra, uma oposição de argumentos entre o eurocentrismo e a contação sobre as memórias ancestrais indígenas. Consta da seguinte maneira: “Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos” (CAMINHA, 1963, p. 8). Já em relação A cura da terra, é possível destacar o diálogo que acontece entre a avó indígena que conta para a neta Moína sobre a invasão nas terras indígenas:

— Mas por que isso aconteceu, vovó?

Porque os estrangeiros maus só queriam lucro, e encheram a terra com algodão, dominaram os antigos guerreiros índios e os fizeram escravos, e ai de quem não os obedecesse! Aqueles estrangeiros traziam sua própria água e usavam adubo e maquinários agrícolas na terra.

Nossa região foi manchada de sangue indígena pela brutalidade de estrangeiros insensíveis, covardes e dominadores que impuseram

 

o s   v í c i o s,

a    m a l d a d e,

a    m e n t i r a,

a   c o b i ç a ,

a   c o m p e t i ç ã o,

o  e g o í s m o

 

e trouxeram sofrimento e divisão para as famílias que ali nasceram.

(POTIGUARA, 2015, p. 16-17).

Percebe-se que existe uma contraposição relacionada ao que foi descrito no documento informativo, que se refere a um não saber do colonizador sobre a existência do ouro ou de outro metal. Por outro lado, sabe-se que, nesse livro de Potiguara, existe a presença da voz ancestral da avó indígena, a qual mostra, no diálogo sobre as lembranças, o massacre vindo por parte dos colonizadores, os quais só queriam lucro com a plantação de algodão. Esses mesmos colonizadores fizeram com que a terra deixasse de produzir os alimentos para sustentar os povos originários.

Os milhares de passarinhos que chegavam para curar a terra eram os espíritos dos curandeiros ou ancestrais que ouviram o choro aflito das crianças. E, quanto ao cantar das músicas mais sagradas, significa que eles estão presentes espiritualmente nos rituais que são realizados na floresta. Portanto, sabe-se que a visão cosmológica está presente nos passarinhos; com isso, é necessário acrescentar, também, que as cosmovisões dos diferentes povos trazem histórias ancestrais que apresentam muitos saberes nas narrativas relacionadas com a cultura, a música, as danças sagradas, a espiritualidade, as florestas e os elementos da natureza.

— Os ancestrais ouviram os soluços das crianças?

— Ouviram, sim. As lágrimas das crianças trouxeram de volta os espíritos dos curandeiros e, com eles, voltaram também o amor, a paz, a saúde, trabalho e a música. Outras forças que orientavam a cultura daquele povo foram ressurgindo, e os espíritos dos anciãos e das anciãs do passado, do presente e do futuro tomaram a forma de milhares de passarinhos, que sobrevoaram as terras indígenas e cantaram as músicas mais sagradas do planeta terra (POTIGUARA, 2015, p. 22-23).

Lembrando que a força das lágrimas das crianças apresenta a cosmologia de que existe um poder mágico ou espiritual, isso chamou os espíritos dos curandeiros para salvar a terra do sofrimento. Pode-se ressaltar, ainda, que o choro delas foi importante, pois entre as crianças e os avós indígenas têm uma relação afetiva e respeito.

O mundo tradicional Potiguara é um mundo encantado, habitado por diversos seres imateriais e mitológicos, inteiramente permeado pela força divina de Deus Tupã, sempre presente na força vital dos seres vivos, na abundância e no mistério da natureza de modo geral. É um mundo constituído por entes que exigem que as pessoas os respeitem, se relacionem e comuniquem com eles. Há diversas categorias entre estes entes materiais e imateriais, cada uma representando um aspecto ou ambiente do mundo, dotado com a sua força espiritual e demandando uma forma específica de se relacionar com ele (BATISTA; CONCEIÇÃO; PEREIRA, 2021, p. 15).

A crença que os potiguaras têm pelo deus Tupã é um sentimento de respeito e fortalece a fé nas orações, em suma, para que tenham a resistência de seguir em frente na luta pelos direitos dos povos indígenas. Na religiosidade, percebe-se que a forma que cultuam com sabedoria os elementos da natureza faz com que se pense que a essência das entidades ancestrais estão encarnadas no pajé que já morreu, podendo estar presente naquela rocha ou árvore no meio da natureza. Isso representa a cosmovisão indígena e também um laço afetivo.

Geralmente, o toré é iniciado pelo pajé ou por outra autoridade presente com a reza do Pai Nosso, muitas vezes na língua tupi, além de uma fala reverenciando a Mãe Terra, a Natureza, os seus elementos e seres que nela habitam. E muitos dos cânticos entoados durante os torés fazem referência a Tupã, Jesus ou a Nossa Senhora Maria, além de chamar a força de diversos santos, entidades ancestrais e a Jurema Sagrada (BATISTA; CONCEIÇÃO; PEREIRA, 2021, p. 11).

A cosmovisão indígena está diretamente relacionada com a crença religiosa dos povos originários, em que esses têm uma conexão profunda com os elementos da natureza, os quais apresentam significados de sabedoria ancestral. Nessa perspectiva, pode-se dizer que a religiosidade está interligada com a dança Toré, posto que é tida para invocar os espíritos ancestrais, que trazem força e proteção para os povos indígenas.

Aquela força musical permanece até os dias de hoje por meio das danças sagradas que, em círculos de amor, cultuam as forças ancestrais. As músicas e as danças que nos alegram tanto são dons dos curandeiros ancestrais invocados pelas crianças, quando elas choraram alto pelo sofrimento da Terra e pelas feridas do mundo (POTIGUARA, 2015, p. 24-25).

A crença religiosa está interligada com o ritual da dança Toré, pois invoca os espíritos para que possam ajudar os indígenas nos momentos de tristeza e, ao mesmo tempo, são considerados uma força espiritual para continuarem na resistência da identidade. Os povos originários têm um afeto pelos elementos da natureza, porque acreditam que os familiares falecidos estão espiritualizados ou encarnados seja numa rocha ou outro símbolo da floresta. A natureza é utilizada para realizar o ritual sagrado da dança Toré, na ocasião, os povos originários se comunicam com os espíritos dos anciãos ou curandeiros com o objetivo de pedir proteção e luz no caminho.

A força musical realmente permanece até os dias de hoje por meio das danças, trazendo, inclusive, alegria para os povos indígenas em situações difíceis que muitos pedem os conselhos e a proteção dos espíritos ancestrais. É relevante comentar que, em A cura da terra, pode-se observar que o elemento terra é um lugar sagrado pelos povos originários, porque é nela que eles plantam para sobreviver. Além do fado de muitas dessas plantas serem utilizadas pelos curandeiros para enfermidades. Desse modo, entende-se o motivo do afeto e da preocupação que os indígenas têm com a natureza.

O respeito que os povos originários têm pela natureza e os elementos existentes nela fortalece cada vez mais a cultura dos indígenas. No entanto, percebe-se que as crianças crescem ouvindo as histórias ancestrais; por isso, adquirem a herança cultural que, futuramente, será repassada às outras gerações. Além disso, elas obtêm o aprendizado de respeitar a natureza. Entende-se que as crianças indígenas são protagonistas importantes, pois recebem a educação indígena para que as tornem a esperança de um mundo melhor.

— E as crianças de agora podem fazer a mesma coisa?

— Claro! As crianças podem mudar o mundo, porque são rápidas como os coelhos, enxergam com os olhos de gavião e voam espiritualmente com as asas das araras.

As crianças quando nascem, herdam os conhecimentos dos avó, bisavós e tataravós (POTIGUARA, 2015, p. 27-28).

No trecho acima, entende-se que existe uma comparação entre as crianças indígenas com os elementos da natureza, isto é, os animais. Cada um desses apresentam significados que são direcionados às crianças. Essas são rápidas como os coelhos, enxergam com os olhos de gavião e voam espiritualmente com as asas das araras. Compreende-se que a avó indígena faz essas comparações para que a neta perceba que cada criança pode mudar o mundo, já que dispõe de capacidade e enxerga com atenção para transformar a vida em dias melhores. Logo, é importante destacar que, ela reforça a relação dos indígenas com os elementos da natureza.

A voz da ancestralidade está presente na narrativa, porque a avó indígena conta para a neta Moína sobre as memórias dos antepassados e apresenta a cultura dos povos originários. Percebe-se que essa relação dos avós com as crianças é uma forma de mostrar o respeito e o carinho que os povos indígenas têm pelos anciãos.

É essencial falar também sobre a voz ancestral feminina, que, além de desempenhar uma função importante de transmitir as histórias ancestrais, tem um propósito importante nas narrativas que simbolizam a resistência na oralidade e escrita e que tem como intuito deixar um aprendizado para as próximas gerações.

A intenção do ilustrador Rogério Soud é mostrar que as imagens dialogam com a narrativa do livro, ou melhor, existe uma interação presente que liga as palavras às ilustrações. Dessa forma, as ilustrações trazem as reflexões e os significados como, por exemplo, a presença do losango, presente nas páginas três e quatro, em que acontece, na ilustração, o diálogo de Moína com a avó indígena. Portanto, o desenho representa a cobra, um elemento sagrado para os povos indígenas, que ela é a proteção para os indígenas:

 

  • Figura 1 – A cura da terra, de Eliane Potiguara.

 

Essa ilustração também está ligada aos números das páginas; portanto, o desenho refere-se à cobra, elemento da natureza, um ser sagrado para os povos indígenas, pois reforça a importância da espiritualidade e proteção que ela significa para eles.

 

Figura 2 – A cura da terra, de Eliane Potiguara.

A espiritualidade dos elementos da natureza está presente nas leituras de O pássaro encantado e A cura da terra, de Eliane Potiguara, pois contribui para adquirir os saberes da cultura indígena. Com isso, é possível mostrar a força do espiritual para os povos originários, com o propósito de tornar o mundo mais harmonioso.

Assim como essas obras de Eliane Potiguara, Ailton Krenak – tanto em Índios do Brasil quanto em Ideias para adiar o fim do mundo – também apresenta conceitos sobre a cosmovisão indígena, porque ele, igualmente, valoriza os elementos da natureza e respeita o lugar sagrado:

O espírito do nosso povo continua podendo viajar na face das águas, no vento, na floresta, através dos pássaros, através de muitos elementos da natureza. E eu tenho uma inabalável fé de que enquanto a gente puder fazer isso, o nosso povo vai existir. Seja nesse pedaço de mundo que chamam de América, seja no pedaço de mundo que chamam de Ásia, de África, em todas as pequeninas ilhas espalhadas pelo mundo o nosso povo vai continuar existindo, vai continuar batendo o coração dessa gente e essa maneira de entender o universo (KRENAK, 2015, p. 154).

É possível perceber, também, que as duas narrativas descrevem a mesma forma de cura. Em outras palavras, é um espírito curandeiro, que está representado através do elemento da natureza: o pássaro. Esse chega para trazer alegria aos povos indígenas que estavam tristes. As cosmovisões dos diversos povos trazem as histórias ancestrais e apresentam muitos saberes; inclusive, elas mostram a essência da cultura e ensinam a valorizar a identidade dos povos originários.

Os conceitos desenvolvidos por Ailton Krenak aliam-se com os de Eliane Potiguara: os elementos da natureza, que são representados espiritualmente por pessoas que já faleceram. Pode-se dizer que, no interior de cada elemento, existe a essência de uma personalidade humana que expressa sentimentos. Entende-se que o elemento “rocha” apresenta um ser espiritualizado, que, naquele momento, está para falar e ouvir, ou seja, existe uma comunicação humana com a anciã indígena.

Na fala do pesquisador, percebe-se um tom de absurdo e dúvida, porque, para ele, a pedra não fala, porém isso acontece pelo simples fato de não obter conhecimento sobre a cultura da cosmologia indígena. Já para os povos originários, todos os elementos da natureza se comunicam, uma vez que são espíritos da floresta. É fundamental estudar a cosmovisão indígena, pois proporciona aos leitores muitos saberes importantes sobre a cultura dos povos originários, para melhorar o conhecimento de mundo.

Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.

Li uma história de um pesquisador europeu do começo do século XX que estava nos Estados Unidos e chegou a um território dos Hopi. Ele tinha pedido que alguém daquela aldeia facilitasse o encontro dele com uma anciã que ele queria entrevistar. Quando foi encontrá-la, estava parada perto de uma rocha. O pesquisador ficou esperando, até que falou: “Ela não vai conversar comigo, não?”. Ao que seu facilitador respondeu: “Ela está conversando com a irmã dela”. “Mas é uma pedra.” E o camarada disse: “Qual é o problema?” (KRENAK, 2019, p. 10).

Seja a montanha ou qualquer outro elemento da natureza, tudo é considerado um espírito que se comunica para informar se o tempo será bom ou não. Por ser uma montanha rochosa, acredito que exista, nela, uma essência humana forte e resistente. Os indígenas acreditam que a montanha seja uma personalidade que os entende e os aconselha, com o objetivo de trazer esperança de dias melhores.

Tem uma montanha rochosa na região onde o rio Doce foi atingido pela lama da mineração. A aldeia Krenak fica na margem esquerda do rio, na direita tem uma serra. Aprendi que aquela serra tem nome, Takukrak, e personalidade. De manhã cedo, de lá do terreiro da aldeia, as pessoas olham para ela e sabem se o dia vai ser bom ou se é melhor ficar quieto. Quando ela está com uma cara do tipo “não estou para conversa hoje”, as pessoas já ficam atentas. Quando ela amanhece esplêndida, bonita, com nuvens claras sobrevoando a sua cabeça, toda enfeitada, o pessoal fala: “Pode fazer festa, dançar, pescar, pode fazer o que quiser” (KRENAK, 2019, p. 10).

Os povos originários valorizam os símbolos da natureza com intuito de estarem perto dos espíritos ancestrais, pois esses transmitem paz, resistência e sabedoria. Portanto, a essência que está nas montanhas pode significar algum parente que esteja espiritualizado no elemento da natureza.

Assim como aquela senhora hopi que conversava com a pedra, sua irmã, tem um monte de gente que fala com montanhas. No Equador, na Colômbia, em algumas dessas regiões dos Andes, você encontra lugares onde as montanhas formam casais. Tem mãe, pai, filho, tem uma família de montanhas que troca afeto, faz trocas. E as pessoas que vivem nesses vales fazem festas para essas montanhas, dão comida, dão presentes, ganham presentes das montanhas (KRENAK, 2019, p. 10).

As ideias de Ailton Krenak reforçam os conceitos sobre os elementos da natureza. Junto com as obras literárias infantis O pássaro encantado e A cura da terra, de Eliane Potiguara, consegue-se perceber que as leituras se alinham, porque a cosmovisão indígena que apresenta a espiritualidade através dos elementos da natureza está em evidência.

Ficou constatado que os povos originários têm um laço afetivo com os elementos da natureza por conta da espiritualidade ancestral. O importante seria que as pessoas pudessem obter os saberes sobre cultura indígena com o intuito de aprender a preservar a natureza, assim como todos os indígenas respeitam o lugar sagrado.

Os livros de Eliane Potiguara possuem, em comum, a presença da cosmovisão indígena que está relacionada com a crença religiosa sobre a espiritualidade nos elementos da natureza. É relevante dizer que a semelhança existente nos livros traz a crença religiosa que os povos originários têm pelos elementos da natureza. Tanto um livro quanto o outro trazem aprendizado aos leitores para que possam entender o motivo do afeto que os indígenas têm pela natureza e, com isso, preservar o meio ambiente junto com os povos originários.

Entende-se o motivo pelo qual os indígenas se preocupam com a natureza, pois valorizam a harmonia do bem viver e têm respeito pela floresta. No entanto, da mesma forma que respeitam a natureza, querem que as pessoas não indígenas também tenham o mesmo respeito pelo lugar sagrado.

A cosmovisão indígena é um tema de pesquisa importante que ajuda a compreender o afeto e a crença religiosa que os povos originários têm pelos elementos da natureza. Portanto, esses representam a fé para que os indígenas tenham resistência para viver em harmonia e continuar na luta pelos direitos dos povos originários.

Entende-se que a literatura indígena mostra o lugar de fala da autora, pois ela ocupa um lugar de ativista, falando com propriedade sobre os seus antepassados que testemunharam a violência com a invasão dos estrangeiros nas terras indígenas. O seu lugar de fala traz as lutas do indivíduo, pois não há um silenciamento de vozes; a escritora busca, por meio da escrita e oralidade, levar o conhecimento e aprendizado para os não indígenas. A literatura indígena foi pensada para que os escritores indígenas pudessem ter oportunidade de expressar opiniões, eles precisavam desse espaço, com o objetivo de mostrar os movimentos sociais que são lutas reconhecidas.

 

REFERÊNCIAS

BARCELLOS, Lusival. Práticas educativo-religiosas dos Potiguaras da Paraíba. João Pessoa: Editora da UFPB, 2014.

BATISTA, Maria Nilda Faustina; CONCEIÇÃO, Maria Fátima da; PEREIRA, Pedro Eduardo. Cosmologia e espiritualidade Potiguara. 1ª ed. Paulo Afonso, BA: Sociedade Brasileira de Ecologia Humana, 2021.

CAMINHA, Pero Vaz. Carta a El Rei D. Manuel. Dominus: São Paulo, 1963.

KAMBEBA, Márcia Wayna. Literatura indígena: da oralidade à memória escrita. In DORRICO, Julie; DANNER, Leno Francisco; CORREIA, Heloisa Helena Siqueira; DANNER, Fernando (Orgs.) Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto Alegre: Editora Fi, 2018, p. 39-44.

KRENAK, Ailton. Índios do Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

POTIGUARA, Eliane. O pássaro encantado. 1ª ed. São Paulo: Jujuba, 2014.

POTIGUARA, Eliane. A cura da terra. 1ª ed. São Paulo: Editora do Brasil, 2015.