Reflexões sobre o tempo em S. Bernardo, de Graciliano Ramos

Maria Nadiane Simões da Silva, Carlos Geovane da Costa Araújo

RESUMO: O romancista Graciliano Ramos é um dos grandes nomes da segunda fase do modernismo brasileiro e integrou o grupo da década de 30. Suas obras com temáticas que abordam problemas sociais, como a seca nordestina, por exemplo, perduram por gerações. Nesse sentido, este trabalho volta-se para o estudo do elemento narrativo tempo em um de seus principais romances, S. Bernardo, enfatizando, respectivamente o tempo psicológico, o físico e o da memória. Para tal, utilizou-se como metodologia uma pesquisa analítica e bibliográfica. Como suporte teórico foram considerados os apontamentos de Nunes (1995), Santos (2008), Pinto e Maquêa (2017), dentre outros.

PALAVRAS-CHAVE: Modernismo; Graciliano Ramos; S. Bernardo; Tempo.

ABSTRACT: Graciliano Ramos is one of the great novelists of the second generation of Brazilian modernism, the artist was part of the gerou in the 1930s. And his works present themes about social problems, such as the Northeastern drought, which last for generations. The current research presents the study of the narrative element of time in one of his main novels, S. Bernardo, emphasizing, respectively, psychological, physical and memory time. In this study, an analytical and bibliographic research was used as methodology. In the literature review, studies by Nunes (1995), Santos (2008), Pinto and Maquêa (2017), among others, were considered.

KEYWORDS: Modernism; Graciliano Ramos; St. Bernard; Time.

 

INTRODUÇÃO

O movimento artístico-literário modernista no Brasil surgiu a partir da Semana de Arte Moderna que ocorreu em 1922, em São Paulo. Constituído por três fases, o modernismo procurava romper com as concepções tradicionalistas das escolas literárias anteriores (MATTOS, 1977, p. 97-98). Sua segunda fase, conhecida como geração de 30, teve início em uma época bastante conturbada, logo após a crise da quebra da bolsa de valores de Nova York em 1929, em que muitos países estavam em meio a um grande conflito social e político (SANTOS, 2008, p. 20-21). Esta fase durou até 1945, perpassando a segunda Grande Guerra Mundial.

No Brasil, o contexto histórico não era diferente. Acontecia a Revolução de 1930, evento que marcou o fim da Política do café com leite e da República Velha. O que, consequentemente, deu início a Era Vargas, período de quinze anos ininterruptos em que Getúlio Vargas governou o país. E, além disso, vivenciou-se ainda, a Revolução Constitucionalista de 1932, um movimento armado que demonstrava insatisfação com o governo atual da época e lutava por uma nova constituição para o Brasil (PELLEGRINI; DIAS; GRINBERG, 2009, p. 103-104).

Desse modo, as obras criadas durante esse período evocavam fortemente as problemáticas da sociedade, que decorreram muito desse episódio de “depressão econômica”. Os autores da primeira fase buscavam uma desconstrução, enquanto os da segunda procuravam construir novos valores. Em seus textos, havia preocupação em estabelecer uma maior proximidade com a realidade do povo, predominavam as      críticas sociais e eram comuns temáticas regionalistas com ênfase na relação homem-espaço, etc. (MATTOS, 1977, p. 140). Entre os nomes em destaque na poesia e na prosa do segundo movimento modernista, estão: Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Jorge Amado e Graciliano Ramos.

Segundo Viggiano (2019, p. s/p), Graciliano Ramos de Oliveira é filho de Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro Ramos. Nasceu em Quebrângulo, Alagoas, no dia 27 de outubro de 1892, sendo ele o primogênito de quinze irmãos, de uma família de classe média do sertão nordestino. Em 1905, mudou-se para Maceió e fez seus estudos secundários no colégio interno Quinze de Março, onde desenvolveu maior interesse pela literatura.

Graciliano Ramos chegou a atuar na carreira política, filiou-se ao Partido Comunista e em 3 de março de 1936 foi preso por subversão, sendo solto em 13 de janeiro de 1937. Estreou na literatura em 1933 com o romance Caetés, posteriormente, publicou S. Bernardo (1934), Angústia (1936), Vidas secas (1938), A terra dos meninos pelados (1939), Infância (1945), entre outras obras. Há também, aquelas que foram publicadas após sua morte, como Memórias do Cárcere (1953) e Viagem (1954), por exemplo.

Um exímio romancista, Graciliano Ramos, é considerado um dos mais importantes escritores do modernismo[1]. Integrou o grupo de escritores que inaugurou

o realismo crítico, a geração 30, representando os problemas brasileiros em geral e específicos da região nordestina. Trata-se de uma literatura destinada à      conscientização e denúncias. O interesse de sua narrativa está diretamente voltado para o comportamento, atitudes do ser humano e condições socais. A preocupação com a linguagem é traço peculiar do alagoano, demonstrando-se atento ao vocabulário sertanejo (SANTOS, 2008, p. 13).

A obra analisada neste trabalho é considerada uma das maiores representantes da segunda fase modernista. Publicada no ano de 1934, S. Bernardo é conhecida por retratar problemáticas nordestinas, como a seca, os retirantes, a miséria e a ignorância do povo. Antonio Candido (2006, p. 43) enfatiza que, o estilo próprio do romance, “graças à secura e violência dos períodos curtos, […] parece indicar essa passagem da vontade de construir à vontade de analisar, resultando um livro direto e sem subterfúgio, honesto como um caderno de notas”.

 

1 DESBRAVANDO S. BERNARDO

Bernardo é um romance construído por muitos personagens, sendo eles, Paulo Honório, o protagonista e narrador; Madalena, a esposa; Glória, tia de Madalena; entre outros. De um pobre menino que cresce sem muitos recursos à proprietário de uma grande fazenda e sua falência, eis a trajetória de Paulo Honório. O que passou durante a infância, o motivo de sua prisão, a conquista da propriedade S. Bernardo, seu casamento com Madalena, a decadência, são esses e outros fatores que tecem a narrativa. Além disso, é perceptível a luta que se estabelece entre o humanismo e o capitalismo, representados em alguns de seus personagens (SANTOS, 2008, p. 16).

Vale ressaltar que é o personagem principal quem decide escrever um livro para contar sua própria história. Logo no início, o leitor é levado a uma descrição minuciosa de sua aparência: “Começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso oitenta e nove quilos e completei cinquenta anos pelo S. Pedro” (RAMOS, 2009, p. s/p). Em seguida, a narrativa apresenta-o como um menino órfão que foi criado por Margarida, uma negra doceira. Sem amparo, os dois batalhavam para sobreviver: “Se tentasse contar-lhes a minha meninice, precisava mentir. Julgo que rolei por aí à toa. Lembro-me de um cego que me puxava as orelhas e da velha Margarida, que vendia doces” (RAMOS, 2009, p. s/p).

No decorrer da trama, muitos acontecimentos começam a mudar a vida de Paulo Honório. Acusado por matar um homem, ele é preso e com isso, outros personagens começam também a ganhar espaço. É o caso de um sapateiro, que o ensina a ler e escrever na prisão: “O resultado foi eu […] esfaquear João Fagundes. Então o delegado de polícia me prendeu, […] estive de molho, pubo, três anos, nove meses e quinze dias na cadeia, onde aprendi leitura com o Joaquim sapateiro,” (RAMOS, 2009, p. s/p).

Com o passar do tempo, depois de alfabetizado, Paulo começa a mudar seus pensamentos, torna-se ambicioso, bruto, capaz de tudo para conseguir o que almeja: “Resolvi estabelecer-me aqui na minha terra, município de Viçosa, Alagoas, e logo planejei adquirir a propriedade S. Bernardo,” (RAMOS, 2009, p. s/p). A partir de então, a fazenda começa a ganhar foco, uma vez que, todos os personagens que aparecem estão ligados a esse espaço de alguma maneira. Além disso, situações como roubos, assassinatos, violência física e psicológica, também ocorrem aí. O protagonista, senhor das terras, revestido de poder, quer exercer senhorio também sobre as pessoas.

Já em processo de ascensão financeira, o proprietário de S. Bernardo, busca construir uma base familiar ao lado da professora Madalena: “Casou-nos o padre Silvestre, na capela de S. Bernardo, diante do altar de S. Pedro” (RAMOS, 2009, p. s/p). Uma jovem fora dos moldes da época, Madalena, buscava estar a par dos negócios do marido e não escondia suas queixas com a forma que ele administrava a propriedade e os funcionários. As desavenças entre o casal e o ciúme de Paulo culminaram no suicídio de Madalena. E assim, desenvolve-se a decadência do fazendeiro, que terminou triste e solitário.

É possível perceber que o coronelismo tem destaque dentro da obra, reforçando, assim, elementos comumente utilizados pelos autores modernistas da segunda geração, visto que o contexto em que viviam refletia diretamente em suas publicações. A respeito disso, Pinto e Maquêa (2017, p. 191), escrevem que, a “produção literária do neorrealismo de 1930 não pretendeu apenas ‘documentar’ a situação de atraso social e pouco empenho político, mas levantar os problemas que desencadeavam o atraso econômico nas localidades regionais”.

 

2 O TEMPO NA NARRATIVA

Sobre a análise do desenvolvimento do tempo em S. Bernardo, destaca-se que, considerar-se-á, principalmente, as reflexões de Benedito Nunes, que o define como a “relação entre o começo e o fim, […], de determinado movimento, […], bem como a passagem de um intervalo a outro numa ordem que liga anterior ao posterior,” (NUNES, 1995, p. 17). Desse modo, neste trabalho serão estudados os tempos psicológico, físico e da memória, respectivamente.

A escolha dos dois primeiros tempos foi motivada ao perceber-se que a narrativa é constituída por uma densa carga psicológica e por fortes acontecimentos impregnados em seus personagens e espaços. Sobre a motivação do último tempo, ela se deu ao notar-se o quanto o romance varia entre realidade e memória. Como afirma Santos (2008, p. 56), em “S. Bernardo podemos identificar esse processo de construção de uma obra memorialística, mesmo que ficcional focada no narrador e “autor” do livro”.

 

2.1 TEMPO PSICOLÓGICO

Segundo Benedito Nunes (1995, p. 19), o tempo psicológico está voltado para a experiência da sucessão dos estados internos, variando de indivíduo para indivíduo.  Acerca disso, o estudioso corrobora que, o tempo psicológico “se compõe de momentos imprecisos, que se aproximam ou tendem a fundir-se, o passado indistinto do presente, abrangendo, ao sabor de sentimentos e lembranças, ‘intervalos heterogêneos incomparáveis’.” (NUNES, 1995, p. 220).

A vista disso, constatou-se que S. Bernardo contém uma carga psicológica considerável, principalmente por sua construção, pois, desenvolve-se em dois planos: presente e passado. O primeiro é sob a perspectiva do narrador, Paulo Honório, e o segundo também está sob sua responsabilidade, no entanto, agora como personagem. Pode-se considerar que o enredo apresenta dois Paulo Honório, um que está no presente e outro no passado. Dessa maneira, é no transcorrer desta relação que se percebe a manifestação do tempo psicológico no romance.

Considerando que o referido tempo se dá de modo subjetivo, tem-se na figura do protagonista sua expressão de forma mais evidente. Nele, em suas falas, há constantes mudanças nos tempos verbais. O narrador, no presente, diz: “Aqui sentado a mesa […]” (RAMOS, 2009, p. s/p). O personagem, no passado, revive: “Plantei mamona e algodão […]” (RAMOS, 2009, p. s/p). Nesse sentido, percebe-se que no decorrer da narrativa essas alterações temporais não obedecem a uma ordem direta, elas simplesmente se fundem, de maneira não linear.

A partir do capítulo XXV, quando Paulo Honório começa demonstrar um certo desequilíbrio emocional, que foi causado pelas desconfianças que tinha acerca da fidelidade da esposa Madalena, as mudanças no tempo tornam-se mais oscilantes, assim como o próprio personagem. Aquele que era calculista, centrado, senhor de suas ações, sofre uma ruptura. Agora a incerteza, o medo e o ciúme      são      quem comandam suas ações. Madalena, ao interagir com visitas e/ou funcionários, alimentava ainda mais as desconfianças do marido: “E aquela conversa teria sido a primeira? […]Talvez namorassem. […] desmanchava-se toda para ele. Erguia-me, insultava-a mentalmente: — Perua!” (RAMOS, 2009, p. s/p).

Após todos os transtornos, resultado do ciúme doentio do fazendeiro, Madalena decide pela morte: “[…] estava estirada na cama, branca, de olhos vidrados, espuma nos cantos da boca. Aproximei-me, tomei-lhe as mãos, duras e frias, toquei-lhe o coração, parado. Parado” (RAMOS, 2009, p. s/p). Depois desse episódio, quando Paulo Honório começa escrever, há uma mistura entre presente e passado bem mais perceptível, causado, talvez, por todos os sentimentos que o atormentavam naquele momento, como lê-se a seguir:

Hoje não canto nem rio. Se me vejo ao espelho, a dureza da boca e a dureza dos olhos me descontentam (RAMOS, 2009, p. s/p).

[…] fui guia de cego, vendedor de doce e trabalhador alugado (RAMOS, 2009, p. s/p).

Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas.  (RAMOS, 2009, p. s/p).

 

Nos fragmentos supracitados, o tempo presente demonstra-se associado à voz que narra o agora, expressando o estado daquele que se encontra inebriado pela culpa que o corrói. De tal modo, o passado, então, revela-se nas lembranças do escritor que em sua própria história é um personagem com muitas vivências. Vale salientar que, esses episódios analisados, ligados      às marcações verbais, expressam o tempo psicológico e este não segue, necessariamente, o tempo cronológico. Por vezes, uma hora do tempo cronológico assemelha-se a um minuto do tempo psicológico, tal o estado de pânico, raiva ou medo que se encontre o indivíduo.

 

2.2 TEMPO FÍSICO

O romance é marcado por muitas mudanças físicas que o protagonista e a propriedade S. Bernardo apresentam ao longo da história. As descrições da evolução do tempo nos acontecimentos desse período são bem notáveis, confirmado nos personagens e nos espaços referenciados no decorrer da narrativa. Nesse sentido, para evidenciar tais questões, considera-se o conceito de tempo físico segundo Nunes, designado como aquele que se baseia no movimento de mudanças que são percebidas exteriormente (NUNES, 1995, p. 18).

Benedito Nunes (1995, p. 18) define-o como uma medida estabelecida no movimento que se encontra entre o anterior e o posterior, ou seja, o antes e depois desse espaço, visto como evolução ou deterioramento. Nesse seguimento, Aristóteles em Física, ilustra o tempo físico como um processo de mudança que pode ser objetivo, por não depender da consciência do sujeito, e também, quantitativo, manifestando-se mediante grandeza (NUNES, 1995, p. 18).

No romance, percebe-se tais incidências a partir do momento em que o protagonista da obra descreve as terras que desde a juventude desejava possuir. Estas, ao longo da história, marcam o sucesso e fracasso de seu proprietário. De início, quando Paulo Honório vê as terras que até então pertenciam a Luís Padilha, nota deterioramento do local. No capítulo IV, discorre suas primeiras impressões: “Achei a propriedade em cacos: mato, lama e potó como os diabos. A casa grande tinha paredes caídas e os caminhos estavam quase intransitáveis” (RAMOS, 2009, p. s/p).

Nessa perspectiva, o narrador-personagem descreve ainda minuciosamente alguns danos que percebeu ao visitar S. Bernardo:

Dirigi-me à casa-grande, que parecia mais velha e mais arruinada debaixo do aguaceiro. Os muçambês não tinham sido cortados. Apeei-me e entrei, batendo os pés com força, as esporas tinindo. Luís Padilha dormia na sala principal, numa rede encardida, insensível à chuva que açoitava as janelas e às goteiras que alagavam o chão (RAMOS, 2009, p. s/p).

Com isso, Paulo Honório toma consciência da situação lastimável daquela propriedade e objetiva comprá-la. Então, ele empresta dinheiro para Luís, mas o proprietário de S. Bernardo não sana sua dívida, não lhe restando outra alternativa, a não ser vender suas terras. Padilha assina o documento passando a fazenda para Honório. Os primeiros dois anos são difíceis, pois as plantações não lhe rendiam tantos lucros. A partir do capítulo VIII começa-se a ter progressões por conta da compra de maquinário, contribuindo assim com a pomicultura e avicultura. A visita do governador, também beneficia a mudança do espaço:

Concluiu-se a construção da casa nova. […] Ficou tudo confortável e bonito. Naturalmente deixei de dormir em rede. Comprei móveis […] iniciei a pomicultura e a avicultura. Para levar os meus produtos ao mercado, comecei uma estrada de rodagem. […] O governador gostou do pomar, das galinhas, do algodão e da mamona, achou conveniente o gado limosino, pediu-me fotografias[…] (RAMOS, 2009, p. s/p).

Dessa maneira, as transformações que S. Bernardo sofre no decorrer do tempo estão visivelmente marcadas em sua aparência e produção. Percebe-se com clareza esse movimento estabelecido entre o anterior e o posterior. De modo preciso, as terras que nas mãos de Padilha decaíam por falta de cuidados e investimentos, com Honório tornam-se um lugar bonito e com fartura, onde é possível ver nitidamente o progresso que o novo proprietário se esforçou para que a fazenda alcançasse.

No entanto, com o correr dos anos o declínio chega para S. Bernardo. Após a morte de Madalena, os negócios começaram a decair, como se nota no trecho seguinte: “Entrei nesse ano com o pé esquerdo. Vários fregueses que sempre tinham procedido bem quebraram de repente. […] Tive de aceitar liquidações péssimas” (RAMOS, 2009, p. s/p). O autor teve o cuidado de dedicar todo o capítulo XXXV para enfatizar as dificuldades que se difundiram sobre a propriedade, como se lê: “O resultado foi desaparecerem a avicultura, a horticultura e a pomicultura. As laranjas amadureciam e apodreciam nos pés […] Ainda por cima os bancos me fecharam as portas. […] Encolhi os ombros, desanimado” (RAMOS, 2009, p. s/p) Com isso, nota-se que em São Bernardo, não há morte física do protagonista, porém apresenta-se a degradação do espaço (PINTO; MAQUÊA, 2017, p. 199).

Vale salientar, que o tempo físico também é evidenciado em Paulo Honório. Durante a narrativa, muitos são os acontecimentos que perpassam sua vida. O processo da infância, juventude, até a vida adulta é destacado na autobiografia do protagonista. Pode-se identificá-los a seguir: “Julgo que rolei por aí à toa. […] Até os dezoito anos gastei muita enxada ganhando cinco tostões por doze horas de serviço. […] me chamo Paulo Honório, peso oitenta e nove quilos e completei cinquenta anos pelo S. Pedro” (RAMOS, 2009, p. s/p). A ideia de passagem do tempo para o personagem está ligada ao físico, à mudança de idade, e também, pode ser analisada a partir do seu progresso econômico. Sobre isso, diz Candido:

De guia de cego, filho de pais incógnitos, criado pela preta Margarida, Paulo Honório se elevou a grande fazendeiro, respeitado e temido, graças à tenacidade infatigável com que manobrou a vida, pisando escrúpulos e visando o alvo por todos os meios. […] A aquisição e transformação da fazenda São Bernardo leva todavia o instinto de posse a complicar-se em Paulo Honório com um arraigado sentimento patriarcal, naturalmente desenvolvido – tanto é verdade que os modos de ser dependem em boa parte das relações com as coisas (CANDIDO, 2006, p. 35).

 

2.3 TEMPO DA MEMÓRIA

No romance, Paulo Honório constrói sua história baseado em vivências. Para isso, vale-se de algumas memórias, dispondo assim de intervalos de tempo que variam entre presente e passado. A respeito disso, Santos (2008, p. 42) discorre que na obra, o “ponto de vista escolhido é o do narrador em primeira pessoa que encena uma autobiografia. Nós assistimos esse narrador sendo construído minuciosamente […] uma vez que é por meio de sua memória […] que os fatos são narrados.”

De acordo com E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia (2010), a memória pode ser entendida como um processo de armazenamento ou retenção de conhecimentos/experiências obtidas durante a vida do sujeito, podendo atuar sobre aquilo que é recordado. Nesse sentido, serão abordadas nesta subunidade, respectivamente, quatro diferentes memórias identificadas em S. Bernardo: a atual, a próxima, a distante e uma mais antiga. Vale salientar que, a classificação de tais memórias partem do princípio de que o presente na narrativa é o momento em que o personagem está escrevendo, fato que ocorre após a morte de Madalena, especificamente, dois anos depois.

Para uma memória atual, tem-se como exemplo o instante em que o personagem começa externar no papel a composição da sua própria narrativa. No capítulo I ele afirma: “Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho” (RAMOS, 2009, p. s/p). Nesses primeiros momentos (cap. I e II) não se tem noção de quem é a voz que narra, ainda não foi informado ao leitor que é Paulo Honório quem está redigindo a história. Mais à frente, rememora-se ainda com bastante frequência o ato da escrita, como vê-se no capítulo II: “[…] e iniciei a composição de repente, valendo-me dos meus próprios recursos […]. Continuemos. Tenciono contar a minha história” (RAMOS, 2009, p. s/p).

No capítulo III, o narrador se apresenta, informando que se chama Paulo Honório e que tem cinquenta anos. Dessa forma, quando no XXXVI refere-se novamente ao processo de composição, já é sabido quem está falando, trata-se do próprio protagonista. No trecho a seguir, tem-se mais um exemplo do tempo da memória no texto, tratando-se ainda de uma lembrança atual de Paulo Honório, descrevendo quando lhe surgiu a ideia de construir o livro e onde estava, na sala de jantar em S. Bernardo:

Foi aí que me surgiu a ideia esquisita de, […], compor esta história. […]. De repente voltou-me a ideia de construir o livro. […]. Desde então procuro descascar fatos, aqui sentado à mesa da sala de jantar, […]. Com um estremecimento, largo essa felicidade que não é minha e encontro-me aqui em S. Bernardo, escrevendo (RAMOS, 2009, p. s/p).

O fragmento citado anteriormente, não só expressa a marcação do tempo memorial, como também possibilita a identificação da metalinguagem presente na obra por meio da escrita de Paulo Honório. Percebe-se como ele tece comentários a respeito do processo de criação, usa a escrita para descrever acerca da sua própria escrita, e com isso, ele vai informando o momento que pensou em começar a redigir seu texto, quando ele realmente iniciou, além de descrever a cena do local em que se encontrava.

O narrador começa a escrever como forma de redenção, buscando ressignificar/redefinir seus objetivos e sua existência (SANTOS, 2008, p. 25). Encontrando-se em um profundo estado de culpa e angústia, Paulo Honório vê na escrita uma maneira para aliviar o espírito aflito. Nessa feita, partindo do momento atual, para uma memória próxima, tem-se um acontecimento marcante que precede o início da produção da narrativa, que é a morte da esposa do então proprietário de S. Bernardo:

Entrei apressado, atravessei o corredor do lado direito e no meu quarto dei com algumas pessoas soltando exclamações. Arredei-as e estaquei: Madalena estava estirada na cama, branca, de olhos vidrados, espuma nos cantos da boca. Aproximei-me, tomei-lhe as mãos, duras e frias, toquei-lhe o coração, parado. Parado (RAMOS, 2009, p. s/p).

A descrição do cenário da morte da professora é apresentada de maneira trágica no capítulo XXXI: ela é encontrada espumando pela boca, jogada na cama, com as mãos frias e o coração sem nenhuma pulsação. Relatando este fato, o narrador faz uso de uma memória recente. O tempo decorrente entre a produção e a morte de Madalena parece bem próximo, passam-se dois anos, mas os poucos acontecimentos nesse período fazem com que este espaço de tempo no romance pareça bem menor.

Com o desejo de casar para ter um herdeiro, Paulo Honório procura uma moça por esposa. E, no capitulo XIV, é apresentado à Madalena: “Na estação d. Glória apresentou-me a sobrinha, […]. Muito prazer. Eu já conhecia a senhora de nome. E de vista. Mas não sabia que era uma pessoa só (RAMOS, 2009, p. s/p). Este episódio pode ser identificado como uma memória distante, pois trata-se de um “meio termo” na linha do tempo da recordação estabelecido no romance. Não se trata de algo tão antigo e nem de um acontecimento recente.

No capítulo III, o narrador volta no tempo de maneira bem distante para contar um pouco da sua infância e diz: “Se tentasse contar-lhes a minha meninice, precisava mentir. Julgo que rolei por aí à toa. Lembro-me de um cego que me puxava as orelhas e da velha Margarida, que vendia doces. O cego desapareceu” (RAMOS, 2009, p. s/p). Baseando-se na primeira memória aqui citada (a memória atual), tem-se, neste trecho, uma memória mais antiga, pois o processo narrativo da obra vale-se de recursos memoriais em que o autor evoca o passado relatando fatos que contribuíram para sua própria construção, sendo o trecho supracitado o passado mais longínquo referenciado na obra.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A segunda fase modernista proporcionou vastas obras com uma riqueza imensurável. Esse momento promoveu conhecimentos que extrapolaram os meios literários, uma vez que, os enredos retratavam problemas sociais que iam além da ficção. A representação de paradigmas que, infelizmente, ainda perpetuam em nossa sociedade, propicia uma relação maior com o leitor, pelo fato de estar mais próximo de sua realidade. Nesse contexto, constatou-se que o escritor Graciliano Ramos é referência do regionalismo e suas inúmeras publicações retratam um Brasil plural, com muita cultura, riquezas naturais, mas também, com muitas complicações advindas de problemas externos, como a política.

Foi possível observar ainda que o roteiro de S. Bernardo é reflexo de um momento caótico que o país passou, a Era Vargas, o que sem dúvidas influenciou diretamente nas publicações dos autores da geração de 30. Segundo Pinto e Maquêa (2017, p. 190) na “produção neorrealista, o desejo de enfocar as condições sociais problemáticas era perpassado por uma intenção ideológica […]. Por isso, o mundo recriado pela obra deveria assemelhar-se o mais possível ao mundo da realidade”.

A análise proposta neste trabalho possibilitou, também, a percepção do competente fazer literário de Graciliano Ramos, que administrou e distribuiu de modo admirável as demandas do tempo, pois constituiu a narrativa a partir de diferentes momentos e acontecimentos que entornam o personagem principal, sendo eles no campo psicológico, físico e da memória. Assim sendo, todos estes aspectos contribuíram fortemente para que a densa carga social impregnada no romance pudesse ficar mais compreensível, pois, “direta ou indiretamente, a experiência individual, externa e interna, bem como a experiência social, interfere na concepção do tempo” (NUNES, 1995, p. 17).

S. Bernardo é um romance complexo quanto à progressão de suas ações, e, completo em relação às representações efetivadas por meio dos personagens. As ações são, algumas vezes, abruptamente interrompidas pelo tempo, o passado retorna para explicar o presente, e, no presente, narra-se o passado. Os personagens, por sua vez, são constituídos de muita personalidade, em especial, Madalena e Paulo Honório, que permitem ao leitor conhecê-los intimamente, e assim, compreender os dois extremos que eles representam dentro da narrativa.

 

REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio. Ficção e Confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. São Paulo: Editora 34, 2006.

CEIA, Carlos (Coord.). Memória. In: CEIA, Carlos. E-Dicionário de termos literários. Lisboa: Universidade de Lisboa. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/memoria/.  Acesso em: 20 de dezembro de 2021.

FALLEIROS, Marcos Falchero. A história de Graciliano Ramos. In: XII Congresso Internacional da ABRALIC Centro, Centros – Ética, Estética, Curitiba, 2011. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/332817674_A_historia_de_Graciliano_Resumo. Acesso em: 15 de dezembro de 2021.

MATTOS, Geraldo. Segundo período modernista. In: MATTOS, Geraldo. Nossa Cultura. São Paulo: Editora FTD, 1977, p. 153-159.

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. 2 ed. Rio de Janeiro: Ática, 1995.

PELLEGRINI, Marco César; DIAS, Adriana Machado; GRINBERG, Keila. O fim da República Velha e a Era Vargas. In: PELLEGRINI, Marco César; DIAS, Adriana Machado; GRINBERG, Keila. Vontade de saber História. São Paulo: Editora FTD, 2009, p. 98-113.

PINTO, Jesuino Arvelino; MAQUÊA, Vera Lúcia da Rocha. As relações de poder em Chão Bruto e São Bernardo: uma leitura comparatista. E-scrita: Revista do curso de Letras da UNIABEU, Nilópolis, v. 8, n. 2, p. 187-200, maio/agosto, 2017. Disponível em: http://revista.uniabeu.edu.br/index.php/RE/article/view/2717. Acesso em: 20 de dezembro de 2021.

RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 88 ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009.

SALLA, Thiago Mio; LEBENSZTAYN, Ieda. (org.). O antimodernista: Graciliano Ramos e 1922. Rio de Janeiro: Record, 2022.

SANTOS, Jaqueline Queiroz Procópio dos. Escrita e memória em S. Bernardo. 2008. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) – Instituto de Letras e Linguística, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2008.

VIGGIANO, Giuliana. Conheça vida e obra de Graciliano Ramos, autor de ‘Vidas Secas’ e ‘Angústia’. In: Revista Galileu. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Vestibular-e-Enem/noticia/2019/10/conheca-vida-e-obra-de-graciliano-ramos-autor-de-vidas-secas-e-angustia.html. Acesso em: 20 de dezembro de 2021.

 

[1]Vale salientar que Graciliano Ramos demonstrava grande insatisfação em ter seu nome associado ao movimento modernista. Como corroboram Salla e Ieda (2022, p. 08), o romancista era “um artista audacioso que viveu a modernidade como uma espécie de pesadelo e se colocou na posição de denunciar as ambivalências e embustes do modernismo brasileiro em sua euforia de cantar os novos tempos”.