RESUMO: O século XIX no Brasil, e no mundo, foi repleto de mudanças socioeconômicas: o desenvolvimento da vida urbana e uma classe média e burguesa em ascensão, o fim do comércio de escravos, a lei do ventre livre, o império do Brasil, etc. Todos esses eventos políticos são retratados na literatura. Assim, esse artigo pretende analisar o modo que Machado de Assis transporta a realidade do Brasil em seus romances Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, no contexto da metade do século XIX.
Palavras-chave: Machado de Assis. Século XIX. História e literatura.
ABSTRACT: The 19th century in Brazil, and around the world, was full of socioeconomical changes: the development of urban routine, middle class and bourgeoisie on a rising path, the end of slaves traffic, a law that seeked to free newborn children of the enslaved, the whole context of the brazilian empire, etc. All these political events were portraited in literature. because of that, this article intends to analyse the way that Machado de Assis manages to recreate the reality of the country in his novels Memórias Postumas de Brás Cubas and Dom Casmurro, in the context of the first half of 19th century.
Keywords: Machado de Assis, 19th century, history and literature.
Introdução
A literatura é, para Auerbach (2021), uma representação da realidade, a mímesis, em que a realidade social é representada, estilisticamente, pela literatura de diversas formas, seja pelo romantismo que idealiza essa realidade, seja pelo simbolismo que a deprecia ou pelo realismo que a crítica. No entanto, para Lukács a literatura se torna um verdadeiro e fiel reflexo da realidade apenas “(…) se refletir plenamente as contradições do desenvolvimento social, isto é, na prática, se o autor mostrar percepção da estrutura da sociedade e da futura direção de sua evolução” (Wellek, 1963, p. 209). E essa seria a definição de realismo para o autor húngaro, uma análise materialista. Dessa forma, partindo do princípio de que a sociedade é, historicamente, uma sociedade de classes, havendo uma “classe alta” e uma “classe baixa”, nota-se que isso se reflete fundamentalmente na cultura e mais especificamente na literatura. Assim, o modo de ser dos personagens e enredos vai seguir a mesma lógica da sociedade de classes, as obras literárias, desde o teatro grego até a narrativa moderna, vão reproduzir, em um plano menor, o sistema social e econômico, intencionalmente ou não. Em A arte poética, Aristóteles vai classificar gêneros do teatro grego em maiores, a epopéia e a tragédia, e menores, como a comédia. Isso porque a epopeia e a tragédia tratam de pessoas da aristocracia, enquanto a comédia trata de pessoas comuns, isto é, do povo — ainda que o conceito de povo naquela época fosse restrito. Dessa maneira, Kothe (1985) afirma que as narrativas são sistemas em que as classes dominantes têm sido algum tipo de herói. Portanto, vale observar a estreita ligação entre história e literatura:
O uso do texto literário como fonte produz uma relação sinérgica que colabora para a construção da identidade social e individual: se por um lado o texto literário possibilita que temas históricos sejam retomados e reinterpretados, por outro, a representação contida no texto literário se socializa e, por consequência, acaba orientando a percepção da realidade. Assim sendo, a representação criada pelo texto literário possui duplo efeito sobre a memória social por ele criada: ao mesmo tempo que se socializa, tem conteúdo socializador (Pereira, 2021, p. 14).
É nesse sentido que Schwarz (2000, p. 11) classifica a literatura de Machado de Assis como “O dispositivo literário [que] capta e dramatiza a estrutura do país, transformada em regra da escrita. E com efeito, a prosa narrativa machadiana é das raríssimas que pelo seu mero movimento constituem um espetáculo histórico-social complexo, do mais alto interesse (…)”. Assim, importa saber como Machado de Assis transporta a realidade do Brasil no século XIX para a sua narrativa literária, e mais, qual o valor da sua obra para a história do fim do século? Para Chalhoub (2003), Machado utiliza seus romances para desenvolver uma interpretação do processo histórico de 1850 até o fim do século. Segundo ele, Machado representa, na literatura, a hegemonia política e o projeto de dominação denominado paternalismo, baseado na relação pessoal de seus dependentes, livres ou escravos, e isso estaria presente de Helena (1876) até Dom Casmurro (1899):
O mundo era representado como mera expansão dessa vontade, e o poder econômico, social e político parecia convergir sempre para o mesmo ponto, situado no topo de uma pirâmide imaginária. O paternalismo, como qualquer outra política de domínio, possuía uma tecnologia própria, pertinente ao poder exercido em seu nome: rituais de afirmação, práticas de dissimulação, estratégias para estigmatizar adversários sociais e políticos, eufemismos, e, obviamente, um vocabulário sofisticado para sustentar e expressar todas essas atividades (Chalhoub, 2003, p. 58).
A segunda metade do século XIX: breve panorama histórico
A partir da segunda metade do século XIX as transformações sociais e econômicas começam a desenvolver uma vida urbana e uma classe média em ascensão no Brasil. A abolição do tráfico de escravos fez com que o capital econômico fosse reinvestido em atividades urbanas. A atividade do comércio exterior, com desenvolvimento da lavoura de café, colabora para essas transformações sociais e econômicas acontecerem, impulsionando as atividades de trocas, fazendo com que a economia mercantil ganhasse destaque, o que, na fase colonial, não existia nas proporções que tomava. Com o aumento da vida urbana, cresce também o interesse pelas atividades citadinas, como o teatro, as festas de salões e o que Sodré (1964) apresenta como o interesse pela moda, pelas aparências e pelas influências. Nesse sentido, a nova classe dominante em ascensão começa a sentir necessidade de operar no poder público dentro das academias, na vida política, na imprensa e nos salões. Ao passo que o povo, que nesse momento do Brasil eram a classe média e os trabalhadores livres, possuía “(…) fraca expressão e mínima consciência de classe” (Sodré, 1964, p. 436). Além disso, a coexistência do trabalho livre e do trabalho servil criava conflitos e disparidades, criando uma população marginal no campo e na cidade e a expansão cafeeira força uma transformação no modo de produção, fomentando também, com o declínio da classe dominante rural, o aumento de escravos domésticos. Logo, é assim que a burguesia urbana vivia, com a renda dos aluguéis de suas propriedades (imóveis e escravos).
Com o crescente declínio da burguesia agrária, a partir da década de 70, a nova burguesia, integrada por médicos, engenheiros e militares, o que Sodré (1964) chama de burguesia ligada às ciências positivas, surge o movimento positivista no Brasil, cujos seguidores deixam de lado o espiritualismo e se voltam para a ciência, que, para eles, teria a solução para todos os problemas. É nesse momento também que o Império brasileiro começa a ruir, com sua morte definida em 1889, com a proclamação da república. É no ano de 1871 que a Lei do Ventre Livre, que torna livres os filhos de escravas que nascem a partir daquele ano, é publicada. Para além disso, começa-se a penetrar na sociedade brasileira, além do positivismo, o evolucionismo, darwinismo, as críticas religiosas e novos processos de crítica e história literária. A família brasileira, nesse momento do século, também passa por transformações sociais. No entanto, o modelo patriarcal das relações ainda fazia com que as mulheres fossem postas como propriedades, não legais como as propriedades materiais e os escravos, mas de uma forma subjetiva. Todo esse contexto histórico vai ser essencial para as mudanças na literatura. Numa sociedade em transformação, isto é, o Brasil da metade do século XIX, ao emergir uma nova classe, busca afirmar-se novas formulações políticas e culturais. Dessa forma, o romantismo começa a declinar. Machado de Assis, que vem dessa escola e recebe dela, na primeira fase de sua antologia, os elementos técnicos e de conteúdo, acompanha o desenvolvimento econômico, político e social do país. Na literatura de Machado, segundo Pereira (2011), é representado em seus romances uma classe parasita no Brasil oitocentista, ou seja, não os senhores proprietários de terra e da produção de café, mas sim a classe herdeira que vive de sugar o valor recebido pelo aluguel de suas propriedades, os rentistas, e estes seriam Brás Cubas e Bento Santiago, esse último, ainda, possuindo uma relação próxima de comparação com o Brasil Império, de acordo com a análise de Chalhoub (2003).
O retrato histórico e os aspectos ideológicos na literatura de Machado de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas
Memórias Póstumas de Brás Cubas foi publicado em folhetins entre os anos 1880 e 1881. Com essa obra, Machado consegue revelar a estrutura econômica e social da sociedade brasileira finissecular, no fim da colônia e no reinado do Império, com uma narração cheia de ironias, hipocrisias e contradições, dignas de interpretação crítica à classe de herdeiros a que Brás Cubas pertence e que estava em ascensão no início da década. Nesse romance, temos um defunto-autor como centro da história, Brás Cubas, um homem da classe alta do Rio de Janeiro que decide, após a morte, contar a história de sua vida. Brás Cubas inicia a sua narração pela morte, no ano de 1869. Logo no início da trama, no capítulo III, intitulado “Genealogia”, Cubas apresenta a história da sua família e de sua herança: seu avô Luís Cubas herda de seu pai uma fortuna acumulada e segue as tradições de prestígio social licenciando-se em Coimbra e mantém relações com membros do Estado e da elite. Adiante, no capítulo XII, intitulado “Um episódio de 1814”, ano da queda de Napoleão, narra o episódio em que seu pai realiza uma festa no salão para comemorar a queda do imperador francês, atitude típica da classe em ascensão.
Além disso, é importante destacar o jogo de palavras inteligentes que Machado usa nas suas obras, e claro que em Memórias Póstumas de Brás Cubas não seria diferente. Isso, segundo Chalhoub (2003), seria umas das técnicas para demonstrar superioridade e domínio por parte do narrador, do ponto de vista da política de paternalismo. Em Brás Cubas, por exemplo, ao falar de Marcela, a prostituta que é o seu primeiro amor, em nenhum momento utiliza essa palavra, nem sinônimos, mas todo um contorcionismo que, pelo contexto, o leitor percebe do que se trata, e isso é algo marcante na escrita de Machado. Outro elemento que pode servir de exemplo ao paternalismo do narrador é a forma como ele descreve os personagens secundários, como D. Plácida e Prudêncio, seu ex-escravo doméstico. O narrador retrata sempre D. Plácida como uma personagem triste, como no capítulo LXX, intitulado “D. Plácida”. Ele a descreve da seguinte maneira: “Creio que chorava, a princípio: tinha nojo de si mesma. Ao menos, é certo que não levantou os olhos para mim durante os primeiros dois meses; falava-me com eles baixos, séria, carrancuda, às vezes triste” (Assis, 1994, p. 101 ). Além disso, o capítulo em que reencontra seu ex-escravo Prudêncio deixa muito explícito a relativização da escravidão por parte do narrador. No capítulo XI, intitulado “O menino é pai do homem”, o narrador apresenta Prudêncio:
Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes gemendo, — mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um — “ai, nhonhô!” — ao que eu retorquia: — “Cala a boca, besta!” (…) (Assis, 1994, p. 25)
Neste capítulo, ele retoma a infância e apresenta seu antigo escravo, alguns capítulos à frente, ele se reencontra com Prudêncio, agora já livre:
“Parei, olhei… Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, — o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele. — É, sim, nhonhô. — Fez-te alguma coisa? — É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber. — Está bom, perdoa-lhe, disse eu. — Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!” (Assis, 1994, p. 99).
Prudêncio agora possui também um escravo e abusa da mesma maneira que Brás Cubas fazia ele antes. Entretanto, ao ser repreendido por seu ex-dono, não hesita em atender a sua vontade. Aqui, percebe-se a psicologia dos personagens intrinsecamente ligada às suas condições de classe, sobretudo de dominância, muito presente naquele momento do século XIX.
Ademais, a escolha do defunto autor traz à tona as contradições propositais da obra machadiana, já que algo irreal (um morto) é o centro da obra inaugural do realismo no Brasil. Antonio Candido diz que a fantasia funciona como realidade ao expor o que Machado questiona em sua antologia, assim como em Brás Cubas. Candido escreve que “(…) se não conseguimos agir senão mutilando o nosso eu se o que há de mais profundo em nós é no fim de contas a opinião dos outros; se estamos condenados a não atingir o que nos parece valioso, qual a diferença entre o justo e o injusto, o certo e o errado?” (1995, p. 187). Isso é exatamente o que Machado questiona e descreve em suas obras; a questão das aparências era algo que, naquele momento, era muito pertinente. Brás Cubas relata a vida de uma forma despreocupada, quase que banal. No capítulo intitulado “Curto, mas alegre”, Cubas, inclusive, vai comentar com o leitor que na morte existe a liberdade de ser franco, e nesse caso, ele descreve sua vida com a franqueza da realidade, como se fosse um desabafo. Nada que antes fosse importante naquela sociedade do século XIX parece importar tanto agora, depois da morte, as aparências e influências já não são grandes preocupações, a realidade do “alto” e do “baixo”, como na trajetória de herói trágico, como analisa Kothe (1985), já não importa mais. No entanto, Cubas não acredita de fato nisso, como, em uma realidade, ser herdeiro não importa mais? Ele revela diversos — não tão grandes — feitos durante a vida, mas bem comuns na realidade. O personagem, durante a vida, foi à Coimbra para estudar, a mando do pai, pois já não era mais tolerável manter relações com uma prostituta, precisava se tornar um homem, mas apenas decorou algumas fórmulas, foi um estudante medíocre.
A respeito do seu relacionamento com Eugênia, é interessante analisar que ela era uma menina de condições de classes inferiores, mas que frequentava os mesmos espaços que Cubas, pois sua mãe, D. Eusébia, era próxima da família, essa que inclusive Cubas também descreve com certo desprezo no capítulo XII: “D. Eusébia, irmã do sargento-mor Domingues, uma robusta donzelona, que se não era bonita, também não era feia” (Assis, 1994, p. 28). Sobre isso, Schwarz aponta:
Eugênia, aliás, não é propriamente pobre. Educada na proximidade da camada proprietária, ela pode até fazer um bom casamento e vir a ser uma senhora. Mas pode também terminar, como terminou, pedindo esmola num cortiço. Do que depende o desfecho? Da simpatia de um moço ou de uma família de posses. Noutras palavras, depende de um capricho da classe dominante (2000, p. 56).
Esse relacionamento não se materializa, mas no começo da narração é apresentado ao leitor a Marcela, seu primeiro amor. O pai de Brás Cubas, no início, parece não se importar com o relacionamento, como quem sabe que Marcela é o tipo de menina para se namorar, porém não para casar, e tanto que manda Cubas para Coimbra quando percebe que já era hora de terminar com o namoro, típico pensamento da elite. Adiante, Cubas volta ao Brasil, e seu pai, como quem sabe da lógica da elite, incentiva que Brás se case com a filha de um político importante, Virgília, agora sim, uma moça para se casar. Além disso, o estimula a entrar na vida pública, na política, seguindo novamente a lógica da elite oitocentista. No fim das contas, não casou-se, virou amante de sua quase noiva e também não foi ministro do estado. Por fim, percebe-se a crítica disfarçada de ironias que Machado coloca no livro sobre o egoísmo do lucro, da vida mesquinha das camadas mais abastadas, em suma, na forma do narcisismo do personagem. Por que, afinal de contas, Brás Cubas tinha tudo para ser tudo, e não foi nada, a não ser, medíocre.
O retrato histórico e os aspectos ideológicos na literatura de Machado de Assis: Dom Casmurro
Segundo Fischer (2016), Dom Casmurro possui uma história inesgotável, posto que mais de um século depois ele continua resultando em críticas, ensaios e teses de diferentes percepções, no Brasil e no mundo. Em um primeiro momento, a narrativa de Dom Casmurro parece levar o leitor a um fato: a traição de Capitu. Isso porque segundo Casmurro, o narrador, existe uma prova (literalmente) viva: Ezequiel, o filho que seria de Escobar, e não dele. Bentinho, ao escrever a história de sua vida e amor, na verdade, faz um trabalho de acusação, como bom advogado que se tornou, profissão típica da elite. No caso, como narrador, ele possui o trabalho de acusação, vítima e juiz. Por isso, em uma obra em que só existe um narrador, que conta ao leitor o que lhe convém pela sua moral e emoção, seria inútil julgar ou não um suposto crime. Por essa razão e outras, é que Fischer considera que Dom Casmurro “é um livro finito e uma discussão infinda” (Fischer, 2016, p. 12).
No decorrer do livro, Capitu é constantemente taxada como uma menina-mulher dissimulada. É, no entanto, Bentinho quem mais dissimula durante toda a narração. Aos 15 anos, Bento é enviado ao seminário pela mãe, Dona Glória, que prometeu que daria seu filho ao sacerdócio. Porém, Bentinho, já apaixonado por Capitu, faz de tudo para escapar desse destino já imposto antes do seu nascimento, inclusive pedir ajuda ao agregado José Dias. No capítulo LXVII, “Um pecado”, quando sua mãe está debilitada e com febre, e José Dias vai buscá-lo no seminário, Bentinho possui o seguinte pensamento:
Ia só andando, aceitando o pior, como um gesto do destino, como uma necessidade da obra humana, e foi então que a Esperança, para combater o Terror, me segredou ao coração, não estas palavras, pois nada articulou parecido com palavras, mas uma ideia que poderia ser traduzida por elas: ‘Mamãe defunta, acaba o seminário […] Leitor, foi um relâmpago. Tão depressa alumiou a noite, como se esvaiu, e a escuridão fez-se mais cerrada, pelo efeito do remorso que me ficou. Foi uma sugestão da luxúria e do egoísmo. A piedade filial desmaiou um instante, com a perspectiva da liberdade certa, pelo desaparecimento da dívida e do devedor; foi um instante, menos que um instante, o centésimo de um instante, ainda assim o suficiente para complicar a minha aflição com um remorso” (Assis, 2016, p. 233).
Nesse momento, ao falar diretamente com o leitor, o narrador consegue que seu ato de maldade se torne apenas um ato falho humano, corroído de remorso e digno de piedade. Dessa forma, o narrador, de forma sutil, manipula o leitor. É também por isso que a resposta da traição de Capitu não pode ser resolvida. Bento, ou já Casmurro, consegue dissimular e manipular toda a história com as lembranças parciais do seu coração. Já Casmurro porque, assim como o Brasil Império, já possui seus traços de decadência desde seu momento de apogeu, ou da adolescência.
Na história, metade do livro é a narração de alguns poucos anos de adolescência de Bentinho, com o drama do romance entre ele, Capitu, e o seminário, que os afastava, isso se passa nos anos de 1850/60, novamente, o ano não é mera coincidência. De acordo com Gledson (1991), Bento Santiago, nesses primeiros anos da metade do século, pode ser interpretado como o Império, que tem seu apogeu justamente na década de 50 e início de 60. No entanto, o ano de 1871 começa a abalar suas estruturas, e esse é o justo ano em que Escobar falece, e Bento têm sua confirmação da traição, e tem sua queda. A segunda metade do livro é narrada quase que um capítulo por ano, ou mais. Bento sai do seminário, casa-se com Capitu e torna-se bacharel em direito em São Paulo. Fischer fala que isso é um elemento usado em outros romances do Machado. Segundo ele, evita-se elaborar a narração sobre lugares que não conhece, porque quase tudo se desenrola na cidade do Rio de Janeiro, que efetivamente é o universo restrito de Machado, mas que não prejudica sua capacidade crítica e de escrever seus romances. Depois da metade do livro, 5 anos são elaborados em um único capítulo (XCVIII), intitulado “Cinco anos”, parece que quase formam uma lacuna na linha histórica da obra. Ainda assim, Casmurro consegue narrar ao leitor outro indício do seu eu ciumento, quando finaliza dizendo que seu melhor amigo Escobar se casa com Sancha, melhor amiga de Capitu, e por isso a chama de “sua cunhadinha”, e termina: “Assim se formam as afeições e os parentescos, as aventuras e os livros” (Assis, 1994, p. 298). Aqui, a interpretação pode ser diversa, mas certamente pode ser uma pista do que virá a seguir: segundo Casmurro, a traição materializada e, consequentemente, sua queda. Outro exemplo que serve para o leitor perceber que Bentinho desde sempre alucinou com o ciúme doentio, ou seja, novamente os sinais de decadência aparecem desde cedo, assim como o Império. Ciúme esse que pode ser interpretado como o receio de perder a “propriedade”, nesse caso, a mulher. Assim, esse sentimento obsessivo estava presente desde a adolescência. No capítulo LXXIII, “O contrarregra”, Bentinho tem um ataque de ciúmes quando passa um cavaleiro pela rua observando Capitu, e ela a ele:
O cavaleiro não se contentou de ir andando, mas voltou a cabeça para o nosso lado, o lado de Capitu, e olhou para Capitu, e Capitu para ele; o cavalo andava, a cabeça do homem deixava-se ir voltando para trás. Tal foi o segundo dente de ciúme que me mordeu. A rigor, era natural admirar as belas figuras; mas aquele sujeito costumava passar ali, às tardes; morava no antigo Campo da Aclamação, e depois… e depois… Vão lá raciocinar com um coração de brasa, como era o meu!” (Assis, 1994, p. 246).
No capítulo LXXV, “O desespero”, ele se tranca no quarto e surta de ciúmes no que toca a esse episódio entre Capitu e o cavaleiro. Chora, soluça, chama Capitu de perversa e, entre outras coisas, diz: “A vontade que me dava era cravar-lhe as unhas no pescoço, enterrá-las bem, até ver-lhe sair a vida com o sangue…” (Assis, 1994, p. 250).
Ao fim do livro, Bento envia o filho e a mulher para a Europa, praticamente exilados. Nesse ponto, percebe-se novamente a política do paternalismo: Casmurro perde o poder patriarcal sobre a mulher e o filho, logo, decide puni-los exilando-os. Mais à frente, com os dois já mortos, questiona, no último capítulo, “É bem, e o resto?”: “O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente” (Assis, 1994, p. 392) e prossegue com a resposta imediata no mesmo parágrafo, conversando com o leitor: “(…) tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca” (Assis, 1994, p. 392). Porém, é válido questionar, na verdade, se Casmurro já estava dentro de Bentinho desde o primeiro momento “como uma fruta dentro da casca”. Aqui a metáfora com o Brasil Império pode ser nitidamente percebida: sua decadência estava posta desde seus primeiros anos. E isso, na verdade, é o que o leitor consegue responder, toda a narração é de Bentinho-Casmurro, e ele mostra, desde os primeiros momentos, ser o Bentinho ciumento, manipulador e dissimulado.
Considerações finais
Em síntese, conclui-se que Machado de Assis, com seus romances Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, consegue representar de duas formas diferentes, mas não totalmente distintas, a sociedade da segunda metade do século XIX. No primeiro livro, Machado transpõe a realidade brasileira da vida hipócrita das classes em ascensão, já no segundo livro, faz a mesma reflexão, além de trazer elementos do Brasil Império para compor a personalidade do personagem central da narrativa. Machado não trouxe a realidade à evidência apenas no que se refere ao individual, quando mostra as relações sociais, em relação à mulher, por exemplo, mas tem também a capacidade de mostrar a personagem “mais nua do que a inteira nudez” (Sodré, 1964, p. 500). Por fim, consegue trazer críticas centrais como a neutralização da escravidão e o lugar de subjugado do escravo, a concepção de “posse” e “propriedade”, as hipocrisias, contradições e dissimulações da elite brasileira daquele século.
Referências
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CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
FISCHER, Luís Augusto. Uma história inesgotável. In: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
GLEDSON, John. Machado de Assis: impostura e realismo. [S. l.]: Companhia das Letras, 1991.
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PEREIRA, Thais Silva. Representação socioeconômica oitocentista: mobilidade social e aburguesamento sob o olhar (oblíquo) de Machado de Assis (1880-1904). 2021. Dissertação (Mestrado em História) – PUC, [S. l.], 2021. Disponível em: https://repositorio.pucsp.br/handle/handle/24235. Acesso em: 19 jun. 2023.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. 4ª ed. São Paulo: Duas Cidades, 2000.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.
WELLEK, René. Conceitos de crítica. São Paulo: Cultrix, 1963.