Hamlet e Senhora, da sanidade à decadente sede de vingança

Magnus Ferreira de Melo

Resumo: A vingança é um tema retratado em diversas obras artísticas e em diferentes culturas e tempos da humanidade e continua sendo uma ação/sentimento humano que pode ou não levar um indivíduo a sua decadência. Este artigo aborda a representação e o resultado da vingança na peça inglesa “A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca”, de William Shakespeare e o romance urbano Senhora: perfil de mulher, de José de Alencar. Primeiramente será analisada a história de Hamlet, o qual irá vingar a morte de seu pai a ultrapassar todos os limites de seus planos por impulso — mesmo se utilizando da razão; em seguida, a trama de Aurélia, a qual compra o seu marido por rancores do passado e um amor não devidamente correspondido. Por fim, uma comparação da jornada de ambas as personagens.

Palavras-Chaves: William Shakespeare; Hamlet; José de Alencar; Senhora; vingança.

Abstract: Revenge is a theme portrayed in several artistic works and in different cultures and times of humanity and continues to be a human action/feeling that may or may not lead an individual to his decay. This article addresses the representation and the result of revenge in the English play “The Tragedy of Hamlet, Prince of Denmark”, by William Shakespeare and the urban novel Senhora: Profile of a Woman”, by José de Alencar. Firstly, Hamlet’s story will be analyzed, who’ll avenge his father’s death by going beyond all the limits of his plans on impulse – even using the sense; then, Aurélia’s plot who buys her husband by past grudges and a love that is not properly matched. Finally, a comparison of the journey of both characters.

Keywords: William Shakespeare; Hamlet; José de Alencar; Senhora; revenge.

A visão da vingança na arte

Em uma conversa, durante a segunda cena do segundo ato da tragédia de Hamlet, a protagonista, o príncipe da Dinamarca, diz uma das frases mais originais da peça:
 

Que obra-prima o homem! Tão nobre em razão, tão infindo em faculdades, em forma e movimentação quão rápido e admirável, na ação tão próximo dos anjos, na apreensão tão semelhante a um deus: a beleza do mundo, o paragão dos animais – mas que é isso para mim senão a quintessência do pó? (Shakespeare, 2013, p. 98).

 

Sob uma mesma ótica renascentista, comparemos e analisemos a frase à pintura de Michelangelo “A Criação de Adão” — um afresco exposto no teto da Capela Sistina, no Vaticano. De acordo com a Bíblia, Deus fez os homens a sua imagem e semelhança. Podemos notar que Adão e Deus, no quase “tocar da vida” são semelhantes. Ora, mas se Deus imponente mantém-se dentro de um manto rubro, com um formato característico ao de um cérebro humano, e Adão é representado com um umbigo, podemos levar a crer que o homem, em realidade, também criou Deus com a sua mente?, ou, quiçá, Deus e homem são a mesma figura?

No Antigo Testamento, Deus puniu Adão e Eva do Paraíso em Gênesis por desobedecerem às suas palavras e comerem do fruto proibido ofertado pela serpente; puniu, também, a maioria dos homens num dilúvio deixando nas mãos de Noé o papel de repovoar o planeta entre outros casos semelhantes da violação de suas ordens divinas ao longo do texto sagrado. Afinal, seria isso justiça ou vingança?

Ao longo da história, como na Inquisição, quem violava as ordens da Igreja era punido severamente — ou ainda, em tempos ditatoriais pessoas consideradas subversivas acabavam por ser torturadas ou mortas (como no caso de muitos países da América no século passado, ou em Europa com o fascismo de Hitler). Obviamente cada tempo é um tempo, e cada povo, sua ideologia; e a questão desses dois termos, por vezes, cai no chamado “ponto de vista”. Assim como Deus, temos nossas leis e punimos com nossas mãos quem as corrompe. No entanto, por mais que a comparação soe pecaminosa ou presumida, não deixemos de lado o real ponto da análise e a pergunta: até onde a justiça passa a ser vingança?

Na literatura, temos as mais diversas e famosas histórias onde a justiça mistura-se com a vingança, por exemplo na novela de Heinrich von Kleist, Michael Kohlhaas: “a história de um homem do povo que, na época da Reforma, foi ultrajado em seus direitos pelos aristocratas soberbos; que revida a injustiça, desencadeando uma revolta, quase uma guerra civil, cometendo os maiores horrores e expiando enfim no patíbulo seus crimes e sua luta pela injustiça. A justiça virou injustiça e vice-versa […]” (Carpeaux, 2013, p. 88). Após o vendedor de cavalos passar por um “expurgo” por parte dos nobres, e ainda perder a sua esposa, junta uma multidão de pessoas a favor de seu caso na luta contra os mais ricos e suas explorações na França — até mesmo o seu nome, Michael, refere-se ao Arcanjo Miguel (o arcanjo da justiça), a combater as forças do mal, e Kleinst deixa isso muito claro ao compará-lo à figura angelical constantemente. Saindo de Alemanha, podemos encontrar na França o notório O Conde de Monte Cristo, por Alexandre Dumas; Grécia, com Eurípedes, a trama da apaixonada e traída Medeia, entre outros exemplos.

Voltemos, agora, ao ponto da represália. A justiça, de acordo com o dicionário, é a “situação em que cada um recebe o que lhe cabe, como resultado de seus atos ou de acordo com princípios e a lei da sociedade em que vive”. Vingança, por sua vez, é a “ação ou resultado de vingar-se, de prejudicar uma pessoa por reparação ao dano causado por ela”, ou, ainda, “castigo, pena, punição”. A justiça funciona com a punição — nos dois casos há a limpeza, há a reparação de uma honra pelo dano de outra — diferindo apenas por suas naturezas: uma segue o que a lei comanda, já a outra funciona por conta própria, no comando daquele quem levou a desvantagem.

São inúmeras as obras — como vimos algumas anteriormente, sejam literárias ou não —, que mostram como personagens se saem bem ao dar o troco nas vilãs de suas histórias. Outras, entretanto, abordam a temática com outros olhos — a apresentar essas figuras no mais completo processo de definhamento. A sede do ódio toma todos os sentidos fazendo com que a vontade de um indivíduo se torne desvairamento podendo prejudicar, até mesmo, pessoas idôneas. Agora, a pergunta que surge é outra: até onde pode uma pessoa chegar com o seu objetivo de castigar a outra com as suas próprias mãos?

Finalizo esta minha breve introdução acerca da justiça e da vingança em obras literárias apresentando o meu objetivo com estas análises que virão a seguir. Irei comparar a obra de William Shakespeare, a tragédia de Hamlet, com o romance urbano do escritor romântico José de Alencar, Senhora. Primeiramente irei expor de que forma Hamlet desanda durante a sua história: desde sua caminhada em meio ao luto até a sua morte; depois, como Aurélia ultrapassa seus “planos comerciais”; por fim, traçarei um paralelo e provarei como ambos se tornaram os maiores vilões de suas próprias narrativas.

Por mais que para Hamlet tudo seja pó, o homem, tão parecido com Deus, o seu Criador, ou com os deuses, ao mesmo em que é belo, apresenta a decadência dentro de si. Ao mesmo tempo em que é Deus bom, é o ruim Satanás. Tem todos em suas mãos o poder de salvar-se e/ou destruir-se.

A decadência e fim de Hamlet, por Shakespeare

O jovem Hamlet, no início de sua trama, apresenta-se como um jovem um tanto quanto desacreditado da vida, obscuro, tomado por um profundo luto desde a morte de seu pai, mas também amado e respeitado pelo seu povo. Ele tem, de certo modo, uma força autodestrutiva dentro de si — na qual o encaminha, sem consciência, para a sua sangrenta morte. Ademais, a protagonista também transparece em seu jeito de ser muito de seu ambiente — uma Dinamarca em crise, desacreditada, obscura, ameaçada, assombrada e claustrofóbica.

A partir do momento em que o espectro de seu pai lhe aparece informando do que se passara, a história se encaminha para o desenvolvimento. Desde já o desencadear do ódio de Hamlet é contraditório, uma vez que:
 

O Fantasma jamais diz ter amado o filho, sendo improvável que o Rei Hamlet levara o Príncipe às costas uma vez sequer, muito menos mil. É duvidoso que o Príncipe tenha beijado Ofélia e Gertrudes “não sei quantas vezes”. Se em criança, Hamlet foi amado e amou, o objeto desse sentimento teria sido Yorick. Não creio que, quando adulto, Hamlet ame quem quer que seja, a despeito de suas declarações, o que torna ainda mais misterioso o motivo pelo qual nos juntamos à população dinamarquesa, em afeto a esse alienado tão carismático (Bloom, 2003, p. 55).

 

Hamlet quer vingar-se de seu pai, no entanto, por quê? Yorick, o bobo da corte e um já defunto, de acordo com uma das falas do jovem príncipe da notória cena do cemitério, parece lhe ter sido como um segundo pai a dar-lhe mais abraços e afetos. Quando o espectro lhe aparece, as suas falas [as do Rei morto] sempre são como “lembre-se de mim”, “se alguma vez amaste o teu querido pai”…, em tudo há um imperativo. Não por um acaso, o Rei mesmo se apresenta como um homem que pensa apenas em si — como se ordenasse ao próprio filho uma vingança, por mais que ainda o aconselhe a ser um homem contido na quinta cena do primeiro ato:
 

Se tu amas teu nascimento, não suportes,
Não deixes que o régio leito dinamarquês
Seja um divã funesto de luxúria e incestos.
Mas qualquer que seja a forma de tua vingança,
Não manches tua mente […] (Shakespeare, 2015, p. 90).

 

Ao longo do tempo, com sua estranheza e misterioso afastamento social, Hamlet aparenta ficar cada vez mais desvairado (entre muitas aspas) na visão daqueles que não sabem o que se passa em sua cabeça. Se torna um rapaz totalmente rude para os outros, a desobedecer a mãe, a ignorar a mulher que lhe tem amores e cada vez mais se isola do resto das personagens, segreda todas as suas opiniões e pensamentos como se todos estivessem contra ele.

O príncipe se torna um ser tão diferente que no decorrer da peça o assistimos se tornar de um rapaz jovem totalmente são, mas triste com o que se dera com a família, para um quase psicopata, maníaco. É visto quase que como um vírus, uma doença a ser combatida no Reino… E quando um ser humano, ou todo um Reino, possui algum corpo estranho dentro de si, não há outro jeito senão matá-lo. No início da terceira cena do quarto ato, Rei Cláudio, o assassino de seu pai, ao avisar aos nobres de que procurassem o corpo de Polônio (pai de Ofélia, sua amada), morto por Hamlet, trama o assassínio de seu sobrinho:
 

É um perigo deixar esse homem às soltas.
Mas não convém puni-lo co’rigor da lei,
Ele é adorado por essa turba volúvel
Que ama os olhos, nunca co’o juízo,
Que vê à frente o açoite que pune o faltoso,
Mas nunca a falta. Pra que tudo ocorra bem
Sua súbita partida tem de parecer
Pensada, ponderada. Toda doença drástica
Encontra sua cura com remédios drásticos
Ou não encontra mais (Shakespeare, 2015, p. 147).

 

Tampouco a sua mãe o vê com os mesmos olhos de antes e pensa ser justo puni-lo.
 

É um risco para todos que ele fique livre —
Um risco para você, nós, pra todo o mundo.
Céus, como responder a um ato tão brutal?
Recairá sobre nós, cujo zelo devia
Ter mantido esse jovem louco à rédea curta,
Longe do convívio. Era tal o nosso amor
Que não soubemos fazer o que era cabível.
Mas, como alguém sofrendo de uma peste horrível
Para evitar que espalhasse, a deixamos sugar
Até a seiva da vida. Para onde ele foi? (Shakespeare, p. 143).

 

Lembremos que o objetivo principal de vingar o seu pai era de matar o seu tio pelo cruel e covarde homicídio de seu irmão em busca da coroa da Dinamarca. Em suma, derramar apenas um único sangue sem que outras pessoas se machucassem — uma vez que, quem teve toda culpa da derradeira trama foi Cláudio, e não os outros. Entretanto, o Príncipe na quarta cena do terceiro ato acaba matando, com as suas próprias mãos, como dito anteriormente, Polônio (que estava a lhe investigar os estranhos casos de loucura). Nessa parte, Hamlet não aparenta apresentar nem um pouco de compadecimento, ou um susto que seja — somente, ao longo da cena, confronta a sua mãe, Gertrudes, por ter se casado com outro, irmão de seu falecido marido, e ter cometido, dessa forma, um ato pecaminoso: o incesto. Até mesmo faz questão de levar o corpo e sumir com ele como se fosse uma broma qualquer. Nesses tipos de atitude, nos perguntamos se ele tem a plena consciência de suas ações, mas não se importa — uma vez que o mundo, para ele, não tem lógica etc, muito ligada à essa força autodestrutiva. Ele cria o caos na Terra para quem não tem culpa. Hamlet, como dizem as notas de Griffin e Lowenstein, é intensamente absorto em si mesmo, e esse interesse em si se mantém até o último instante. […] A tarefa é escolher a si mesmo, aceitar o agora.

Outros casos do tipo podem ser observados, também, com a personagem Ofélia. Por mais que não tenha sido Hamlet a matá-la, ela tira a sua própria vida num corpo de água pelo luto da morte de seu pai (algo curioso a se pensar, uma vez que a peça inteira temos personagens que estão a perder o pai a todo instante, como o próprio Hamlet, os irmãos Ofélia e Laerte, Fortimbrás — e em decorrência disso também buscam o troco). Hamlet com os seus dois velhos amigos, Rosencrantz e Guildenstern — enviados pelos planos de Cláudio para aniquilar o seu sobrinho — partem para a Inglaterra com o objetivo de enviar uma carta — e na mesma, mandava para que matassem o Príncipe. No entanto, no meio da viagem, a protagonista a interceptou e mudou o pedido: no lugar dele, quem deveria ser morto seriam os seus companheiros de jornada. E ainda, no final, na última e intensa parte da peça, durante uma luta de espadas, ceifa a vida de Laerte e, enfim, a de seu inimigo e vilão, o Rei Cláudio. Polônio, Laerte, Cláudio e indiretamente Rosencrantz, Guildenstern e Ofélia.

Ao fim e ao cabo, a trama finaliza-se como o próprio Hamlet num suspiro final: é o mais completo silêncio. Após toda a tempestuosa briga, no rebu das situações, todos se encontram ao chão, mortos. A maioria da elite da Dinamarca na mais plena tragédia. Não há mais luta, não há mais planos, sussurros, monólogos, filosofias, remorsos… Todos estão desfalecidos. O resto é silêncio, é a morte, é o descanso, o sono.
 

Morrer, dormir.
Só isso. E dizer que com o sono damos fim
À nossa angústia e aos mil assaltos naturais
Que a carne herdou: sim, eis uma consumação
Que cumpre ardentemente ansiar. Morrer, dormir;
Dormir, talvez sonhar – sim, aí está o entrave:
Pois no sono da morte os sonhos que virão,
Depois de repudiado o vórtice mortal,
Nos forçam a refletir (Shakespeare, 2015, p. 111).

 

No final, valeu a pena toda essa luta, toda a desgraça, se todos dormem, se todos morrem, têm o mesmo final? Obviamente a resposta para essa questão é amplamente subjetiva.

Fortimbrás, ao chegar com os Embaixadores ingleses e os soldados, todo triunfante contra o Reino da Dinamarca, depara-se com o “fim da festa” a chamar toda àquela visão de um açougue. Quiçá o que defina toda a cena II do ato V seja a penúltima frase de Horácio:
 

E vão ouvir de ações
Carnais, sanguinolentas, antinaturais,
De juízos fortuitos, matanças casuais,
De mortes maquinadas por corações e ardis
E, enfim, sobre planos baldados que se voltam
Contra o próprio inventor (Shakespeare, 2015, p.194).

 

E não poderiam haver melhores adjetivos que descrevessem tudo o que o leitor leu ou a plateia assistiu. O que mais chama a atenção nesta frase de Horácio, no que tange o conteúdo da história, são os “planos baldados que se voltam / Contra o próprio inventor”. E A Tragédia de Hamlet tem muito sobre isso: pessoas que, por mais que planejassem com a razão, agiam tomados pelo calor da emoção. E Hamlet é — e certamente é — o maior exemplo de tudo isso. Seus planos de vingança não valeram a pena. Custaram tanto a sua vida, quanto a de quem mais o queria por perto e bem. Não nos esqueçamos também que foi por toda essa questão que a Dinamarca passou por um enorme perigo. Por mais que o Rei Hamlet, o seu pai, não lhe demonstrasse tanto amor, o aconselhou que se mantivesse nos trilhos do senso — o rapaz seguiu o juvenil impulso.

A sua vontade de querer que o tio Cláudio sofresse era tamanha que ultrapassava, até mesmo, as barreiras da fisicalidade. O novo Rei deveria sofrer até mesmo depois de sua morte com uma alma em tormento. Considero a terceira cena, do terceiro ato, a mais impactante da trama. Tomados pelos sentimentos, buscam racionalmente o outro lado de suas questões: Cláudio, que é o vilão, assassino, quer ser perdoado e volta-se, culpado, para Deus com a consciência de seus pecados; por outro lado, Hamlet, que é a personagem central, que deveria ser a bondosa, em busca de justiça (ou melhor, vingança), é tomado pela cólera e deseja que o tormento do tio ultrapasse as barreiras da vida. De certa forma, até mesmo quase que rasa, podemos dizer que o mal quer o bem, e o bem quer o mal…
 

E aí ele vai para o céu!
E assim fico vingado. Isso exige exame.
Um crápula mata meu pai, e, por vingança,
Eu, o único filho, envio o mesmo crápula
para o céu.
Quê? Isso é paga e prêmio, não uma vingança.
Ele ceifou meu pai, túmido, empanturrado,
Com os crimes viçando feito um maio lúbrico;
E suas contas, como ficaram? Só os céus sabem.
[…] Derruba — que ele vai chutar os céus co’os pés,
Ficar co’a alma preta e manchada feito o inferno,
Que é pra onde ele vai (Shakespeare, 2015, p. 132-133).

 

A peça de transição do bardo é uma das maiores tragédias de vingança. Ademais é a tragédia da inteligência, do intelectual, apenas esse tema junto com o tema da vingança é o que torna a peça com um aspecto de aparente incoerência (Carpeaux, 2013, p. 221). Ao mesmo tempo em que lemos uma obra acerca da grandeza humana, da grande razão que os homens detém em si, dos nossos grandiosos feitos pelo mundo — como eu trouxe de exemplo na abertura da primeira parte deste trabalho —, se apresenta como esse animal selvagem, tomado pelo instinto “carnívoro” de maneira corrosiva.

Outra peça do dramaturgo inglês, levado pelos questionamentos morais, mas de ações selvagens, é a noturna e absurda tragédia de Macbeth. Nela, assim como na peça na qual estou a analisar, cada problema começa a fazer parte de um certo tipo de bola de neve. Rei Macbeth ceifa a vida de outras pessoas em busca de uma posição hierárquica na qual já está presente em suas mãos sem que ninguém a corrompa. É interessante notar, também, como ambas as peças trazem, no princípio, a ideia de que algo no destino das personagens está certo e não acabará bem… Como se, por mais que elas lutassem contra todas as inconstâncias da vida, elas sempre acabam abdicando involuntariamente da razão para agir pelo impulso — o tal calor do momento. É inexorável. Ao menos, Macbeth e sua esposa acabaram, de certa forma, arrependidos — mas e Hamlet? Hamlet tinha algum tipo de sentimento? Isso é o que mais me leva a crer que o Príncipe da Dinamarca seja o vilão tal como o seu tio. Homens de guerra que em busca do que querem fazem qualquer coisa: Cláudio mata o Rei com um veneno para alcançar a coroa; Hamlet, tudo isso que disse anteriormente; e o Rei Hamlet, o pai de Fortimbrás.

A decadência e fim de Aurélia, por Alencar

A senhorita Aurélia, no princípio de seu romance, é descrita como uma linda jovem rica, desejada pelos homens, invejada pelas mulheres, frequentadora de grandes e luxuosas festas; no mais, uma estrela a raiar, como José de Alencar a descreve no primeiro capítulo, no céu fluminense. Tal como vimos em Hamlet, Aurélia apresenta uma força autodestrutiva dentro de si — que no entanto consegue, talvez, aparentemente, conter. Apesar da beleza estonteante e característica das protagonistas de histórias românticas — de toda a riqueza, de todo o carisma e docilidade —, o leitor acompanha a personagem desde sua inocência rompida por uma desilusão até a redenção de toda sua crueldade. A menina tão bondosa com os outros age pelo dinheiro para conquistar o que quer — até mesmo acabar com uma vida inteira de um homem. Por vezes suas atitudes são comparadas, e não só uma vez, com as características semelhantes à de um demônio. É uma mulher de duas faces, onde podemos observar atentos o seu outro lado da moeda.
 

Vemos que o comportamento do protagonista exprime, em cada episódio, uma obsessão com o ato de compra a que se submeteu, e que as relações humanas se deterioraram por causa dos motivos econômicos. A heroína, endurecida no desejo de vingança, possibilitada pela posse do dinheiro, inteiriça a alma como se fosse agente duma operação de esmagamento do outro por meio do capital, que o reduz a coisa possuída (Candido, 2000, p. 7-8).

 

Na primeira parte do romance, com o título de “O Preço”, acompanhamos a saga de Aurélia na compra de seu esposo, Fernando Seixas — um antigo amor seu. Desde esse ponto, a protagonista mostra-se uma mulher, mesmo que muito gentil, aberta e a frente do seu tempo, misteriosa e calculista. Existe algo dentro dela que não se revela até então. E para essa tal felicidade, gastaria o preço que fosse — mesmo sendo por um homem qualquer que trabalha no jornal e não tem os seus textos reconhecidos. Fernando é um bon-vivant que mesmo não sabendo quem estava a comprá-lo como um “escravo”, aceita o dinheiro por motivos especiais; não sabia onde estava a meter-se. O dinheiro, nessa primeira parte, é misturado com a felicidade por ser uma porta de acesso para todas as coisas (como é visto no quarto capítulo).
 

— Desejo como é natural obter o que pretendo, o mais barato possível; mas o essencial é obter; e portanto até metade do que possuo, não faço questão de preço. É a minha felicidade que vou comprar. […] Não dizem que o dinheiro traz todas as venturas? (Alencar, 2015, p. 43).

 

No final de O Preço, Aurélia mostra as suas reais faces ao seu (agora) marido — que lhe tinha o mais profundo amor —, uma pessoa amarga, rancorosa e prestes a fazer da sua vida o inferno na Terra. A partir desse ponto, a história se encaminha para quem Aurélia se tornou, ou melhor, está se tornando. Até mesmo a visão da riqueza está muito ligada a isso, a começar pelo nome da protagonista: Aurélia.
 

O nome Aurélia, segundo Andrade, Obata e Guérios, tem origem do latim aurelius, que significa “ouro, dourado”. Esse significado tem ligação direta com a personagem, que passa a ser dona de muitas riquezas após receber a herança de seu avô, Lourenço de Souza Camargo. Logo na primeira frase do romance, há uma descrição da protagonista que remete à etimologia do seu nome: “há dois anos raiou no céu fluminense uma nova estrela”, seguido de “era rica e formosa”. Elementos como o verbo “raiar” e “rica” remetem ao ouro (Pedrassani, 2021, p. 08).

 

Assim como Aurélia mostra-se como um ser humano, por mais que bondoso com um caráter duvidável, o dinheiro também pode prover qualquer coisa, mas também tem o seu lado negativo.

Na segunda parte, Quitação, conhecemos mais profundamente a trajetória da personagem desde os familiares até o seu nascimento, a dura vida na pobreza, o coração partido por Fernando e a ascensão social. As mulheres de sua família, como fica evidente no texto, sofreram com arrependimentos sentimentais ao longo da vida. Aurélia e seu irmão são frutos de um juvenil amor entre a mãe e um rapaz com uma condição social muito elevada para desposá-la — de acordo com a visão da época, e em decorrência disso o pai do tal mancebo é quem o obriga a ter uma vida com outra —, ou seja, Emília, a mãe, também passara por traumas por apaixonar-se por um homem. O seu nome também viera de uma mulher que fora infeliz: “A esse tempo já lhe havia nascido também uma filha que chamou-se Aurélia, por ter sido este o nome da mãe de Pedro Camargo, infeliz rapariga, que morrera da vergonha de seu erro” (Alencar, 2015, p. 104).

A tristeza feminina parece um padrão familiar. A mãe de Pedro sofrera, Emília sofrera e Aurélia também sofreu — é uma repetição, assim como o seu nome, que veio de uma parenta sua.

Anos depois, a menina Aurélia cresceria e conheceria Fernando, o seu primeiro amor, que a trocou por uma mulher mais rica. Sua atitude, sim, foi imperdoável e baixa e isso fez com que a protagonista, a equilibrar-se com o peso da pobreza e a dor do irmão perdido, tivesse mais um fardo para carregar. Mas como quase toda obra romântica há uma grande reviravolta. O senhor Camargo, pai do antigo amor de sua mãe, após a dor de perder o filho, arrepende-se e deixa toda a sua herança para a neta. Dessa forma, e sem tardar muito, a menina começa a fazer parte da elite carioca e logra com suas conquistas, sua admirável inteligência com os números e dinheiro e beleza.

Na terceira parte, intitulada “Posse”, observamos o resultado do casório comprado por Aurélia e o amargo arrependimento de Seixas.
 

— Meu Deus! exclamou o mancebo comprimindo o crânio entre as palmas das mãos. Que me quer esta mulher? Não me acha ainda bastante humilhado e abatido? Está se saciando de vingança! Oh! ela tem o instinto da perversidade. Sabe que a ofensa grosseira ou caleja a alma, se é infame, ou a indigna se ainda resta algum brio. Mas esse insulto cortês cheio de atenção e delicadezas, que são outros tantos escárnios; essa ostentação de generosidade com que a todo momento se está cevando o mais soberano desprezo; flagelação cruel infligida no meio dos sorrisos e com distinção que o mundo inveja; como este, é que não há outro suplício para a alma que não se perdeu de todo. Por que não sou eu o que ela pensa, um mísero abandonado da honra, e dos nobres estímulos do homem de bem? Acharia então com quem lutar! (Alencar, 2015, p. 173).

 

Aurélia, em suas humilhações, cria um ambiente insuportável com o seu marido. Além do vexame de sentir-se um homem comprado, também ele sofre pelas memórias do passado e com as atitudes dúbias de sua esposa: na sua frente ela é uma mulher demoníaca, na dos outros, um anjo inocente. À medida que o gosto de vê-lo mal vai aumentando, e a raiva em vê-lo distanciado, seus comportamentos parecem piorar. Aurélia é uma ventríloqua, mas Seixas, entendendo muito bem disso, aos poucos vai se soltando dessas amarras — tivera também o seu coração roto e se arrependera amargamente, mas não se submete aos agrados da mulher. Não usa os perfumes caros ou as roupas nas quais ela lhe compra, ou ainda não anda de carro como um homem de sua posição social. No quarto capítulo de “Posse”, encontramos uma conversa entre o casal acerca dessa questão:
 

— A riqueza também tem sua decência. Casou-se com uma milionária, é preciso sujeitar-se aos ônus da posição. Os pobres pensam que só temos gozos e delícias; e mal sabem a servidão que nos impõe esta gleba dourada. Incomoda-lhe andar de carro? E a mim não me tortura este luxo que me cerca? (Alencar, 2015, p. 175).

 

Por mais que tenha conhecido os dois lados da vida: a extrema e triste pobreza ao lado da mãe e, naquele momento, a riqueza e a obtenção de tudo que podia, não parecia mais ser uma pessoa humilde. Como agora é rica, não quer ser comparada com os pobres apenas porque seu esposo optou por caminhar pelas ruas e não ir de carro.
 

— Pensa então que a decência de sua casa exige que seu marido ande de carro?
— Penso que me casei com um cavalheiro distinto, que sabe usar de sua fortuna, e não com um homem vulgar.
— Tem razão. Reclama o que lhe pertence, e eu seria um velhaco se lhe recusasse o que adquiriu com tão bom direito (Alencar, 2015, p. 176).

 

O dinheiro e fama tornam-se questões primordiais para a personagem. No entanto, nem tudo o que reluz é ouro e a sua realidade começou a gradativamente apodrecer. A sua vida não era mais real. Suas falas não tinham mais a seriedade e tampouco verdade, era tudo quase sempre muito irônico… Além de ser a vilã para o seu marido, desata a, a partir de um momento, ser a sua própria antagonista. Ela é apaixonada por Fernando e quando nota que ele não lhe tem mais esse sentimento, definha. E observamos que “o passo dado em direção ao romance de análise social fora uma concessão — logo mudada em crítica — à mentalidade mercantil que remontava no fim do Império. Mentalidade que o escritor rejeita quando vem à tona a vileza crua do interesse, mas não quando enevoada pelos fumos de requinte aristocrático: a glória dos salões, o luxo das alcovas, a pompa dos vestuários” (Bosi, 2021, p. 147), ou seja, tudo é uma crítica ao dinheiro. A riqueza de Aurélia a fez conquistar tudo que ela queria, mas e o sentimento?

Na quarta e última parte do romance de Alencar, Resgate, o leitor acompanha essa decadência de Aurélia com mais rigor. Nessa seção é ela quem sofre com os seus atos até mesmo fisicamente. É chegado um ponto no qual a relação torna-se tão incômoda que até mesmo quem achava antes que os dois eram um casal feliz e perfeito desconfia. É onde, também, que a inversão das características das personagens em comparação ao início se torna mais evidente. Aurélia está mais fraca, vulnerável, quase que resignada, arrependida de tudo que fizera; enquanto Fernando Seixas está mais forte, maduro, com caráter, em busca de seu divórcio — Fernando está em busca de resgatar sua dignidade e sua liberdade. No final, entendemos como o dinheiro os levaram às ruínas.

O amor de Aurélia é tão fervente que ela se compara à peça de Shakespeare, Otelo:
 

Muitas vezes aconteceu-lhe pensar que ela podia ser uma heroína dessa grande epopeia da mulher, escrita pelo imortal poeta. No dia do casamento, sua imaginação exaltada chegou a sonhar uma morte semelhante à de Desdêmona (Alencar, 2015, p. 257).

 

No entanto, nesse contexto, quem mais parecia, com seus ciúmes doentios, ser Otelo a estrangular Desdêmona era a própria Aurélia. E com a leitura podemos ver que ela seria bem capaz de fazer isso ou ainda pior.

Entretanto, será que com todo esse sofrimento de Aurélia por não ter o amor de seu marido é verdadeiro ou só uma arma, uma manobra para ele lhe ter pena? Ela foi capaz de casar-se com Seixas para obter sua desgraça. Agarrar-se a ele nos papéis da lei com o objetivo de se vingar. Aurélia não é uma mulher confiável e não a conhecemos por inteira — e isso é comprovado se levarmos em conta a voz do autor. O autor está a escrever o que se passara entre os dois anos depois do ocorrido, não é um deus para saber do caráter de qualquer um da narrativa. Essa controvérsia mostra-se na cena final do último capítulo. Aurélia sabia o que Seixas estava a fazer: em busca de saldar as dívidas e arrumar a separação. Como ferramenta final, Aurélia lhe deixa toda a herança — querendo conquistá-lo novamente com o dinheiro. Por mais que antes de mostrá-lo o papel do testamento tivessem conversado sobre o amor e Seixas já ter se mostrado novamente apaixonado, vemos que os planos sujos da sua ex a envolver dinheiro novamente dá certo: “— Esta riqueza causa-te horror? Pois faz-me viver, meu Fernando. É o meio de a repelires. Se não for bastante, a dissiparei” (Alencar, 2015, p. 279).

Há, obviamente, humanidade nas palavras de Aurélia, mas um sentimento obsessivo. Um amor no qual, desde o casório, era misturado com essa profunda sede de vingança. Não é um sentimento saudável, por mais que seja verdadeiro. Tudo envolvia muito a questão emocional: a dependência. Além do dinheiro que conquista tudo, dos amigos e festas deslumbrantes, da fama, o que mais tinha Aurélia no seu mundo privado?

O romance acaba com as palavras finais mais certeiras e José de Alencar mostrou-se um escritor astuto com isso: “As cortinas cerram-se, e as auras da noite, acariciando o seio das flores, cantavam o hino misterioso do santo amor conjugal” (Alencar, 2015, p. 279). As cenas descritas entre ambos sempre apresentam esse ambiente teatral. Como se o leitor, numa plateia, assistisse a uma longa peça de teatro. Nela, a comédia da vida onde Alencar fez questão de compor a sua crítica, o seu descontentamento com a época e com os costumes.

Hamlet e Aurélia

Após as análises das duas obras, ponhamos elas lado a lado e observemos a jornada dos indivíduos centrais a decaírem para a vilania. O objetivo de vingança de Hamlet e Aurélia não era apenas o troco na mesma moeda — eles queriam ver os seus “inimigos” arcarem com suas consequências nas suas mãos. Cláudio deveria pagar pelo que fez no inferno por ter matado o seu irmão; Fernando, com um casamento repleto de humilhações. Enquanto Hamlet desvaira e acaba por matar muitas mais pessoas que planejou, Aurélia, tomada por uma ganância brutal, perde a humildade, a humanidade e o amor de seu marido.

As personagens tiveram destinos diferentes, alcançaram o que tanto, ao longo de suas histórias, queriam por mais que tenham sido consumidas por uma selvagem mágoa. A força do querer em Shakespeare e em Alencar é extrema e chega a vendar os olhos de quem a busca saciar como uma sede. Utilizam-se elas muito mais da espada do que da balança — e por conta disso, tornam-se, a um certo ponto, vilãs.

William Shakespeare teve como objetivo apresentar a natureza humana, a razão, o pensamento, a intelectualidade e como os homens são capazes de serem seres incríveis — Mas Hamlet, com sua dualidade, é um animal, uma fera que está em busca do que anseia e preso no ciclo da vida.

José de Alencar queria fazer uma análise crítica da sociedade, do casamento, do dinheiro, da posse, negociações e nos brindou com uma profunda e interessante observação da inconstância da mente humana. Não por acaso, também observamos a fama no título da obra: Senhora. É uma mulher casada, um pronome de tratamento que demonstra respeito. Não é uma mulher (no contexto da época) “avulsa”, em busca de um homem.

Para concluir, o leitor pode levar como mensagem, em ambas as obras, como a maldade lhe é intrínseca e um caminho para a perdição. Mas como somos seres racionais, podemos ser o Diabo, como também podemos ser um Deus.

Referências
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BLOOM, Harold. Gênio: os 100 autores mais criativos da história da literatura. Tradução: José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.

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SHAKESPEARE, William. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. Tradução: Lawrence Flores Pereira. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2015.