RESUMO: A partir de seu conhecimento sobre certas vivências femininas afro-brasileiras e a função social da poesia, a pesquisadora e escritora mineira Conceição Evaristo tece o livro Poemas da recordação e outros movimentos (2017) permeada às noções de força e memória ancestral, registrando lembranças ao mesmo tempo que as (re)imagina por meio da escrita. Dessa forma, a obra de Evaristo permite ampliar as discussões sobre o fazer poético através da fricção entre as vivências, as vozes e os versos de mulheres negras pertencentes a contextos históricos diversos. Logo, o seguinte artigo propõe discussão do conceito de metapoesia como recurso de reflexão poética, assim como suas possíveis relações com a “escrevivência”, termo cunhado pela própria Evaristo, e a subalternização de corpos femininos (Spivak, 2010). Ademais, pretende-se refletir sobre a utilização da voz como um artefato metapoético e característico da obra de Evaristo, utilizando a análise do termo “conjuração”, discutido em Spina (2002), como alicerce teórico.
PALAVRAS-CHAVE: Metapoesia; Conceição Evaristo; Escrevivência.
ABSTRACT: Based on her knowledge of Afro-Brazilian female experiences and the social function of poetry, the researcher and writer from Minas Gerais, Conceição Evaristo, wrote the book Poemas da recordação e outros movimentos (2017) permeated with the notions of strength and ancestry, recalling memories at the same time that she (re)imagines them through writing. In this manner, Evaristo’s work allows us to broaden discussions about poetic making through the friction between the experiences, voices and verses of black women belonging to different historical contexts. Therefore, the following article proposes a discussion of the concept of metapoetry as a resource for poetic reflection, as well as its possible relationships with “escrevivência”, a term coined by Evaristo herself, and the subalternization of female bodies (SPIVAK, 2010). Furthermore, this work intends to reflect on the use of the voice as a metapoetic artifact and characteristic of Evaristo’s work, using the analysis of the term “conjuration”, discussed in Spina (2002), as a theoretical foundation.
KEYWORDS: Metapoetry; Conceição Evaristo; Escrevivência.
Introdução
Publicado em 2017 pela editora carioca Malê, o livro Poemas da recordação e outros movimentos é uma das únicas obras de poesia da escritora mineira Conceição Evaristo. Em suas páginas, temas que marcam a carreira e a vida da autora, como as vivências femininas afro-brasileiras e a função social da escrita são acompanhados por reflexões que envolvem a presença e a força da ancestralidade.
Ao evocar essa memória coletiva dentro de seus poemas, Evaristo permite ampliar as discussões sobre o fazer poético, friccionando e ficcionando as diversas vivências, vozes e versos de mulheres negras. Pensando nisso, o seguinte trabalho visa refletir sobre o exercício metapoético e seus desdobramentos sociais e literários a partir da análise de metapoemas presentes na obra mencionada.
Com base nas considerações de Maria Bochicchio sobre o conceito de metapoesia, propomos investigar as interações desses metapoemas com o conceito de “escrevivência”, cunhado pela própria Evaristo, perpassando questões como a subalternidade da voz e da escrita (voz-escrita) de mulheres negras. Para auxiliar nessas reflexões, elencamos o texto Pode o subalterno falar?, da pesquisadora Gayatri Spivak, visando um diálogo com as perspectivas desenvolvidas em determinados metapoemas.
Ademais, para discutir sobre os diferentes aspectos da metapoesia de Evaristo em torno do termo “conjurar”, selecionamos a noção de “canto mimético” abordada em A madrugada das formas poéticas. Esse conceito e a análise antropológica executada pelo autor Segismundo Spina também se mostram importantes para investigar as particularidades da relação entre voz, escrevivência e metapoesia.
Dividido em duas partes, este trabalho foca, primeiramente, na apresentação do conceito de metapoesia e em algumas de suas relações com o conceito de escrevivência e a subalternização de corpos femininos. A segunda parte, delimita-se a refletir sobre a utilização da voz como um artefato de cunho metapoético e da escrevivência, utilizando a análise do termo “conjuração” como alicerce para esse estudo.
Onde habita a metapoesia?
Em Poemas da recordação e outros movimentos, os 65 poemas são separados, de forma não proporcional, em seis conjuntos. Cada grupo de poemas é introduzido por um trecho narrativo sucinto que parece explicitar a temática geral do conjunto que o sucede. Algumas das divisórias temáticas percebidas foram: a violência racial, o amor, as vivências de mulheres (destaque para a maternidade), a infância, a escrita e o banzo. O uso do termo banzo para algo semelhante à palavra “saudade” foi pensado com o objetivo de alinhar-se não somente à obra de Evaristo, mas também às especificidades desse escrito com raízes afro-diaspóricas tão marcantes.
Como já citado, um dos temas presentes em Poemas da recordação e outros movimentos concerne à própria ação de escrever textos, em especial o fazer poético. Partindo do conceito de “metalinguagem”, desenvolvido por Roman Jakobson em “Linguística e Poética”, podemos inferir que a função metalinguística encontra-se atuante quando determinado “discurso focaliza o código” Jakobson (2007), ou seja, quando se desenvolvem reflexões em torno do código que está sendo utilizado na situação comunicativa.
Dentro da metapoesia, a metalinguagem funciona concomitantemente à função poética da linguagem, visto que os metapoemas, além de refletirem sobre o uso do código linguístico no fazer poético, também focalizam na própria mensagem veiculada por meio desse código.
Em paralelo à conceituação dada por Maria Bochicchio, em Metapoesia e a crise da consciência poética, também podemos acrescentar que
No texto metapoético é a própria poesia que é questionada, nas suas matrizes culturais e referenciais, nos seus pressupostos e nos seus objectivos, no elenco de interpretações ou de enigmas que suscita, no que afirma explicitamente e no que supõe ou omite (Bochicchio, 2012, p. 155).
Elencando tais questões e conceitos para pensar sobre a metapoesia na obra Poemas da recordação e outros movimentos, é perceptível que há uma utilização dos metapoemas como recurso de reflexão poética, permitindo a incorporação de críticas sobre as “matrizes culturais e referenciais” da poesia, incluindo a própria figura do poeta.
Um dos aspectos mais importantes para o desenvolvimento de tais reflexões na obra, é a intersecção com os eixos temáticos de raça, classe e gênero, os quais possibilitam considerações sobre o local subalterno circunscrito à mulher negra e à comunidade afro-brasileira dentro do contexto de produção literária poética.
Em “A empregada e o poeta”, por exemplo, a denúncia de uma hierarquização da figura do poeta perante a figura da empregada ressalta um silenciamento da voz-escrita da empregada ao mesmo tempo que demonstra uma cisão entre essas duas figuras. O distanciamento retratado, o qual parece impedir a coexistência entre essas duas imagens, reforça que o único lugar possível para “a serviçal” seria o de zelar pela obra alheia e não o de construir a sua.
Na primeira estrofe, a própria voz do poema suspeita que essa “figura poeta” poderia ser “envenenada”, ou seja, metaforicamente retirada do seu local de privilégio e exclusividade no exercício poético. Essas suspeitas fazem com que os livros sejam afastados da serviçal:
Na suspeição de que a empregada envenenaria o poeta
anteciparam as dores dos livros.
Folhas mortas despencariam dos troncos,
lombadas folheadas em ouro,
tesouro do poeta,
que a mesma serviçal
eficiente e justa cuidava em sua obra
(Evaristo, 2017, p.106-107).
Nessa estrofe, o “tesouro do poeta” e as “lombadas folheadas em ouro” recriam a imagem do homem escritor branco e burguês como representante dessa espécie de poeta verdadeiro, visto que sua imagem é a única legitimada. Em ambos os sentidos, ele e a voz-escrita mostram-se à prova de qualquer suspeita.
Além disso, o aspecto de fluidez e ininterrupção propiciados pelos enjambements, além da utilização dos ponto e vírgulas que remetem aos usos narrativos e a voz do poema em terceira pessoa, parecem guiar o poema para uma atmosfera estética de cantiga popular ou um “debochado cordel”, termo que aparece na segunda estrofe:
A empregada envenenaria o poeta,
um mofo podre acumularia
de cada letra morta.
E a biblioteca manuseada
pela mente assassina
esperaria uma nova edição
de um debochado cordel,
que cantaria a história do poeta
e do bife envenenado,
trazendo o verso final:
“o peixe morre é pela boca.”
Todos suspeitariam,
condolências antecipadas
surgiriam em prosa e verso.
Entretanto suspeição alguma
ouviu e leu a história da empregada.
Ela jamais assassinaria o poeta.
(Evaristo, 2017, p. 106-107).
Tal uso do cordel como exemplo e veículo da “história” ficcionada no poema, assim como o verso “o peixe morre é pela boca”, parecem sugerir uma espécie de caricatura da “escrita popular” na qual a empregada estaria circunscrita. Nessa mesma estrofe, a voz do poema que “conta” os desdobramentos da “história” mostra a serviçal ainda na esfera de “suspeitas”. Entretanto, fica claro que apenas isso já é o suficiente para condenar a empregada pelo “envenenamento” e metafórica subversão da figura do poeta.
Nos últimos três versos: “Entretanto suspeição alguma/ ouviu e leu a história da empregada./ Ela jamais assassinaria o poeta” (Evaristo, 2017, p. 106-107), a perspectiva das “suspeitas” começa a mostrar sinais de dissipação, visto que o silenciamento da voz-escrita da empregada torna-se explícito. Contudo, o verso “Ela jamais assassinaria o poeta” acaba gerando uma imagem ambígua, já que ao mesmo tempo que ele enfatiza a inocência da serviçal na “história”, ele também condena sua voz-escrita à subalternidade.
A última estrofe desse metapoema encerra a “história” revelando o nome da empregada: Raimunda. Essa escolha reforça a ideia de que a última estrofe intenciona evocar os contornos de uma voz-escrita própria da figura da empregada e que rompe com estereótipos cunhados anteriormente. Para tanto, o lugar de subalternidade literária e social, trazidos por meio das restrições ao ambiente e ao trabalho doméstico, ainda se mostram como a realidade irredutível de Raimunda:
Quando o bife passou
quase amargo e cru,
foi porque o tempo logrou
as tarefas de Raimunda.
O não e o malfeito da empregada
eram gastos às escondidas em leituras
do tesouro que não lhe pertencia.
No entanto ela sabia, mesmo antes do poeta,
que rima era só rima.
E em meio às lacrimejantes cebolas
misturadas às dores apimentadas
nos olhos do mundo,
Raimunda entre vassouras, rodos,
panelas e pó desinventava de si
as dores inventadas pelo poeta
(Evaristo, 2017, p. 106-107).
Finalizando com a ideia de que a “morte” do poeta pode ter sido um acidente, o metapoema esclarece os encarceramentos de Raimunda: a condenação prévia e um “envenenamento” que não resultou na subversão da figura do poeta, mas sim na permanência de sua voz-escrita na subalternidade. Essa conclusão pode ser analisada em paralelo à obra “Pode o subalterno falar?”, da pesquisadora Gayatri Spivak, a qual comenta: “O subalterno como um sujeito feminino não pode ser ouvido ou lido” (Spivak, 2010, p. 124).
A semelhança dessa citação com os versos “Entretanto suspeição alguma/ ouviu e leu a história da empregada” não é por acaso, visto que tanto Spivak quanto o metapoema apresentado partem de uma certa figura exemplar a qual possui sua voz-escrita e perspectivas legitimadas socialmente. Desse modo, o próprio sujeito feminino e suas intersecções, como é o caso de Raimunda e a figura da empregada, são marcados como ilegítimos, assim como as vozes-escritas que partem desses lugares.
Outro tópico evocado pela metapoesia em Poemas da recordação e outros movimentos, é o uso de paráfrases e referências de outras obras para desenvolver as reflexões. Para Maria Bochicchio, esses processos fazem parte do cerne da escrita metapoética e são essenciais para analisá-lo: “[a metapoesia] Torna-se matéria de si mesma, espelho, glosa, paráfrase, análise de processos próprios ou alheios, programa e transgressão, surpresa ou mesmo exploração do lugar-comum” (Bochicchio, 2012, p. 155).
Ainda em “A empregada e o poeta”, versos como “Raimunda entre vassouras, rodos, / panelas e pó desinventava de si / as dores inventadas pelo poeta” (Evaristo, 2017, p. 106-107) podem ser associados ao metapoema “Autopsicografia”, do escritor português Fernando Pessoa. Nesse movimento, Pessoa parece assumir o papel de poeta canônico, antagonizando com a figura da empregada e a deslegitimidade de sua voz-escrita:
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm
[…] (Pessoa, 1995, p. 235).
Esse mesmo “desinventar de si das dores inventadas do poeta” pode ser analisado como uma espécie de deslocamento dessas dores da esfera ficcional para uma esfera não-ficcional. Pensando no “desinventar” como um resgate desses sentimentos, as vivências podem ser compreendidas como as “dores desinventadas” de Raimunda que também carregam em si a voz-escrita pulsante.
Esse encontro entre a voz-escrita subalternizada e as vivências pode ser pensado em paralelo a um conceito desenvolvido pela própria autora Conceição Evaristo, denominado “escrevivência”. Esse termo é descrito como a habilidade “de fazer as histórias se (con)fundirem com sua própria história” tal como cita Isabella Rosado Nunes, uma das organizadoras da obra “Escrevivência: a escrita de nós”.
Essa amálgama entre ficção e as vivências reflete diretamente as “dores desinventadas” de Raimunda, visto que a escrevivência também fala especificamente sobre as vozes-escritas de mulheres negras que, assim como suas histórias, eram subalternizadas “entre vassouras, rodos, panelas e pó”.
Para além de tais reflexões que permeiam “A empregada e o poeta”, Conceição Evaristo concebe a própria escrevivência como uma ferramenta de reapropriação dos “signos gráficos” e do “valor da escrita”, como um resgate de vozes ancestrais, além de criticar e responsabilizar os agentes da violência sob o corpo-escrita de mulheres negras do passado e do presente:
Escrevivência, em sua concepção inicial, se realiza como um ato de escrita das mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz de mulheres negras escravizadas tinha sua potência de emissão também sob o controle dos escravocratas, homens, mulheres e até crianças. E se ontem nem a voz pertencia às mulheres escravizadas, hoje a letra, a escrita, nos pertencem também. Pertencem, pois nos apropriamos desses signos gráficos, do valor da escrita, sem esquecer a pujança da oralidade de nossas e de nossos ancestrais. Potência de voz, de criação, de engenhosidade que a casa-grande soube escravizar para o deleite de seus filhos. E se a voz de nossas ancestrais tinha rumos e funções demarcadas pela casa-grande, a nossa escrita não. Por isso, afirmo: “a nossa escrevivência não é para adormecer os da casa-grande, e sim acordá-los de seus sonos injustos” (Evaristo, 2020, p. 30).
Por meio desse conceito e as subsequentes reflexões evocadas por Evaristo, podemos inferir que há um lugar dentro dos metapoemas que compõem Poemas da recordação e outros movimentos onde a inscrição de vivências individuais e coletivas mostra-se um ato de (re)existência de uma voz-escrita tão subalternizada quanto os corpos-vozes que a compõem.
Em “Inquisição”, por exemplo, o poder legitimador pertencente à figura do poeta é novamente evocado, entretanto, a irônica dedicatória “ao poeta que nos nega” já introduz uma perspectiva combatente e de reavaliação de tal poder:
Enquanto a inquisição
interroga
a minha existência,
e nega o negrume
do meu corpo-letra,
na semântica
da minha escrita,
prossigo.
Assunto não mais
o assunto
dessas vagas e dissentidas
falas.
Prossigo e persigo
outras falas,
aquelas ainda úmidas,
vozes afogadas,
da viagem negreira.
E, apesar
de minha fala hoje
desnudar-se no cálido
e esperançoso sol
de terras brasis, onde nasci,
o gesto de meu corpo-escrita
levanta em suas lembranças
esmaecidas imagens
de um útero primeiro.
Por isso prossigo.
persigo acalentando
nessa escrevivência
não a efígie de brancos brasões,
sim o secular senso de invisíveis
e negros queloides, selo originário,
de um perdido
e sempre reinventado clã.
(Evaristo, 2017, p. 108-109).
É interessante observar como o uso da acentuação, principalmente o ponto final, disposto no último verso de cada estrofe, funciona para reforçar um tom de autoridade e uma certeza nos posicionamentos da voz metapoética. Ao mesmo tempo, a presença da aliteração, por meio do uso do P e do R em versos como “Por isso prossigo./ persigo acalentando” e “Prossigo e persigo/ outras falas”, promove uma espécie de entrave na cadência dos enjambements que pode ser analisada como uma pausa ou um “engasgo” dessa voz que “o poeta” nega ou, justamente, como os bloqueios que precisam ser enfrentados para que essa voz prossiga a dizer.
Nesse metapoema, por meio do reconhecimento da própria inquisição realizada sobre o “corpo-letra” afro-brasileiro e feminino, a conclusão sobre as opções da voz-escrita subalternizada é diferente da vista em “A empregada e o poeta”. O “prosseguir e persistir”, associado à própria ideia de escrevivência, age como um caminho de cura, de resgate ancestral e negação do lugar de subalternidade ao qual essa voz-escrita foi circunscrita.
Assim, por meio do encontro da noção de escrevivência com as metapoesias presentes em Poemas da recordação e outros movimentos, torna-se possível investigar outras intersecções e interações habitam entre essa voz-escrita e o fazer poético.
O conjurar poético e seus desdobramentos
Partindo do metapoema “Conjuração dos versos”, percebemos o uso da voz tanto como agente sonoro-rítmico de reflexão metapoética quanto como metáfora de recusa ao silenciamento imposto:
— nossos poemas conjuram e gritam —
O silêncio mordido
rebela e revela
nossos ais
e tantos são os gritos
que a alva cidade
de seu imerecido sono,
desperta em pesadelos.
E pedimos
que as balas perdidas
percam o nosso rumo
e não façam do corpo nosso,
os nossos filhos, o alvo.
O silêncio mordido,
antes o pão triturado
de nossos desejos,
avoluma, avoluma
e a massa ganha por inteiro.
E não há mais
quem morda a nossa língua
o nosso verbo solto
conjugou antes
o tempo de todas as dores.
E o silêncio escapou
ferindo a ordenança
e hoje o anverso
da mudez é a nudez
do nosso gritante verso
que se quer livre
(Evaristo, 2017, p. 87-88).
Esse uso da voz como artefato metapoético e da escrevivência pode ser pensado, de acordo com Maria Bochicchio, como uma “amálgama” própria das construções metapoéticas: “O metapoema, à medida que o texto avança, vai devorando, incorporando e digerindo a ideia de que parte, amalgamando-a à linguagem que utiliza” (Bochicchio, 2012, p. 155).
Uma das formas em que esse processo pode ser percebido é no uso de palavras que contrastam em seu sentido contendo pronúncias semelhantes, como nos pares: “alvo – lavo”, “mudez – nudez” e “rebela-revela”. Por meio dessa união entre palavras contrastantes, as críticas referentes à violência racial e ao silenciamento sistemático são aludidas com maior ênfase sonora.
Outras referências à voz, como “língua” e “gritam”, também podem ser pensadas em paralelo ao “morder” e ao “silêncio”, os quais formam agentes antagônicos que limitam ou excluem o poder dessa “voz”. Além disso, ainda que o par “conjurar-conjugar” não esteja presente exatamente dessa forma no metapoema, também acreditamos que ele pode ser importante para compreender o duplo funcionamento da “voz” como artefato metapoético e de escrevivência.
Sob uma perspectiva antropológica, Segismundo Spina comenta, em A madrugada das formas poéticas, sobre a influência da voz humana e de sua modulação como intrínseca ao processo de formação da poesia. Ao explicar sobre o chamado “canto mimético”, Spina pontua sua realização no contexto de povos agricultores/sedentários, caracterizando-o como “uma espécie de canto mágico” que, no entanto, “ultrapassa os limites das fórmulas de encantamento”.
Além disso, a imitação da fauna, dos ritos de combate e caça também são elencados pelo autor para compreender uma potência não estritamente corpórea desse canto: “[…] é o canto mimético da própria vida dos Espíritos, a fim de conjurar essas forças de que dispõem os espíritos dos mortos no mundo dos vivos” (Spina, 2002, p. 40).
Tal conjurar, citado por Spina, pode ser pensado paralelamente ao par “conjurar-conjugar” e ao próprio título do metapoema “Conjuração dos versos”. Ao evocar a ancestralidade, “o nosso verbo solto/ conjugou antes/ o tempo de todas as dores”, a dupla voz do poema conjura os ancestrais ao conjugar seus próprios versos-verbos. Nesse sentido, o verbo pode ser assimilado tanto como artefato morfológico quanto sinônimo de voz, amalgamando aspectos do resgate ancestral, característico da escrevivência, com a metapoesia sob a qual ele desenvolve-se.
Para além do resgate memorialístico, esse “conjurar de versos” também dimensiona uma resistência das vozes subalternizadas, revelando e denunciando violências — “E pedimos/ que as balas perdidas/ percam o nosso rumo/ e não façam do corpo nosso,/ os nossos filhos, o alvo”, assim como o próprio silenciamento:
E o silêncio escapou
ferindo a ordenança
e hoje o anverso
da mudez é a nudez
do nosso gritante verso
que se quer livre
(Evaristo, 2017, p. 87-88).
O uso do “anverso” como um par contrastante ao “verso-grito” remete mais uma vez ao silenciamento como aprisionador e a voz escrevivente-metapoética como sinônimo de liberdade corpórea, ancestral e poética. Nessa conjuração-conjugação, a voz do poema rejeita o silêncio da subalternidade e o “anversa” conjurando as vozes do presente e do passado, para acordar os moradores da “alva cidade” de seu “sono imerecido”.
Assim, as características do canto mimético elencado por Spina sustentam uma reflexão sobre o “conjurar” que envolve tanto os aspectos metapoéticos de voz e ritmo, quanto seus desdobramentos no contexto da escrevivência, relativos ao resgate e força ancestral.
Considerações finais
Deste modo, as análises e reflexões feitas a partir dos metapoemas possibilitaram observar alguns dos desdobramentos sociais e teóricos sobre o fazer poético quando inserido numa discussão interseccional de gênero, classe e raça. Entre essas reflexões, ressalta-se a subalternidade da voz feminina afro-brasileira, evocada por Raimunda, em “A empregada e o poeta”.
Além disso, por meio do conceito de escrevivência e o metapoema “Inquisição”, foi possível observar novas ferramentas contra o silenciamento imposto às vozes subalternizadas, dentre elas, podemos citar a própria escrita de escrevivência concomitante às reflexões sobre o fazer poético evocadas pela metapoesia.
Nessas interações da escrevivência e da metapoesia, também foi possível investigar diversos aspectos da “voz”, perpassando noções como a resistência e o resgate de ancestrais por meio da “conjuração” pensada, paralelamente aos ritos miméticos e à perspectiva antropológica de Spina.
Sobre o termo “conjuração”, ao desenvolvermos uma análise sobre o metapoema “Conjuração dos versos”, esse mostrou-se de muita relevância para aludir aos objetivos literários-sociais da escrevivência, ao mesmo tempo que age como artefato metapoético relativo ao som e à elaboração semântica.
Assim, a metapoesia presente em Poemas da recordação e outros movimentos viabilizou reconhecer os múltiplos potenciais dos metapoemas como promotores de reflexões sobre o fazer poético, além de possibilitar uma investigação sobre o contexto de desenvolvimento da própria poesia e dos diferentes aspectos sociais relevantes para a obra da autora Conceição Evaristo.
Referências
BOCHICCHIO, M. Metapoesia e crise da consciência poética. Biblos, Coimbra, vol. 10, p. 154-172, jan. 2012.
DUARTE, C. L.; NUNES, I. R. (org.). Escrevivência: a escrita de nós – Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. Disponível em: https://www.itausocial.org.br/wp-content/uploads/2021/04/Escrevivencia-A-Escrita-de-Nos-Conceicao-Evaristo.pdf. Acesso em: 16 set. 2021.
EVARISTO, C. Poemas da Recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017.
JAKOBSON, R. Linguística e Poética. In: JAKOBSON, R. Linguística e Comunicação. 24. ed. São Paulo: Cultrix, 2007. p. 79-108.
PESSOA, F. Poesias. 15. ed. Lisboa: Ática, 1995.
SPINA, S. Introdução. In: SPINA, S. A madrugada das formas poéticas. 2. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. p. 15-42.
SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.