RESUMO: Este ensaio propõe analisar o Manifesto Antropófago (Andrade, 1928) como equalizador da presença dos habitantes das terras outrora colonizadas. Ao revisitar os registros coloniais acerca do ritual tupinambá, ancorada principalmente em Eduardo Viveiros de Castro (2002, 2018), penso que, na contrariedade à condenação da antropofagia, o Manifesto subverte a presença parcial (Bhabha, 2014 [1983]) fixada pela frente-colonial na “guerra etnológica” (Derrida, 1973). Se esta hipótese estiver correta, tal articulação da Antropofagia oswaldiana me permite pensá-la junto ao giro de Aníbal Quijano (1992, 1999), sendo ela a ruptura com a colonialidade de saber e poder. Entretanto, uma ruptura ainda incipiente, uma vez inexistentes as ponderações acerca de raça, sobretudo das comunidades indígenas das quais o Manifesto se utiliza.
PALAVRAS-CHAVE: Manifesto Antropófago; Presença parcial; Colonialidade.
ABSTRACT: This essay aims to analyze the Manifesto Antropófago (Andrade, 1928) as an equalizer of the presence of formerly colonized lands inhabitants. By consulting the colonial written records surrounding the anthropophagical Tupinambá ritual, as described by Eduardo Viveiros de Castro (2022, 2018), my hypothesis is that the Manifesto subverts the partial presence (Bhabha, 2014 [1983]), contrary to the condemnation of anthropophagy established by the colonizers in the “ethnological war” (Derrida, 1973). If this hypothesis is correct, such an articulation of Oswald’s Anthropophagy allows me to consider it alongside Aníbal Quijano’s (1992, 1993) giro decolonial, the rupture with la colonialidad de poder y saber. However, this rupture is still incipient since considerations regarding race are totally absent from it, which is especially concerning considering how the Manifesto utilizes indigenous communities cosmology and traditions.
KEYWORDS: Manifesto Antropófago; Partial presence; Coloniality.
1. E a letra, não é uma violência?
Os registros coloniais feitos das comunidades indígenas do território (atualmente) brasileiro são, como bem sabemos, permeados pelo eurocentrismo e por uma majoritária incompreensão de suas organizações culturais. Um ponto relevante que atesta essa centralização é a percepção dos jesuítas, à qual temos acesso justamente pelos registros coloniais, de que os indígenas não possuiriam religião, apenas cultura(Viveiros de Castro, 2002)[1]; uma forma de justificar a ação catequética, que não se caracterizaria enquanto uma violação, mas, sim, uma conversão de costumes, própria a uma esfera cultural (Serafim Leite, 1938 apud Viveiros de Castro, 2002). Para ilustrar, recordemos da história da ausência dos fonemas /r/, /l/ e /f/ na língua tupi, o que levou os colonizadores a julgarem os povos como sem fé “porque não tinham lei, [e] não tinham lei porque não tinham rei”, quando, na realidade, as comunidades estavam imersas nas suas próprias crenças (Viveiros de Castro, 2002, p. 218). Percebemos, portanto, um dos ruídos entre a organização sociocultural dos povos indígenas e os registros coloniais, nos quais há uma mímica [mimicry], uma repetição, — em vez de uma representação — (Bhabha, 2014) das comunidades indígenas.
O olhar que captura as comunidades é o mesmo que delimita categoricamente os mais ou menos “civilizados”; respectivamente, aquelas mais receptivas à presença física do colonizador, como as falantes da língua tupi, e aquelas que não (Cunha, 1990). A classificação em “aliadas” ou “não-aliadas”, embora haja desencontros nos registros, ainda serviu aos propósitos da frente-colonial (cf. Fausto, 1992). Dentre o grupo dos Tupi da costa, houve um interesse dos jesuítas pela comunidade Tupinambá frente à possibilidade de salvá-los do seu “costume” de guerrear com os vizinhos — catequizá-los. No entanto, durante o processo, o interesse, minado pela dificuldade de conversão, foi cedendo espaço para a desistência e a frustração.
A ordem dessa dificuldade era logística e lógica, como salienta Eduardo Viveiros de Castro (2002): já que os Tupinambá não adoravam a nada nem tinham poder centralizado, era custosa a transposição de uma crença como a cristã-católica, pautada na adoração a um deus onipresente, onisciente e onipotente (ou seja, com um poder centralizado). Outro desencontro diz respeito à compreensão da noção de perdão (Bosi, 1992), base do Cristianismo, uma vez que a crença dos Tupinambá se pautava na vingança. Logo, por mais que tivesse êxito durante um período, a conversão não perdurava; mesmo crendo, permaneciam incrédulos, aponta Viveiros de Castro (2002) retomando Padre Antônio Vieira.
As registadas queixas da dificuldade de conversão, residente nesse desencontro com a “inconstância” da alma Tupinambá, assim descrita pelos jesuítas, estendiam-se à condenação dos “maus costumes”. A religião tupinambá, “radicada no exocanibalismo guerreiro”, projeta “uma forma onde o socius constituía-se na relação ao outro, onde a incorporação do outro dependia de um sair de si” (Viveiros de Castro, 2002, p. 220, grifos meus); nesse espaço de incorporação, está a antropofagia, a devoração — literal — do outro. Motivada por uma vingança visando a sua própria perpetuação através da memória do outro, a antropofagia é um ritual determinante do “átomo da vingança”, “a qualificação de ‘inimigo’ em escala suficiente para que a vingança possa continuar” (Cunha; Viveiros de Castro, 2018, p. 66). A prática, contudo, foi abandonada com certa relutância à medida que a administração colonial, e também os jesuítas, julgaram-na um empecilho para a escravização uma vez que os inimigos — possível mão-de-obra escravizada — eram mortos nos rituais (Cunha; Viveiros de Castro, 2018). “A murta [as comunidades indígenas] tem razões que o mármore [os colonizadores] desconhece” (Viveiros de Castro, 2002, p. 221), e obviamente o mármore não quis compreender as suas razões.
Da incompreensão, a violência da letra. A classificação da alma dos Tupinambá em “inconstante” e de sua cultura — em mais ou menos “civilizada” — provém de registros logocêntricos do outro-colonizador. É ainda atrelada ao contexto de dominação no nível do colo, ocupar e explorar um novo chão, submeter os seus naturais à dinâmica colonial (Bosi, 1992). Se pensarmos semelhantemente à análise de Tristes trópicos, realizada por Jacques Derrida (1973), o caso dos jesuítas assemelha-se ao de Lévi-Strauss[2], dadas suas motivações particulares: ambos percebem nas comunidades a origem, o “grau zero”, sobre as quais “se poderiam desenhar a estrutura, o devir e principalmente a degradação de nossa sociedade e nossa cultura [ocidentais]”, refletindo “o sonho de uma presença plena e imediata” (Derrida, 1973, p. 142). Só se projeta a origem sobre as comunidades por julgarem-nas ausentes de uma memória e de uma escritura[3]; no caso dos jesuítas, os Tupinambá ainda estariam pautados nos “maus costumes” e poderiam moldá-los sob uma égide cristã, salvá-los por serem, apesar de “selvagens”, “bons”.
Os registros, por fim, tentam desnudar as comunidades indígenas para colocá-las em uma outra roupagem: a da lógica europeia-branca. É nisso que reside a “guerra etnológica”, “a confrontação essencial que abre comunicação entre povos e as culturas” (Derrida, 1973, p. 131). Por mais que o encaixe realizado na lógica europeia possa ser considerado absoluto, há nessa mesma abertura a possibilidade de expor a parcialidade da presença (Bhabha, 2014).
2. A revolução Caraíba
À vista desse panorama, traço um diálogo entre os registros coloniais e o Manifesto Antropófago[4] (1928) a fim de compreender, neste, a subversão daqueles: no movimento de se atrelar ao olhar da cosmologia indígena — sobretudo dos Tupinambá e da sua prática antropofágica — sobre o europeu, exibe-se a parcialidade do olhar do colonizador e da presença (Bhabha, 2014) sobre os sujeitos colonizados. Ao partir da palavra “karaiba”, designação dada aos europeus em geral “assimilados aos xamãs-profetas tupinambá” (Viveiros de Castro, 2002), propõe-se uma outra ontologia, um outro devir, na medida em que contraria a imposição cristã-colonial. A proposta é ser assimilado, considerando a visão do outro sobre o eu, e assimilar o outro da mesma forma. A afirmação “Queremos a revolução Caraíba” (Andrade, 1928, p. 3), ou o “Instinto caraíba” (Andrade, 1928, p. 3), indica esse processo simultâneo de assimilação: a palavra “caraíba” funde e faz coexistir duas perspectivas em um mesmo espaço-tempo.
Ancorada em Bhabha (2014, p. 146, grifos do autor), penso que a Antropofagia oswaldiana rompe com a mímica gerada nos registros jesuíticos das comunidades indígenas[5], cujo “desejo [é o] de um Outro reformado, reconhecível, como um sujeito de uma diferença que é quase a mesma, mas não exatamente”. Os indígenas são distinguidos dos e pelos jesuítas — basta lembrarmos do julgamento dos “maus costumes”; não obstante, são objetos do desejo de um porvir cristão e europeu, o que gera o reconhecimento através do olhar jesuítico-colonial. Ainda assim, mesmo que se tornassem cristãos, na percepção do colonizador, descreveriam-nos como “os selvagens” por não serem brancos e europeus.
Fixa-se o sujeito colonizado em uma presença “parcial” — virtual e incompleta — por nascer justamente da ótica do colonizador, autoridade, sobre o colonizado, submisso dentro da dinâmica colonial (Bhabha, 2014). Uma ótica, adianto, racista: eis a razão gerada no seio da colonização para a incompreensão da “murta” (Quijano, 1992, 1999). O Manifesto Antropófago, por outro lado, consegue equalizar e reorganizar a presença ao se basear na fenda da mímica colonial deixada pelos registros, aberta pela “guerra etnológica” (Derrida, 1973).
Se nos registros, o espaço destinado às culturas indígenas é para repreensão e sobreposição da cultura europeia-cristã sobre elas, de modo a desnudá-las para para encaixá-las; no Manifesto, o ritual Tupinambá é central e basilar para a proposta de devoração das outras culturas pelo processo antropofágico: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” (Andrade, 1928, p. 3). Nesse aforismo, além de exibir um ponto central do Manifesto, noto a equalização da presença: se apenas a antropofagia nos une nas esferas sociais, econômicas e filosóficas (Andrade, 1928, p. 3), a “lei do antropófago”, expandida a todos, prevê uma presença completa e concreta daquele que é assimilado, podendo inclusive ser o eu completo para quem o recebe e, portanto, o devorado. Prevê igualmente a presença incompleta de quem assimila, relativa à incompletude ontológica da filosofia Tupinambá, tratando-se “de uma ordem onde o interior e a identidade estavam hierarquicamente subordinados à exterioridade e à diferença”, na qual mais valia o devir e a relação do que o ser e a substância (Viveiros de Castro, 2002, p. 220, grifos meus). O interesse no que não pertence ao antropófago existe porque há o potencial de ser seu diante do desejo insaciável de completar a falta do eu e do coletivo. Em vez de se pensar o outro enquanto o porvir do eu, parcializando esse mesmo outro — como desejava a frente-colonial —, é o eu, no Manifesto, a poder ser os outros a partir da memória herdada dos devorados. Os outros, antes de serem um problema, são a solução.
A memória do inimigo, na comunidade Tupinambá, dá-se no tempo e é produzida pelo tempo, desatrelada de uma origem e apontada para um futuro (Cunha; Viveiros de Castro, 2018): “Contra a Memória, fonte do costume. A experiência pessoal renovada” (Andrade, 1928, p. 7). No Manifesto, a ruptura com a memória estruturada em um passado atrelado a classes dominantes, com o propósito de ratificar a moralidade europeia-cristã, é consequência da reorganização ontológica. Desse modo, mais vale conjecturar a constante renovação da própria alma a partir do que o eu assimila do outro no tempo presente.
Afinal, me parece que o Manifesto deseja alcançar exatamente a inconstância, tão temida pelos jesuítas. Com a renovação do que se herda, fornece-se a “vacina antropofágica”, para “o equilíbrio contra as religiões de meridiano” e contra “as inquisições exteriores” (Andrade, 1928, p. 3). Se a “inquisição” for tomada, em geral, como a tentativa europeia-ocidental de parcializar perspectivas distintas de si na metafísica da presença, logo, é fornecido um dispositivo para combater o pensamento hegemônico e propor uma autonomia em relação às antigas metrópoles — o que favorece, nos espaços pós-coloniais, o “estabelec[imento de] uma angulação que nos permit[e] lidar de maneira renovada com esse patrimônio [cultural]” (Sterzi, 2022, p. 22).
O Manifesto, dessa maneira, erige um espaço de criação aos viventes do “país da cobra grande” (Andrade, 1928, p. 3), então, supostamente, “rechaç[ando] a dívida contraída pelo não-europeu com o universal, para então indiciá-la duplamente — como signo de reconhecimento e, paradoxalmente, de auto-reconhecimento” (Santiago, 2008, p. 24, grifo do autor). Com um dispositivo capaz de projetar e criar outros mundos renovados, baseados em matrizes culturais diferentes (cf. Danowski; Viveiros de Castro, 2017; Santiago, 2008; Sterzi, 2022), equaliza-se a presença dos “filhos do sol” (Andrade, 1928, p. 3) no panorama ocidental, onde surgiu e foi parcializada. “Contra os importadores de consciência enlatada” (Andrade, 1928, p. 3) pela possibilidade de completar o eu a partir da devoração do outro, de quem se herda algo produtivo para a memória coletiva. A revolução Caraíba.
3. Por um mundo não rubricado
Entretanto, a quem se destinaria a revolução? Acredito que o seguinte aforismo do Manifesto elucida uma parte dessa questão: “Filhos do Sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande” (Andrade, 1928, p. 3, grifos meus). Aderindo à reflexão de Alexandre Nodari (2022) sobre o enunciador e quem seria o nós do Manifesto Antropófago, o coletivo que se deseja alcançar concentra-se nos “filhos do sol”, ou seja, nos habitantes dos trópicos cujo contato com a terra onde vivem precisa ser retomado. Frente ao desapossamento da terra, ainda caracterizo os “filhos do sol” como a maioria racializada, os outros distinguidos fenotípica e culturalmente no período colonial — distinção esta persistente na globalização (Quijano, 1999). Tais habitantes são o marco do (des)encontro[6]: um contato entre os povos distintos, por razões distintas — os traficados, por exemplo, decorrente da mão-de-obra escrava —, e entre “tempos e temporalidades, entre a história e o mito, pois que ele [o contato] não se dá no Brasil, mas no ‘país da cobra grande’ [provavelmente a ‘cobra grande’ sendo referência a alguma narrativa amazônica]” (Nodari, 2022, p. 91). Por isso, configuram nesta análise mais do que o destinatário: são o principal mote para a revolução Caraíba, uma forma de resistência contra-hegemônica.
Para Aníbal Quijano (1992, 1999), o período colonial demarca o início do que entendemos pelo (des)encontro nas terras outrora colonizadas, onde se estruturou um poder baseado na ideia de raça. A ideia não unicamente amparou a dominação colonial, como estruturou “padrões de relações historicamente necessárias e permanentes, quaisquer que sejam as necessidades e conflitos originados na exploração do trabalho”[7] (Quijano, 1999, p. 139, grifos meus, tradução minha) por parte dos colonizadores brancos. Essa dominação ramificou-se conjuntamente a uma repressão sistemática “dos modos de conhecer, de produzir conhecimento, de produzir perspectivas, imagens e sistemas de imagens, símbolos, modos de significação”[8] (Quijano, 1992, p. 12, tradução minha) das populações não-brancas, ao passo que impuseram o sistema europeu de produzir conhecimento como forma de controlar o poder sobre os colonizados. Não podemos, pois, perder de vista o prefixo — “des-” — por existir um conflito em andamento entre as cosmologias e as perspectivas de conhecimento pela presença de uma hegemônica — a eurocêntrica (Quijano, 1999). Tais engrenagens funcionam em prol do que Quijano (1992, 1999) intitula colonialidade de saber e de poder.
O mesmo período parece ser reconhecido pelo Manifesto para esse conflito, dentro do qual se posiciona contra o eurocentrismo, de modo que me possibilita traçar um diálogo com o giro decolonial de Quijano (1992): “Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cayrú: — É a mentira muitas vezes repetida” (Andrade, 1928, p. 7, grifos meus). No ato do antropófago de “desmentir” reside o desmantelamento da colonialidade de saber, do logos imperante — a desestruturação de quem articula a repressão sistêmica, atestada na percepção dos jesuítas da crença e do ritual tupinambá. Consequentemente, cabe aos antropófagos propor outros rumos para a memória coletiva, recriar mundo(s) “Contra as histórias do homem, que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César” (Andrade, 1928, p. 7). O recorte de classes no Manifesto, ao se posicionar contrário às “elites vegetais”, que estabelecem “comunicação com o solo” (Andrade, 1928, p. 3), oportuniza a articulação com o conceito de história proposto por Walter Benjamin (2012 [1940]) em “Sobre o conceito de história”: é preciso opor-se ao conceito histórico subserviente ao progresso capitalista realizado em um tempo vazio e homogêneo; olhar para o passado, antes de se projetar para o futuro, é a emersão de uma história a contrapelo, cuja perspectiva parte dos oprimidos para combater as classes dominantes. Ao retomar os conflitos entre a frente-colonial e os colonizados, o Manifesto compreende o exato movimento de tomar uma outra postura frente à história. Assim, a devoração do que pode completar o antropófago deve apontar para o rompimento com uma história teleológica, exaltadora dos “vencedores” — as classes dominantes —, disposta a uma progressão pautada no acúmulo de fatos anteriores e no domínio; abre-se uma possibilidade de descontinuidade, uma constante renovação visando a recriação da alma, da cultura e da terra, bem como uma ruptura com a opressão capitalista, imiscuídas à história da própria colonização (Quijano, 1992; 1999).
Os moldes para (re)criação irrompe da necessidade de invenção “criada pela dialética e pela interdependência que ela impõe entre os vários contextos da cultura”, em um processo transformador dos símbolos dispostos, agregando-lhes outros significados (Wagner, 2010 [1981], p. 105). A terra é o melhor exemplo dessa necessidade: sendo a demarcação espaço-temporal única e prevalente no Manifesto, a terra se reveste de um outro mundo projetado — o “país da cobra grande”, a “mãe dos viventes” —, uma alternativa para os acontecimentos marcados nela, embora não os exclua. Para desmentir a “verdade” dos jesuítas, basta (re)conhecê-la e entender ao que ela se destina — ou seja, o que a verdade almeja esconder. Sob essa condição, a construção do espaço revolucionário dos antropófagos.
A iminência desse espaço-tempo me permite, baseada ainda em Quijano (1999; 199), reforçar a diferença entre os “filhos do sol” e as “elites vegetais”. Concebo as “elites vegetais” como o grupo que retém a outra face do signo “terra” — também a maior parte de sua materialidade; uma minoria branca, responsável pela rearticulação das bases estruturais do poder colonial, porque “mais dispost[a]s a identificar seus interesses com os dos dominadores do mundo eurocêntrico, apesar de suas diferenças e seus conflitos setoriais”[9] (Quijano, 1999, p. 141). A colonialidade de poder e a dependência histórico-estrutural, estabelecida pela permanência desse contato, implica no eurocentrismo como perspectiva hegemônica de conhecimento (Quijano, 1999), e, simultaneamente, desemboca no desejo de rejeição, até negação, das demais. Perceber essa distinção, solidificada no período colonial pelos europeus brancos, desmascara “a persistência da colônia e [possibilita] lidar com o significado político da raça como princípio capaz de desestabilizar a estrutura profunda da colonialidade” (Segato, 2021, p. 255, grifos meus). Mais do que perceber, nomear a raça é o caminho para a descolonização, para a desestruturação das “elites vegetais”, cuja dominação constitui-se na distinção racial e do trabalho.
Noto, no entanto, que o Manifesto Antropófago (1928) permanece reticente quanto a reflexões raciais, ainda que se oponha à frente-colonial e aponte uma outra alternativa para a perspectiva eurocêntrica de conhecimento. Portanto, a dívida dos não-europeus, um contingente heterogêneo composto por histórias, tradições e traços distintos, violentados pelo sistema colonial de modos particulares, demonstra um rechaço incompleto. Convém atentar à tonalidade do Manifesto quando, em momentos muito pontuais, nomeia o “índio” — uma das raças geradas no seio do período colonial — em um dos aforismos[10]: “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses” (Andrade, 1928, p. 3, grifos meus). Recobrando Nodari (2022), o nós de qualquer manifesto, principalmente um vanguardista, é performativo, com uma oscilação entre a exclusividade de quem enuncia e o subscreve e o desejo de se tornar uma maioria. Particularmente, o Manifesto Antropófago, apenas subscrito por Oswald de Andrade (1928), varia entre “um ‘nós’ majestático metonímico e uma deiticidade democrática que permite a todo aquele que diz o ‘nós’ do ‘Manifesto’, constituir-se ‘Antropófago’” (Nodari, 2022, p. 82).
No aforismo, da primeira pessoa do plural, alterna-se para a terceira do singular, o “índio”, uma fração do nós deslocada que age subvertendo as configurações culturais ocidentais por seu encaixe nelas ser forçado — eis a mímica (Bhabha, 2014). Acredito que tal agência pode ser o motivo — ao menos, um dos — pelo qual não haveria a catequização — ao contrário, “fizemos foi carnaval”. Com esse movimento, cabe questionar as implicações de unificar e deslocar esse sujeito, representante de um grupo, no aforismo. Estendendo suas reflexões acerca do enunciador do Manifesto, ao considerar que no nós inclui-se as populações indígenas, Alexandre Nodari (2024, p. 193, grifos do autor) questiona se
[…] não poderíamos dizer, seguindo Beatriz Azevedo, que quem fala no Manifesto, o “nós” do texto, são os índios em nós, aqueles que devoramos pelo processo colonizador; que quem nele se manifesta para nós são os índios em nós, os outros em nós, nós-outros? E não poderíamos afirmar também que, como “vacina antropofágica” contra nós-mesmos, o que eles nos oferecem, pelo “corpo desmembrado da palavra” do Manifesto que se assemelha ao corpo “retalhado” do inimigo no banquete canibal, é o “gosto”, amargo e indigesto, da nossa “própria carne”?
Conclui, ainda, que para os antropófagos os indígenas não apenas estão, mas são a vanguarda, já que “não cess[am] de originar outras histórias, porque há muito tempo estão abrindo e seguindo o caminho outro que forma os ‘Roteiros’ múltiplos que nós agora devemos trilhar” (Nodari, 2024, p. 194). Reitero que, assim como Nodari (2024), visualizo os indígenas sendo componentes do “nós-outro”, sendo parte dos “filhos do sol”, contudo, sugiro uma outra questão para como eles se manifestam — ou não — no Manifesto.
Retornando ao aforismo, a unificação, de certa maneira, oblitera o fato de que a catequização, violência simbólica e física, diz respeito ao que passaram em específico as populações racializadas; naquela seção, as populações indígenas. A voz enunciadora, com seu almejo de ser a maioria, imagina uma frente-colonial iludida pela efetivação da catequização. Contudo, penso que a voz ilude a si mesma ao conjecturar uma subversão do passado ao generalizar as experiências e compartilhá-las entre todos os “antropófagos”, incluindo os brancos: a subversão, procedente da ridicularização da frente-colonial, inviabiliza-se em um contexto no qual a violência não é experienciada por todos aqueles pertencentes ao nós — a experiência, inclusive, parece algo que o enunciador reconhece, pois separa o “índio” desse grupo para torná-lo agente único das ações. A generalização, sendo assim, mais dificulta o reconhecimento das violências particulares de cada grupo racializado, formador da maioria à qual se desejaria imiscuir o Manifesto. Oblitera-se, por fim, parte dos caminhos que guiam à ruptura com a colonialidade, sobretudo a alternativa ao eurocentrismo e o movimento contra-hegemônico.
Considero, logo, que o Manifesto não efetua inteiramente a angulação renovada, proposta por Eduardo Sterzi (2022), ou o rechaço à dívida dos não-europeus (Santiago, 2008). Inclusive, o apontamento da presença dos indígenas na vanguarda (Nodari, 2024) demonstra insuficiência por não ponderar sobre o que enfrentam essas comunidades sob a continuidade da colonização. Na mesma terra onde a história marca os corpos dissemelhantemente conforme instituiu a colonização, a unificação pelo nós oculta o racismo, motivador da violência contra populações racializadas e uma das chaves, junto ao trabalho (Quijano, 1992; 1999), para irromper com a colonialidade. Embora o Manifesto reconheça o recorte de classes, a visão junto aos oprimidos no passado, pontuada por Benjamin (2012), não abarca as reflexões raciais.
Nas últimas décadas, um movimento de contestação à Antropofagia oswaldiana e ao modernismo paulista advém de alguns artistas e pesquisadores sobretudo indígenas[11]. Julie Dorrico (2022), pesquisadora e parte do povo Macuxi, ao mapear a fortuna crítica de Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, e indicar a exclusão por parte dessa mesma crítica das obras do artista macuxi Jaider Esbell — Makunaîmi: o avô em mim e Terreiro de Makunaima: mitos, lendas e histórias — aponta para a retomada, inclusive em um dos espaços de saber — a academia —, do que pertence à ancestralidade de seu povo. Jaider Esbell, ao contrário de Mário de Andrade, está engajado em realocar Makunaîmi na ancestralidade do povo macuxi; com tal postura, coloca em pauta a maneira como os povos indígenas são representados na obra de Andrade (Dorrico, 2022).
Quanto à Antropofagia oswaldiana, especificamente, trago um fragmento do poema de Denilson Baniwa, artista pertencente à comunidade Baniwa, publicado na The Brooklyn Rail, cuja proposição é uma ReAntropofagia (2018, n.p., grifos meus): “a arte moderna já nasceu antiga / com seus talheres forjados à la paris / […] ReAntropofagia posta à mesa nostálgica / é arte-indígena crua sem nenhum caráter”. No poema, concebe-se a Antropofagia oswaldiana nos mesmos termos do último aforismo analisado: o indígena cheio de sentimentos europeus — tornado, portanto, índio —, uma vez que o ritual indígena reveste-se de uma perspectiva branca — ou seja, não-indígena; forja-se algo incondizente com o ritual antropofágico que ignora sua ancestralidade. Semelhantemente, destaca Dorrico (2022, p. 115, grifos meus): embora autores tenham dissertado sobre a condição precarizada das comunidades indígenas no Brasil, “sinalizando os impactos negativos da colonização e o estabelecimento do Estado-nação, esses mesmos foram incapazes de capacitar ou convidar os sujeitos indígenas para a autoria, para ocupar esse lugar de direito nas letras e no mercado editorial”.
Por essa razão, urge uma reapropriação do que é seu, a emergência de um enunciador inclusivo, representativo e autoral dessas comunidades, a fim de “que desta longa digestão / renasça Makünaimî / e a antropofogia originária / que pertence a Nós / indígenas” (Baniwa, 2018, n.p., grifos meus). Perante a apropriação da Antropofagia e, o foco deste ensaio, a não menção das comunidades racializadas, na qual inclusive o Manifesto Antropófago (1928) se apoia, são as comunidades indígenas sua própria guia para criação também do seu espaço artístico, filosófico, social e econômico no plano ocidental.
Por conseguinte, cabe trazer a afirmação de Rita Segato (2021), alcançada também por um percurso teórico estruturado no giro de Quijano, no ensaio “Os rios profundos da raça latinoamericana: uma releitura da mestiçagem”, de que Antropofagia é um dispositivo de branqueamento. Pertinente à discussão deste ensaio, penso que a colocação de Segato (2021) precisa de revisitação. Ao tratar de duas perspectivas distintas da mestiçagem: uma, do pluralismo histórico, que traz à mestiçagem, enquanto identidade, maleabilidade para retomar os rumos da sua história; outra, articulada pelas elites, cujo propósito é o embranquecimento das populações racializadas. Esta última desemboca no etnocídio dessas populações, “pois, apesar de construir-se como ‘utopia mestiça’ capaz de unificar a nacionalidade como resultado de uma amálgama de sociedades, de fato produz o esquecimento de suas linhagens constitutivas” (Segato, 2021, p. 274). Por fim, realizando uma leitura alegórica, a antropóloga encaixa a Antropofagia na segunda perspectiva. Cito:
No Brasil, a alegoria modernista da antropofagia, que por digestão dará origem a um povo novo, mestiço, misturado, esquece de dizer que é um organismo único o que processa todos os outros em sua digestão violenta, uma digestão unificadora. A mestiçagem, na versão das elites, é um caminho unitário da nação em direção ao seu branqueamento e modernização eurocêntrica (Segato, 2021, p. 275, grifos meus).
Não unicamente no ensaio mencionado Segato (2021) aborda a Antropofagia como alegoria para mestiçagem. Nos ensaios “Aníbal Quijano e a perspectiva da colonialidade do poder” e “Brechas decoloniais para uma universidade da Nossa América”, integrantes da coletânea Crítica da colonialidade em oito ensaios: e por uma antropologia de demanda (2021), atribui-se à Antropofagia a vanglória da mestiçagem com intuito de embranquecimento, a ponto de associá-la ao projeto freyriano — ambos parte da “utopia da mestiçagem brasileira” (Segato, 2021, p. 61). O que Rita Segato compreende na Antropofagia como alegoria da mestiçagem? Em nenhum dos ensaios seu argumento justifica-se a partir de qualquer obra do movimento, o que torna imprecisa qualquer menção[12]. No entanto, por a crítica de Segato abarcar todas produções do movimento, permito-me contestar sua percepção a partir do Manifesto.
Ora, como seria possível o Manifesto servir ao projeto de nação unificada baseado na mestiçagem se nele sequer são referenciados a nação e o mestiço, algo já explorado por este ensaio? A antropóloga ainda afirma que a Antropofagia, parte de um projeto da elite brasileira, intentaria uma “modernização eurocêntrica”. Não me parece que o Manifesto se encaminha para essa direção: frente, por exemplo, à modernização de São Paulo, momento no qual o Modernismo paulista situa-se, acredito que haja a proposta de democratizar esses meios para as classes trabalhadoras, interditadas de acessá-los, para que irrompam contra as elites detentoras e articuladoras dessa mesma modernização. Defendo minha observação a partir do projeto planetário e universal existente no Manifesto, conforme o marxismo — o que seria a “lei do antropófago” que não uma universalização de direitos na busca por uma política emancipatória?
O ponto é: o processo de unificação e generalização, feito pelo enunciador, não especifica as demandas das populações racializadas, embora lance mão de sua história para propor tal democratização. Assim, considerar categoricamente a Antropofagia oswaldiana enquanto dispositivo de embranquecimento, como faz Segato (2021), retira seu potencial inicial de desfixar os sujeitos coloniais de uma dinâmica eurocêntrica de poder e de saber, além de democratizar o espaço metafísico-político aos “filhos do sol”. Todavia, ainda é necessário perceber o caminho adiante a ser percorrido para a descolonização — feito, por exemplo, pela ReAntropofagia —, possível sob a condição de compreender o modo como a colonialidade violenta cada grupo a fim de interrompê-la.
À guisa de uma (possível) conclusão, penso que o Manifesto é uma ruptura com a frente-colonial, já que consegue reorganizar e equalizar a presença, expondo a parcial (Bhabha, 2014) gerada na mímica dos registros jesuíticos e reservando um espaço econômico, social e filosoficamente possível no plano metafísico-político ocidental. Todavia, um rompimento incompleto por as ponderações acerca de raça aparecerem em uma quantidade reduzida de aforismos e, como levantado, de uma maneira generalizante. Esse movimento, além de atravancar o rumo à descolonização, desconsidera as realidades múltiplas dos “filhos do sol”, geradoras de um percurso mais extenso a ser feito por eles para que possam existir plenamente sob a “lei do antropófogo”. Somente a partir do reconhecimento dos sujeitos racializados, assim como de suas experiências, em um movimento contra a rearticulação das “elites vegetais”, que se retomará os rumos para uma história nova (Quijano, 1992). Para o mundo a rubricar pelos “filhos do sol”.
Referências
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[1] Viveiros de Castro (2002) chama atenção para a distinção. Na antropologia contemporânea, entende-se que a religião não está dissociada da cultura — ainda mais, a cultura é em si um sistema de crença.
[2] O próprio Derrida (1973, p.132) reconhece tal semelhança, já que analisa a obra de Lévi-Strauss como forma de demonstrar que, “mesmo quando esta comunicação não se pratica sob o signo da opressão colonial ou missionária”, há a chamada “guerra etnológica”.
[3] Acrescento que estas comunidades, na percepção do europeu, seriam despossuídas da história por não terem uma escritura fonética (Derrida, 1973). A essa reflexão, sobre o status da escritura fonética e do fonocentrismo nos registros coloniais e sua relação com a Antropofagia oswaldiana, caberia um outro trabalho.
[4] Utilizo a versão on-line disponível da Revista de Antropofagia, mais precisamente da 1ª dentição, apenas com o vocabulário atualizado.
[5] Tal ruptura não se restringe aos povos indígenas: do contrário, o Manifesto parte de suas experiências para generalizá-las e estendê-las aos demais — sobre isso, trato detalhadamente na seção seguinte.
[6] O (des)encontro, no entanto, embora marcado, não é fincado, estagnado, em um passado. O passado é vivo, resultado de uma constante renovação no espaço-tempo presente — lembremos da memória renovada, clamada pelo Manifesto —, a ponto de os povos citados na seção do Manifesto ainda terem potencial para devorarem e de serem devorados pelo nós do Manifesto. Tal compreensão é importante para não cairmos na tentação de achar que os “filhos do sol”, por terem sido encontrados em um pretérito que se perpetua, dizem respeito unicamente às populações indígenas. Não é a isso, a defender uma genealogia por descendência em menor ou maior grau das comunidades indígenas, que se propõe o Manifesto, mas ao entendimento de que os “filhos do sol” encontraram-se no contato comum com a terra, contato este interrompido e que precisa ser retomado (Nodari, 2022).
[7] Cito o original: “Esto es, los factores de clasificación y identificación social no se configuraron como instrumentos del conflicto inmediato, de las necesidades de control y de explotación del trabajo, si no como patrones de relaciones históricamente necesarias y permanentes, cualesquiera que fueran las necesidades y conflictos originados en la explotación del trabajo” (Quijano, 1999, p. 139).
[8] No original: “Eso fue producto, al comienzo, de una sistemática represión no solo de específicas creencias, ideas, imágenes, símbolos o conocimientos que no sirvieran para la dominación colonial global. La represión recayó, ante todo, sobre los modos de conocer, de producir conocimiento, de producir perspectivas, imágenes y sistemas de imágenes, símbolos, modos de significación; sobre los recursos, patrones e instrumentos de expresión formalizada y objetivada, intelectual o visual” (Quijano, 1999, p. 12).
[9] No original, a citação completa: “Los grupos sociales dominantes se encontraron, en consecuencia, siempre más dispuestos a identificar sus intereses con los dominadores del mundo eurocèntrico, a pesar de sus recíprocas diferencias y conflitos sectoriales, sometiéndose ellos y sometiendo a sus sociedades a los patrones de poder de ese mundo, a las exigências de sus ‘lógicas’ históricas de desenvolvimiento, de movimiento histórico en general” (Quijano, 1999, p. 141).
[10] O outro momento é “Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antonio de Mariz” (Andrade, 1928, p. 7). Opto pelo aforismo citado por agregar mais à discussão do ensaio.
[11] Noto que o movimento de contestação destina-se mais ao Modernismo paulista, já que as críticas feitas compreendem a representação das comunidades indígenas em Macunaíma, de Mário de Andrade, cuja relação com a Antropofagia oswaldiana é indireta — menos por Mário inseri-la no movimento do que por associação, inclusive do próprio Oswald de Andrade, que considerou Macunaíma a obra que melhor manifestava o pensamento antropófago. No poema de Daniwa, citado posteriormente, há, inclusive, a referência à Macunaíma ao tratar a ReAntropofagia como “sem nenhum caráter”, subtítulo da obra. Ao modo como a crítica à Antropofagia oswaldiana constantemente engloba Macunaíma, acredito que caberia um outro trabalho.
[12] Ainda arrisco levantar a hipótese, diante da maneira como a autora descreve a Antropofagia, de que ela se baseie em Macunaíma, obra associada ao movimento, para sua conclusão.