Mirandolina e Aurélia: um diálogo entre as protagonistas femininas de Goldoni e Alencar

Ângela Prestes

RESUMO: Este ensaio traça um paralelo entre duas protagonistas: Aurélia, do romance Senhora (1875), de José de Alencar, e Mirandolina, personagem central da peça “La Locandiera” (1753), de Carlo Goldoni. Com representações em gêneros literários distintos, em diferentes séculos, as protagonistas compartilham diversas características, como a inteligência, a astúcia e também o poder de sedução. Analiso também como os temas do casamento, do dinheiro e do amor estão presentes em cada uma das tramas.

PALAVRAS-CHAVE: Mirandolina; Aurélia; José de Alencar; Carlo Goldoni

ABSTRACT: This essay draws a parallel between two protagonists: Aurélia, from the novel Senhora (1875), by José de Alencar, and Mirandolina, the central character in the play “La Locandiera” (1753), by Carlo Goldoni. Despite being represented in different literary genres and different centuries, the protagonists share various characteristics, such as intelligence, cunning, and the power of seduction. I also analyze how themes of marriage, money, and love are present in each of the plots.

KEYWORDS: Mirandolina; Aurélia; José de Alencar; Carlo Goldoni

Apesar de ter se dedicado à escrita de peças teatrais por alguns anos, principalmente entre 1857 e 1860 — o que influenciou em aspectos textuais dos romances posteriores a 1862, não foi a ligação de José de Alencar (1829-1877) com o teatro que inspirou esta proposta de conexão entre a obra do romancista brasileiro e a Commedia dell’Arte italiana. Mesmo porque foi na literatura francesa e em autores como Alexandre Dumas Filho (1824-1895) que Alencar encontrou inspiração para o modelo de comédia que desejava colocar em prática nos teatros brasileiros (Prado, 1974, p. 28). A intertextualidade que proponho neste ensaio surge, então, a partir de algumas semelhanças identificadas entre as protagonistas do romance Senhora (1875), de José de Alencar, e a peça teatral La Locandiera (1753), de Carlo Goldoni. Personagens de séculos distintos, com representações em diferentes gêneros textuais, Aurélia e Mirandolina compartilham diversas características, como a inteligência, a astúcia e o poder de sedução. Suas diferenças, no entanto, são moldadas pelos contextos culturais em que foram criadas, mas, mais do que isso, pelas escolas literárias às quais pertencem. Pretendo, neste ensaio, analisar ambas as personagens, as relações que constroem e são submetidas em cada narrativa e as soluções dos autores para resolver as tramas.

Mirandolina e a comédia de Goldoni

É em um contexto de grande atividade teatral na Veneza do Século XVIII, que Carlo Goldoni (1707-1793) desenvolve grande parte de sua obra. O dramaturgo italiano é responsável, não só por enriquecer ainda mais esse cenário, mas como por provocar uma revolução na essência dele. Segundo Anselmi (2008), sua batalha pela reforma e renovação é essencial para a Commedia dell’Arte, que tinha como base a presença de máscaras fixas, de origem carnavalesca, e interpretada por autores que recitavam as cenas, improvisando a maior parte de suas falas.

Homens e mulheres de carne e osso, em suma, não mais ‘máscaras’ ou macchiette (caricaturas), pisam os palcos goldonianos, e a realidade da vida irrompe como uma rajada de ar fresco, e por isso mesmo, súbita e irreverente, no teatro veneziano, e depois no italiano e europeu, graças ao enorme sucesso que sempre acompanhará (até hoje) os textos mais afortunados de Goldoni (Anselmi, 2008, p. 229)[1].

 

Observador da vida cotidiana e atravessado pelos ideais iluministas, Goldoni põe uma luz sobre a vida dos trabalhadores. Anselmi (2008, p. 229) destaca a atenção do autor à vida laboriosa dos estratos produtivos, incluindo os populares, e à ironia evidente em relação à arrogância e pretensão de alguns “representantes em declínio” e “parasitas” da antiga aristocracia. Outro ponto levantado pelo crítico é a presença das mulheres nas peças goldonianas:

Igualmente interessante é sua capacidade de observar o mundo feminino com suas inteligências, malícias, e astúcias sedutoras, delineando personagens muito bem-sucedidos para o palco (todos lembram da Mirandolina da ‘La Locandiera’) (Anselmi, 2008, p. 229)[2].

 

Mesmo antes da primeira apresentação de “La Locandiera” em 1753, Goldoni já colocava a mulher no centro dos palcos de Veneza com um drama musical chamado “O mundo de cabeça para baixo ou As mulheres no comando” [3], representado em 1750 no teatro de San Cassian. “O texto foi assinado por Goldoni que se divertia ao tratar de forma paradoxal um tema, o da liberdade feminina, que se tornava cada vez mais premente com o passar do tempo[4]”. (Plebani, 2006, p. 25). Segundo Plebani, a quantidade de tratados, debates, espetáculos teatrais e outras expressões artísticas que tiveram como foco a mulher no Settecento, sobretudo na segunda metade do século, foi enorme: “se tratava de um tema central para toda a sociedade europeia” (Plebani, 2006, p. 25).

Dois movimentos foram fundamentais para colocar em foco a figura feminina: o Iluminismo e a República das Letras, com seus ideais de igualdade e felicidade individual e coletiva. Apesar dessa atenção dada à mulher, o Século das Luzes continuou impondo a ela uma posição de inferioridade. De acordo com Godineau (1997) é um movimento contraditório já que, ao mesmo tempo em que põe as mulheres no centro da sociedade, dos escritos e do pensamento, continua reservando a elas uma posição inferior.

Os homens do Iluminismo trocam regularmente ideias e conceitos com as mulheres, mas duvidam das possibilidades intelectuais da “mulher”. Enquanto as Luzes declaram guerra aos preconceitos, inimigos da razão, os filósofos não pensam libertar-se deles no que respeita às mulheres; e mesmo que se coloque no centro do seu discurso a noção de universal e o princípio de igualdade que se baseia no direito natural, defendem a ideia de uma “natureza feminina” separada e inferior (Godineau, 1997).

 

Mesmo relegada a uma posição secundária pelos intelectuais da época, as mulheres ocupavam praticamente todos os espaços em Veneza:

As mulheres trabalhavam tanto nas tabernas, nas furatole e nas adegas, quanto nas pousadas, bem no centro do cenário do consumo popular e da máquina turística, como Mirandolina, a bela e astuta estalajadeira representada por Goldoni [5] (Plebani, 2006, p. 27).

 

Elas frequentavam os cafés (como clientes, mas também como funcionárias) e estavam presentes nas ruas, nas praças, onde se desenvolvia a vida veneziana, transformando, segundo Plebani, os espaços públicos, que passaram a incorporar o que antes pertencia somente ao doméstico. Na segunda metade do século, atrizes e cantoras protagonizavam a cena burguesa da cidade:

As mulheres do palco, tanto musicais quanto teatrais, muitas vezes representaram heroínas de independência e astúcia, ostentando liberdades novas e sem precedentes, como a Mirandolina de Goldoni ou como as mulheres, ‘ainda mais feministas’ de Chiari [6] (Plebani, 2006 p. 31).

 

É neste contexto, de uma maior participação social da mulher, ainda que atravessada pelas imposições e pelos preconceitos masculinos, que nasce a personagem de Goldoni, uma das principais peças escritas pelo autor. Dividida em três atos, a trama transcorre durante o intervalo de um dia e conta a história de Mirandolina, proprietária de uma hospedagem em Florença. Inteligente e astuta, ela usa sua beleza e o fascínio que exerce sobre os homens para colocá-los aos seus pés. Logo no início da peça somos apresentados a dois personagens: o Marquês de Forlipopoli e o Conde d’Albafiorita, ambos hóspedes da pousada e apaixonados por Mirandolina. Os personagens representam, respectivamente, a nobreza decadente e a burguesia recentemente estabelecida e enriquecida. Logo conhecemos também Fabrizio, fiel funcionário da hospedagem, que também é apaixonado pela protagonista.

O ponto de conflito inicial da narrativa, responsável por desencadear a história, é a presença de um hóspede chamado Cavaleiro di Ripafratta, que odeia todas as mulheres e, em consequência, despreza Mirandolina. Quando toma conhecimento deste fato, ela põe em ação um plano para conquistá-lo e facilmente atinge o objetivo, causando ainda mais intrigas entre seus pretendentes. Ela, porém, rejeita o amor do Cavaleiro, assim como já havia feito com o Marquês e o Conte, e decide, no final da peça, casar-se com Fabrizio.

Este casamento com o seu servo pode ser observado sob diferentes perspectivas. Por um lado, esse era o desejo de seu pai e, ao cumpri-lo, Mirandolina não só se casa com aquele que já havia sido escolhido, mas também cumpre com a convenção social pré-estabelecida de que a mulher deve casar-se para exercer seu papel na sociedade. Por outro lado, essa escolha pode ser vista como um passo em direção à própria independência: “Seria quase melhor se eu realmente me casasse com ele. Finalmente, com esse casamento posso esperar proteger os meus interesses e a minha reputação, sem comprometer a minha liberdade”[7]. (Goldoni, 1993, p. 119). Ao escolher pelo matrimônio com Fabrizio, ela prioriza a autonomia, o direito de trabalhar e de manter a hospedagem. Para Barberi (1993, p. 10) Mirandolina é um personagem que rompe com a máscara da serva da Commedia dell’Arte, abandonando as características de mulher caprichosa e assumindo sua posição de dona de uma hospedagem, que tem seus afazeres e interesses.

É um personagem enraizado numa realidade social precisa, longe de generalizações e estereótipos, cujo comportamento é ditado não por características fixas e imutáveis, mas pelas suas experiências e pela sua posição social e é significativo que no final da comédia Mirandolina se case com um burguês como ela, o garçom Fabrizio (Barberi, 1993, p. 10)[8].

 

O texto de Goldoni deixa claro que ela decide se casar porque é a única forma, dentro do contexto social que vive, de obter a liberdade de trabalhar, reforçando os valores da burguesia da época. Se tivesse escolhido o dinheiro, por exemplo, casando-se com o Conte, perderia essa liberdade.

Aurélia e o romantismo de Alencar

É o tema do casamento que guia também a trama de Senhora, para Antônio Candido (2023, p. 551) um dos três romances escritos por José de Alencar capazes de resistir ao tempo, ao lado de Iracema (1865) e Lucíola (1862). Senhora, junto a Lucíola e Diva (1864), compõe a tríade Perfil de Mulher, assinada por Alencar sob o pseudônimo de G.M. Publicada em 1875, Senhora, obra pertencente ao romantismo brasileiro, retrata os costumes envolvendo os arranjos comerciais dos casamentos por conveniência na sociedade carioca do século XIX. Nesta época, o que prevalecia era, segundo Hahner (2003, p 44), a ideologia masculina, que influenciava os comportamentos sociais, mas também as leis.

As ordenações Filipinas, compiladas em Portugal em 1603, que basicamente permaneceram efetivas no Brasil até a promulgação do Código Civil de 1916, designavam especificamente o marido como “cabeça do casal”, e somente com sua morte a mulher podia ocupar tal posição (Hahner, 2003, p. 44).

 

À época, o objetivo principal do casamento era a proteção da propriedade. De acordo com Hahner, por esse motivo, ele não era aberto para livre escolha e, muito menos, “às prioridades femininas” (Hahner, 2003, p. 45). Esta é uma das principais características transgressoras da protagonista de Senhora: escolher seu próprio marido e, mais do que isso, comprá-lo, a distingue das mulheres da época, que mesmo entre as classes mais altas não tinham tal liberdade.

Senhora é dividido em quatro partes: “Preço”, “Quitação”, “Posse” e “Resgate”. Na primeira, conhecemos os personagens principais: Aurélia Camargo e Fernando Rodrigues de Seixas. O narrador nos apresenta, em primeiro lugar, a figura que dá título ao livro e a descreve como “a rainha dos salões”, ressaltando sua beleza, riqueza, altivez e o impacto que causava nos cenários da alta sociedade da época. Para apresentar Seixas, no entanto, o narrador inicia descrevendo a casa em que vivia o personagem e destacando a simplicidade e pobreza do lugar.

Nessa primeira parte, não entramos na história pelo início dela. O leitor é jogado em um momento posterior da narrativa, em que os fatos apresentados já são consequência de vivências anteriores dos protagonistas. Aurélia compra o direito de casar-se com Seixas, porém não sabemos a motivação por trás dessa negociação. No início da narrativa também conhecemos a família de Fernando e é possível já ter uma ideia da índole do personagem, pela forma com que ele trata a mãe e as irmãs: para ele, é mais importante manter as aparências e os luxos para si mesmo frente à sociedade, do que proporcionar uma vida mais confortável à família.

Na segunda parte, voltamos no tempo para descobrir as razões pelas quais Aurélia decide agir de tal forma: ela e Fernando já foram apaixonados, mas ele a troca por uma mulher mais rica, antes de ela receber a herança do avô. A decisão de propor o casamento com ele é, então, um ato de vingança. A forma com que o autor nos apresenta as informações contribui para gerar certo suspense. O leitor tem acesso a uma camada da narrativa, mas sempre com uma sensação, reforçada também pelos diálogos dos personagens, de que a história se passa em um nível mais profundo. Sabemos que Aurélia não está falando a verdade em muitos momentos e que há intenções ocultas que são desconhecidas por quem está lendo. Essa sensação é reforçada pelo excesso de ironia e sarcasmo e, também, por um texto demasiado “floreado” e exagerado, que passa a sensação de plasticidade e falsidade. Essa característica, que é bem marcante em alguns pontos do livro, pode ser lida também como uma crítica à “vida de aparências” da sociedade da época. Os personagens parecem estar representando um papel, soam pouco reais, o que provoca no leitor a vontade de descobrir quem está por trás.

No decorrer da obra, passamos a conhecer melhor as pessoas que vestem essas máscaras. Aurélia, por exemplo, apesar de ainda não ser completamente verdadeira sobre seus sentimentos com Fernando, passa a deixar de lado o tom de ironia em alguns de seus diálogos. Quando ela o confronta sobre ele não estar usufruindo dos bens que agora são seus, logo após o casamento, o narrador nos mostra como ela deixa transparecer as emoções: “As últimas palavras pareciam escapar-se dos lábios da moça rorejadas de lágrimas” (Alencar, 2019, p. 163).

Apesar dessa mudança que vemos em Aurélia ao longo da narrativa, é Fernando quem mais evolui enquanto personagem. Somos apresentados a um homem que vive de aparências, preocupado com o que pensarão as pessoas da sociedade sobre ele, e que deixa de lado os próprios sentimentos para se encaixar no padrão da época. Ao longo da narrativa, ele passa a preocupar-se menos com a visão dos outros e a respeitar mais a si e seus ideais.

No final do romance, o amor vence o dinheiro: o livro encerra com a reconciliação do casal, sugerindo que o amor pode superar as questões financeiras que inicialmente os separaram.

O poder e o dinheiro

A leitura das obras de Goldoni e de Alencar nos permite traçar diversos paralelos que ligam não somente as duas protagonistas, como também as tramas como um todo. Um deles é o dinheiro. Ambas as personagens têm recursos próprios, o que confere a elas uma posição de destaque na sociedade. Mirandolina, como dona de uma estalagem, é uma mulher independente financeiramente. O tema aparece com frequência na peça de Goldoni, principalmente nas figuras do Marquês e do Conte. Já na primeira cena, no diálogo entre os dois personagens que abre a peça, ele aparece como pauta principal: A primeira fala é do Marquês: “Entre você e eu há qualquer diferença[9]”. Ao que o Conte responde: “Na hospedagem tanto vale o seu dinheiro, quanto vale o meu[10]” (Goldoni, 1993, p. 17). Esse é o grande debate que rege as discussões da dupla de pretendentes. Enquanto o Conte é aquele que oferece à Mirandolina a riqueza, o Marquês lhe oferta proteção. Como vimos anteriormente, porém, a protagonista de Goldoni valoriza, mais do que o dinheiro, sua própria liberdade.

No romance de Alencar, o dinheiro exerce uma força ainda maior como pano de fundo. Aurélia é trocada por outra mais rica e só adquire poder depois que recebe a herança inesperada. É o que permite a Aurélia ter as atitudes que tem, e que a sociedade as aceite sem questionar. Alencar também mostra as duas facetas socioeconômicas dentro de uma mesma personagem, ao fazer com que ela ascenda financeiramente, nas palavras de Aurélia: “Tenho as duas grandes lições do mundo: a da miséria e a da opulência. Conheci outrora o dinheiro como tirano; hoje o conheço como um cativo submisso”. (Alencar, 2019, p. 33).

Outra similaridade entre as obras está em seus títulos, ambos fazendo referência às protagonistas. No título “La locandiera”, Goldoni enfatiza a profissão e a posição social ocupada por Mirandolina na sociedade. Já a palavra ‘Senhora’ pode ser lida principalmente sob dois aspectos. A mulher casada, que de senhorita passa a ser chamada de senhora, remetendo ao fio condutor do livro, que é o casamento. Mas também à senhora de escravos. Para Spinelli (2008), o termo “cativo”, utilizado por Aurélia para referir-se ao dinheiro, reflete a compreensão da personagem sobre a realidade da sociedade em que vive. “Ao vermos a dimensão social que ele contempla, será possível entender que, na organização do enredo de Senhora, a subordinação de Fernando às vontades da herdeira incorpora algo das relações de posse oriundas das senzalas” (Spinelli, 2008, p. 36).

Além dos títulos das obras, que referenciam diretamente as protagonistas, os nomes das personagens carregam origens etimológicas bastante significativas. Aurélia deriva de aurum, em latim, que significa ouro[11]. Já Mirandolina é o diminutivo em italiano de Miranda, do latim mirare, ou da ammirare, que pode ser traduzido como “para ser admirada” em português[12].

A inteligência e a astúcia

Tanto Mirandolina quanto Aurélia são personagens astutas, inteligentes, determinadas e têm um controle firme sobre suas vidas. Mirandolina controla as situações na estalagem de maneira hábil, enquanto Aurélia busca controlar seu próprio destino, tomando decisões que afetam diretamente seu futuro. Tanto Goldoni quanto Alencar usam habilidades que eram ligadas ao mundo masculino, como a capacidade de fazer contas, para ressaltar essas características nas personagens. Em “La Locandiera”, quando o Cavaleiro fica surpreso ao saber que Mirandolina é quem vai fechar sua conta na hospedagem, recebe a seguinte resposta de Fabrizio: “Ela escreve e sabe calcular melhor do que alguns jovens vendedores de loja[13]” (Goldoni, 1993, p. 91). Em Senhora, é a própria Aurélia quem ressalta suas habilidades para provar ao tio sua capacidade intelectual: “(…) sei o dividendo das apólices, a taxa do juro, as cotações da praça, sei que faço uma conta de prêmios compostos com a justeza e exatidão de uma tábua de câmbio” (Alencar, 2019, p. 33).

Mais do que habilidades matemáticas, é a capacidade de manipular aqueles que estão ao seu redor que torna essas mulheres tão distantes da imagem de ingenuidade do mundo feminino construída ao longo do tempo. Mirandolina utiliza sua sagacidade para lidar com os hóspedes da estalagem, muitas vezes manipulando seus pretendentes para obter vantagens. Para um leitor de nossa época, que se depara com a obra em um contexto de mais liberdade dos direitos femininos, é possível ler essas características de forma positiva: no Século XXI uma mulher que usa suas habilidades para conquistar o que deseja não é facilmente condenada. Essa não foi, no entanto, a intenção do autor. Na carta ao leitor que precede o texto, Carlo Goldoni caracteriza Mirandolina como “lisonjeira e perigosa”[14]. Sua intenção moralizante está colocada com clareza: “De todas as comédias que compus até agora, ousaria dizer que esta é a mais moral, a mais útil, a mais instrutiva[15]” (Goldoni, 1993, p. 14). Segundo ele, seu objetivo era ajudar os homens a não caírem em armadilhas de mulheres como a protagonista.

Em Senhora, também temos uma “Carta ao leitor”, que está, diferente daquela de Goldoni, incluída na narrativa. Assinado por José de Alencar, o texto afirma que a história do livro é verdadeira e foi confidenciada a ele por uma pessoa não identificada. Nos interessa mais aqui, entretanto, a primeira descrição que lemos de Aurélia, vinda do narrador/autor: “Há efetivamente um heroísmo de virtude na altivez dessa mulher, que resiste a todas as seduções, aos impulsos da própria paixão, como ao arrebatamento dos sentidos.” (Alencar, 2019, p. 13). Essa definição como “virtuosa” marca uma diferença importante em relação a personagem de Mirandolina. Apesar de Aurélia usar seu dinheiro e um certo jogo de sedução para conseguir o que quer, ela não é condenada pelo narrador. A lição de moral, que no texto de Goldoni tem espaço justamente em relação aos perigos de uma mulher manipuladora, em Senhora assume um outro viés. Nas obras do romantismo, essa intenção moralizante não é explícita, ela tem, como pano de fundo essa lógica, mas não é explicitamente pedagógica como os romances do Século XVIII.

O amor

Apesar das semelhanças, algumas diferenças também podem ser observadas entre as personagens. Uma das mais marcantes é a relação com o amor. Enquanto Mirandolina, apesar de ser cortejada por vários homens, mantém uma independência emocional, e não dá sinais em nenhum momento de estar apaixonada ou ser guiada pelos sentimentos, Aurélia tem uma postura diferente, que é revelada ao longo da trama. Na primeira parte do livro, Alencar nos mostra uma personagem fria e calculista em suas relações, que negocia um casamento de forma estratégica, utilizando seu dinheiro. Ao longo da trama, no entanto, descobrimos sua paixão por Seixas, que inicia ainda no passado e, mesmo que ela tente repelir os sentimentos colocando a vingança e o dinheiro como uma barreira entre os dois, o amor fala mais alto. A idealização do amor é característica marcante do romantismo e, por isso, não poderia faltar à personagem de Alencar.

Este é um tema que marca um importante contraste entre a realidade do Brasil do Século XIX e os ideais românticos da literatura da época. Segundo D’Incao, o amor era retratado na ficção como detentor da capacidade de recuperar o caráter perdido, como aconteceu com o personagem de Seixas, por exemplo. “O amor é sempre vitorioso: Aurélia, em Senhora, vence porque tinha um bom motivo: o amor. O amor dos romances vence sobretudo o interesse econômico no casamento” (D’Incao, 2004, p. 196). A realidade, no entanto, era outra.

 

Até que ponto a mulher burguesa conseguiu realizar os sonhos prometidos pelo amor romântico tendo de conviver com a realidade de casamentos de interesse ou com a perspectiva de ascensão social? Depois de tantas leituras sobre heroínas edulcoradas, depois de tantos suspiros à janela, talvez lhe restasse a rotina da casa, dos filhos, da insensibilidade e do tédio conjugal (D’Incao, 2004, p. 197).

 

Enquanto Aurélia termina entregue aos sentimentos, Mirandolina, no entanto, age sempre guiada por objetivos de teor mais racional. Joga com todos os homens da peça e, ao tentar seduzir o Cavaleiro, tem em mente uma meta bem definida: “[…] quero que ele confesse a força das mulheres, sem poder dizer que são interessadas e venais[16]” (Goldoni, 1993, p. 99). Mesmo quando, ao final, decide por casar-se com Fabrizio, não é o amor que guia suas ações, mas a preocupação com a própria reputação, com a vontade de manter sua posição de autoridade, de poder, e, também, com a conveniência do que já tinha sido acordado com o pai. Ela continua dando as ordens: ao anunciar na estalagem que Fabrizio seria o seu marido, ele a pede para ir com calma, ao que ela rebate: “Que calma! O que está acontecendo? Quais são as dificuldades? Vamos. Dê-me essa mão[17]” (Goldoni, 1993, p. 132) e continua: “[…] ou me dá a mão ou vá embora pra sua cidade[18]” (Goldoni, 1993, p. 133). Fabrizio aceita a proposta, mas a questiona sobre o futuro. Neste momento, a resposta de Mirandolina soa apressada, exagerada, uma promessa que não envolve sentimento, mas que é necessária para que ela consiga o que deseja naquele momento: “Mas depois, sim, querido, serei toda sua; não duvide de mim, eu te amarei para sempre, você será minha alma[19]” (Goldoni, 1993, p 133).

Conclusão

Traçar um paralelo entre diferentes gêneros é desafiador quando temos de um lado um romance, em que o narrador guia a construção e a percepção da imagem da personagem, e de outro uma peça teatral, que disponibiliza apenas os diálogos e solilóquios. Esses momentos de cumplicidade com o público, seja com o espectador, seja com o leitor da peça, inclusive, são importantes recursos para desvendar a personagem da Mirandolina, no caso de Goldoni. No romance de Alencar, encontramos um recurso parecido, provavelmente herança da época em que se dedicou à escritura de peças teatrais. Acompanhamos algumas reflexões de Aurélia, sozinha, pensando alto, o que também nos oferece material extra para compreender o que está por trás de suas ações.

Inicialmente encontrei, nessas leituras, algumas semelhanças que motivaram a produção deste ensaio. No decorrer do trabalho, a análise da relação dessas duas mulheres com o dinheiro, com o casamento e com o amor me permitiu refletir não somente sobre a construção literária de ambas, mas também sobre o contexto social de cada época.

“La Locandiera” pertence historicamente a uma cena sociocultural abundante em personagens femininas. Com Mirandolina, a peça segue a realidade não somente da produção ficcional, mas também reflete nos teatros a presença das mulheres na Veneza do Século XVIII, que desempenhavam uma atuação importante inclusive nas posições de trabalho. Além disso, a obra de Goldoni exerce também um papel de influência nos costumes da época, já que o teatro era um importante meio de formação de pensamento. Ao entender a posição dos intelectuais iluministas em relação à mulher fica mais fácil de compreender, também, a influência na intenção de Goldoni, clara no prefácio do texto, quando trata Mirandolina como uma mulher perigosa, que merece atenção redobrada da parte dos homens. Esse aviso do autor, por si só, já demonstra a capacidade de transgressão da protagonista, que usava os homens a fim de alcançar os próprios objetivos.

Inserido em um contexto histórico bem diferente daquele de Veneza, em um Brasil que havia conquistado a independência de Portugal há pouco mais de 50 anos, Senhora revela a realidade da burguesia e dos casamentos arranjados da época. Ao mesmo tempo, Alencar cria uma personagem que rompe com convenções e características comuns às mulheres do Século XIX: longe de ser ingênua e manipulável, Aurélia usa o poder que vem com dinheiro para conseguir o que deseja.

Personagens de séculos e países diferentes, elas são mulheres transgressoras dentro de suas próprias realidades e recursos. Além disso, independentemente da intenção dos autores, o leitor de cada época terá a liberdade de relê-las e interpretá-las a partir de sua própria bagagem, adicionando novas nuances e camadas a cada uma delas.

Referências

ALENCAR, José de. Senhora. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019. – (Série prazer de ler; n. 15 e-book) Versão e-book.

ANSELMI, Gian Mario. Profilo Storico della letteratura italiana. Milano: Sansoni, 2008

BARBERI, Laura. Note critiche. In: GOLDONI, Carlo. La locandiera. Roma: Tascabili Economici Newton, 1993.

CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: Momentos decisivos. São Paulo: Todavia, 2023.

D’INCAO, Maria ngela. Mulher e família burguesa. In: DEL PRIORI, Mary (org). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.

GODINEAU, Dominique. A mulher. In: VOVELLE, Michel. O homem do Iluminismo. Lisboa: Editorial Presença, 1997.

GOLDONI, Carlo. La locandiera. Roma: Tascabili Economici Newton, 1993.

HAHNER, June Edith. Emancipação do sexo feminino: a luta pelos direitos da mulher no Brasil 1850-1940. Florianópolis: Editora Mulheres, 2003.

PLEBANI, Tiziana. Socialità e protagonismo femminile nel secondo Settecento. In: FILIPPINI, Nadia Maria. Donne sulla scena pubblica Società e politica in Veneto tra Sette e Ottocento. Milano: Franco Angeli Storia, 2006.

PRADO, D. de A. (1974). Os Demônios Familiares de Alencar. Revista Do Instituto De Estudos Brasileiros, (15), 27-57.

SPINELLI, Daniela. A dialética texto e contexto em Senhora, de José de Alencar ou considerações sobre Literatura e Sociedade, de Antonio Candido. Kalíope, São Paulo, ano 4, n. 7, p. 29-47 jan./jun., 2008.

[1] “Uomini e donne in carne ed ossa, insomma, non più “maschere” o macchiette, calcano le scene goldoniane e la realtà della vita irrompe, come una ventata di aria fresca, e perciò stesso improvvisa e irriverente, nel teatro veneziano, e poi italiano ed europeo, grazie al grandissimo successo che accompagnerà sempre (fino ad oggi) i più fortunati testi di Goldoni” (Esta e as demais traduções, quando não indicadas, são de nossa autoria.)

[2] “altrettanto interessante è poi la capacità di osservare il mondo femminile con le sue intelligenze, malizie, astuzie seduttive, delineando per la scena riuscitissimi personaggi (tutti ricordano la Mirandolina della Locandiera).”

[3] Il mondo alla roversa o sia Le donne che comandano.

[4] A firmare il testo era il Goldoni che si divertiva a trattare in chiave paradossale un tema, quello della libertà femminile, che si faceva via via più scottante col passare del tempo.

[5] Le donne erano occupate sia nelle osterie, nelle furatole e mescite di vino, sia nelle locande, ben al centro della scena dei consumi popolari e della macchina turistica, come Mirandolina, la bella e astuta locandiera rappresentata del Goldoni.

[6] Le donne del palcoscenico, sia musicale che teatrale, interpretavano spesso eroine di indipendenza e scaltrezza, vestivano nuove libertà inedite, come la Mirandolina del Goldoni o come le donne, ‘ancor più femministe’ del Chiari.

[7] “Sarebbe quasi meglio ch’io lo sposassi davvero. Finalmente con un tal matrimonio posso sperar di mettere al coperto il mio interesse e la mia reputazione, senza pregiudicare alla mia libertà.”

[8] “È un personaggio radicato in una precisa realtà sociale, lontano da generalizzazioni e stereotipi, il cui comportamento è dettato non da caratteristiche fisse ed immutabili, ma dalle sue esperienze e dalla sua posizione sociale ed è significativo che a conclusione della commedia Mirandolina sposi un borghese come lei, il cameriere Fabrizio.”

[9] “Fra voi e me vi è qualche differenza”

[10] “Sulla locanda tanto vale il vostro denaro, quanto vale il mio”

[11] Segundo a versão online do dicionário Aulete.

[12] Segundo a versão online do dicionário Treccani.

[13] Scrive e sa far il conto meglio di qualche giovane di negozio.

[14] lusinghiera e pericolosa.

[15] Fra tutte le Commedie da me sinora composte, starei per dire essere questa la più morale, la più utile, la più istruttiva.

[16] voglio ch’ei confessi la forza delle donne, senza poter dire che sono interessate e venali.

[17] Che piano! Che cosa c’è? Che difficultà ci sono? Andiamo. Datemi quella mano.

[18] o dammi la mano, o vattene al tuo paese.

[19] Ma poi, sì, caro, sarò tutta tua; non dubitare di me ti amerò sempre, sarai l’anima mia.