Testemunho travesti: as dores narradas por Fernanda Albuquerque

Catharina Viegas De Carvalho

Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar como a obra A Princesa: depoimentos de um travesti brasileiro a um líder das brigadas vermelhas (1994) distancia-se do cânone literário trans brasileiro. Para isso, é adotada uma abordagem qualitativa e exploratória, utilizando, principalmente, a teoria queer de Alós (2011; 2021), que versa a respeito de gênero e performatividade e representação e autoria trans na narrativa brasileira. Constatou-se que, além de ser uma obra notável por abordar temas como transexualidade, gênero, sexualidade e seus desdobramentos durante a ditadura civil-militar brasileira, A Princesa é um testemunho exemplar da dura realidade vivenciada por transexuais que não conseguem alcançar o canônico final feliz.

Palavras-Chave: Transexualidade; gênero; violência; ditadura civil-militar brasileira.

Abstract: The objective of this work is to analyze how A Princesa: depoimentos de um travesti brasileiro a um líder das brigadas vermelhas (1994) distances itself from the Brazilian trans literary canon. For this, a qualitative and exploratory approach is adopted, using mainly Alós queer theory ( 2011; 2021), which deals with gender and performativity and representation and trans authorship in the Brazilian narrative. It was found that, in addition to being a remarkable work to address issues such as transsexuality, gender, sexuality and its consequences during the civil dictatorshipis an exemplary testimony of the harsh reality experienced by transsexuals who fail to reach the canonical happy ending.

Keywords: Transsexuality; gender; violence; Brazilian civil-military dictatorship.

 

Veado – palavra cortante, eu intuía a ofensa, claramente. Mas não sabia que dentro daquele som estava o meu destino (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 30).

 

Introdução

Maurizio Janneli (1952 – presente), nascido em Roma, na Itália, era líder das Brigadas Vermelhas — movimento composto por trabalhadores e estudantes que ganhou força pelo medo de um golpe de extrema-direita na Itália. Preso político, conheceu Fernanda e, a partir de seus depoimentos, com a ajuda de Giovanni, no papel de tradutor, escreveram A Princesa. Com a produção do livro, despertou em Maurizio o interesse em estudar a realidade de pessoas trans. A Princesa é narrada em primeira pessoa pela voz da autora, com destaque para a larga utilização do discurso indireto livre, estratégia adotada pela autora e pelo autor/transcritor que confere maior proximidade entre a fala do narrador e das personagens, reforçando a pessoalidade do relato. Além de transpor as barreiras de gênero, a obra transpõe a barreira idiomática. Enquanto o relato foi dado em português brasileiro por Fernanda, a narrativa foi escrita em italiano por Maurizio. A tradução, por sua vez, foi possibilitada por um padre sardenho que convivia com eles no presídio de Rebbibia.

Segundo Alós (2021), estudiosos como Aizura (2018), ao investigarem narrativas em um contexto transnacional, destacam a presença frequente de uma estrutura narrativa que se assemelha a um padrão emergente dentro desse universo textual. Em geral, essas histórias seguem um caminho marcado pela tentativa de conformidade com as normas imaginárias cisnormativas, buscando adequar o corpo do sujeito às expectativas de gênero de um potencial público leitor. Isso se torna evidente ao examinarmos os temas recorrentes, como o conceito de “estar preso no corpo errado” ou “ter uma alma de outro gênero”, juntamente com a ênfase em cirurgias de redesignação sexual (como faloplastia ou vaginoplastia) e na ideia de “renascimento para uma nova identidade”.

Narrativas como “A grande atração” (1936), de Raimundo Magalhães Jr.; Georgette (1956) e Uma mulher diferente (1965), de Cassandra Rios; “Taís” (1966), de Walmir Ayala; O travesti (1970), de Adelaide Carraro; “Dia dos namorados” (1975), de Rubem Fonseca; “Ruiva” (1978), de Julio César Moreira Martins; “Travesti” (1978), de Roberto Freire; Shirley (1979), de Leopoldo Serran; e Nicola (1999), de Danilo Angrimani, seguem uma estrutura normativa: o eixo dessas histórias se dá na busca de adequação à cisnormatividade, com ênfase na cirurgia de redesignação sexual e na nova identidade, resultando em um final feliz. Essa sequência narrativa quase canônica, que geralmente parte de autores cissexuais,
 

[…] pasteuriza e edulcora a singularidade de diferentes personagens trans, criando a ilusão de uma identidade e de uma trajetória homogêneas, mesmo no que diz respeito aos percalços enfrentados para a construção de vivências, existências e experiências de transexuais, travestis e transgêneros, seja no mundo da ficção, seja na realidade real (e aqui o pleonasmo faz-se necessário) (Alós, 2021, p. 20).
 

No entanto, o gênero narrativa de testemunho surge dando voz a autores trans. Dentro do gênero, no âmbito latino-americano, encaixam-se, além de A princesa, as Memórias de Madame Satã (1972), narrada por João Francisco dos Santos (Madame Satã) ao jornalista Sylvan Paezzo; Erro de pessoa: Joana ou João? (1985), Viagem solitária: memórias de um transexual trinta anos depois (2011) e Velhice transviada: memórias e reflexões (2019), de João W. Nery; e Meu corpo, minha prisão: autobiografia de um transexual (1985), de Loris Ádreon.

Escrito, mesmo que indiretamente, por uma mulher trans, A Princesa: depoimentos de um travesti brasileiro a um líder das brigadas vermelhas vai de encontro com essa sequência narrativa tida como canônica na literatura trans brasileira, uma vez que seu foco supera a cirurgia de redesignação sexual e tampouco possui um final feliz. A narrativa trata, sem floreios, da realidade real da mulher trans de origem pobre no Brasil, com a crueza e a objetividade de quem experenciou todo esse mar de dificuldades e, apesar de toda luta, não conseguiu transpor a barreira “cistêmica”.

A trama de cunho pessoal conta a vida de Fernanda, uma mulher trans nascida no interior de Alagoa Grande, na Paraíba, em 1963, que viveu quase 20 anos de sua vida reprimida sob sua identidade biológica masculina — Fernando, referenciado na obra como Fernandinho. A obra aborda temas de grande importância para os estudos sobre transexualidade, gênero, sexualidade e seus desdobramentos durante a ditadura civil-militar brasileira, como a prostituição, a soropositividade e as diversas violências sofridas pela população trans que se perpetuam até a atualidade. É importante destacar que o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo; além disso, a expectativa de vida para essas pessoas em todo o mundo é de apenas 35 anos de idade.

O problema é abordado de forma qualitativa com objetivo exploratório e fundamentado, principalmente, nos trabalhos de Alós (2011; 2021) sobre gênero e performatividade e representação e autoria trans na narrativa brasileira, assim como de Galrão e Carvalho (2020) sobre prostituição, abjeção e transgressões, fornecendo um arcabouço conceitual sólido para a interpretação dos dados. Ao adotar uma abordagem qualitativa com objetivo exploratório, o estudo busca compreender e interpretar as experiências testemunhadas pela personagem Fernanda, uma mulher trans, em diferentes contextos sociais e históricos.

Essa escolha permite uma investigação detalhada e contextualizada do testemunho de Fernanda, permitindo uma compreensão mais profunda. Além disso, a opção pelo enfoque exploratório permite uma maior flexibilidade na interpretação dos dados, possibilitando a emergência de novas perspectivas durante o processo de análise. Dessa forma, a abordagem qualitativa exploratória, aliada à fundamentação teórica na teoria queer, permite uma análise aprofundada e contextualizada da trama, lançando luz sobre questões fundamentais relacionadas à transexualidade, identidade de gênero e violência.

Criada sozinha por sua mãe, Fernanda narra sua infância como vítima de violência parental. Ela cresce ouvindo-a relacionar seus trejeitos desviantes do esperado para o sexo masculino com a falta de uma figura masculina: “é porque não tem um pai que faça ele virar homem” (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 37). Na primeira situação de violência física relatada na obra, a autora conta que sua mãe lhe dá uma surra, e, como consequência, ela passa a urinar na cama todas as noites até os quatorze anos. A surra repete-se quando Fernanda começa a se conceber com formas femininas: “duas metades de coco foram os meus primeiros seios. Diante do espelho grande, Cícera me surpreendeu e: outra surra” (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 29).

Em outro episódio, Fernanda conta que pinta as unhas dos pés e, por conta disso, sua mãe raspa-lhe o cabelo e ameaça mandá-la para a Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (Febem). Fundada em 1976 com o propósito de receber menores infratores, a Febem foi, ao longo dos anos, cenário de tumultos e alvo de acusações de abuso contra menores.

Segundo Cunha e Gomes (2014), uma performance de gênero tida como desviante pode incitar o medo de ter um filho homo ou transsexual. Esse receio pode levar pais intolerantes a reprimirem seus filhos, podendo chegar até as formas mais traumáticas de violência, quando o corpo da vítima é o locus de ação do perpetuador. Isso pode levar o jovem a viver com culpa e manter sua orientação sexual e identidade de gênero em uma dinâmica de segredo familiar — que é o que ocorre com Fernanda, que só se “assume” para a família após completar a transição para sua forma feminina.

Nesse viés, é importante ressaltar o esforço de Fernanda para agradar a mãe por meio da adequação à normatividade de gênero. Sendo assim, ela passa a executar tarefas domésticas a fim de “cumprir” com o papel de gênero com o qual se identifica, tais quais preparar refeições e lavar a louça. Isso sendo nada mais do que um reflexo da hegemonia patriarcal da sociedade em que estamos inseridos, na qual o papel da mulher consiste em cuidar da casa e da prole, enquanto o do homem consiste em prover o sustento da família:
 

Fernandinho é melhor que uma filha mulher, acorda cedo e me traz na cama café e tapioca doce. Lava os pratos e já quer lavar roupa também. Nem mesmo Alaíde e Adelaide aos sete anos faziam tanto. […] Cícera fala de mim com dona Inacina. Eu, ali perto, ouvia escondido, cheio de orgulho e satisfação (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 28).
 

Ainda na infância, Fernanda relata ter desenvolvido uma forte curiosidade com relação às atividades sexuais, o que se torna um problema, visto que por se relacionar com o mesmo sexo (até então tido como masculino), seu comportamento não era aceito. O preconceito acentua-se e toma forma de violência no momento em que a vizinhança descobre que, além de se relacionar sexualmente com o sexo masculino, ela “fazia-se de mulher” — termo cunhado pela autora — para outros homens, ou seja, deixava-se penetrar por seus parceiros. A autora narra algumas das tentativas de abusos sexuais, que se tornam frequentes em sua infância, vindo até mesmo de homens adultos.
 

De uma maneira geral, os discursos religiosos, as morais hegemônicas das classes dominantes, e mesmo algumas teorias pedagógicas, sociológicas e biológicas exercem suas funções de “pedagogias culturais”, definindo o que deve ser considerado como um comportamento masculino “saudável” ou um comportamento feminino “saudável”. Parte-se de um pressuposto inquestionável, porque disperso nos mais diferentes aparatos e mecanismos culturais, de que meninos devem ser enérgicos, ativos e brutos, ao passo de que as meninas devem ser passivas, emotivas e delicadas (Alós, 2011, p. 425).
 

Porém, via de regra, o que se reserva para pessoas com sexualidade dissidentes é a experimentação de sua sexualidade à margem. O que vai ao encontro do relato de Fernanda, que conta que, ao longo da maior parte de sua vida, envolvia-se em relações marginais, de maneira breve e impessoal, denominando seus parceiros de “Josés”, sem distinção:
 

Camponeses pobres, caçadores. Os homens já não me assustam. Eu os procuro, eles me esperam. […] No emaranhado do cerrado eles cediam — muitíssimos — à minha submissão. […] No cerrado o Príncipe reinava comigo, eu o servia. Com a boca, com o cu. […] Um deles, haveria outras vezes, reagiu mal a minha audácia. Você não se envergonha de servir de mulher para os meus amigos? Mas os outros, a sós, eram todos meus Josés. Mas foi assim que atravessei meus quatorze, quinze, dezesseis anos. Centenas de encontros, reencontros. Duas vezes por semana, dois Josés de cada vez. É uma contagem por baixo. Vinte e quatro encontros por mês durante quatro anos: mil e cem vezes antes de minha partida para Campina Grande (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 42-43).
 

Contudo, vale ressaltar que “pessoas transgêneras nunca saem ilesas pelas subversões que provocam, pelo contrário, pagam preços altos” (Galrão; Carvalho, 2020, p. 239), visto que são constantemente sondadas pelos “vigilantes” da normalidade, assim como por policiais. Segundo Galrão e Carvalho (2020), a existência precária dessas pessoas, muitas vezes limitada à noite e às ruas, funciona como um suporte para a afirmação da heterossexualidade compulsória.

Fernanda conta que, ainda na infância, ouvia coisas do tipo: “Eh, meninos, quando Fernandinho for grande vai para São Paulo ou para o Rio — dinheiro fácil para ele!, dizia Izael Dias, o professor, e todos gargalhavam” (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 35). Esse discurso ajuda a validar essa concepção cis/heteronormativa que resulta na reprodução e perpetuação da violência. Ela narra também sua adolescência, em que muda para a cidade com sua irmã e seu cunhado, onde passa a estudar em uma escola de matriz evangélica, onde as repressões se elevam a nível institucional:
 

A diretora do Colégio Evangélico, onde eu frequentava o curso noturno, convocou uma assembleia de alunos do sexo masculino. Ditou, na minha presença, o novo regulamento:
— Fernando Farias não deve entrar no banheiro dos homens no horário em que o local é frequentado pelos outros. Que ninguém se atreva a provocá-lo quando ele for sozinho. Fernando Farias não deve ir à escola vestido de mulher, sob pena de expulsão.
— Fernando Farias deve sair dez minutos antes do fim das aulas.
— Fernando Farias fará ginástica no dia em que o ginásio estiver vazio. Haverá um professor voluntário só para ele (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 46).
 

Segundo Bento (2008 apud Galrão; Carvalho, 2020, p. 222), por meio do poder institucional, a escola, incapaz de lidar com diferenças, sempre procurou disciplinar e excluir aqueles que não contribuem para a produção de corpos “normais”. Para isso, é conferido poder aos agentes dessas instituições, tais quais professores, alunos e servidores, a fim de resguardar as normas de gênero e da heterossexualidade compulsória.

Após largar os estudos e fugir de casa, Fernanda relata sua situação de vulnerabilidade, propondo-se a exercer qualquer ofício em troca de alimentação e abrigo:
 

— Faço qualquer coisa por duas refeições e uma cama onde dormir.
— Espera o fim do expediente aí nos fundos, garoto, vou encontrar um trabalho para você. Duas vezes no cu. Contra a vontade, duas vezes no cu — a festa dele. […] Edinando também tem seu lugar à mesa. Depois me pede o rabo. E eu dou, no fim do expediente, sempre nos fundos da oficina […] Faço tudo por duas refeições e uma cama onde dormir (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 56-57).
 

A pessoa trans, vista como abjeta pela sociedade, enfrenta muitas dificuldades para se inserir no mercado de trabalho formal, sendo frequentemente alvo de violências sexuais. Assim como Fernanda, ou “Princesa”, como era chamada em um restaurante onde trabalhou, no qual era obrigada a se esconder na cozinha e a usar vestes masculinas. Segundo Almeia e Vasconcelos (2018, apud Galrão; Carvalho, 2020), muitas mulheres trans precisam se portar e se vestir a fim de se parecer ao máximo com homens e mulheres cis.

Bento (2014, p. 02) defende que essa rejeição por parte da família e da escola leva muitas pessoas trans a deixarem suas famílias e a largarem os estudos, recorrendo à prostituição como principal forma de sustento e de identificação. Ainda, de acordo com Galrão e Carvalho (2020, p. 222), o ponto de prostituição é um importante espaço de afirmação identitária para as mulheres trans: “É lá que elas encontram ‘pessoas como elas’, com histórias de vida parecidas. No ponto elas têm suas identidades aceitas” (Galrão; Carvalho, 2020, p. 238).

No entanto, os pontos de prostituição não deixam de ser espaço de violência. Prada (2018 apud Pereira, 2021) argumenta que a violência contra os corpos trans inicia-se no momento em que mulheres cis podem trabalhar em casas e boates, enquanto o espaço reservado para que as mulheres trans exerçam sua profissão é quase sempre as ruas. Segundo Simpson (2011 apud Galrão; Carvalho, 2020, p. 222), calcula-se que 85% a 90% das mulheres travestis e transexuais que vivem nas grandes cidades trabalham como profissionais do sexo nas ruas, tornando-as mais suscetíveis a inúmeras formas de violência, tanto do cliente que as violenta quanto da polícia, que não atende a ocorrências em pontos de prostituição.

Durante a ditadura militar no Brasil, foi instituída uma política de higienização das ruas que, segundo Cabral (2016, p. 136), estabelecia uma relação direta entre os desvios de sexo/gênero e a ideologia comunista, de modo que a prisão de homossexuais e travestis, principalmente daquelas que trabalhavam informalmente nas ruas, fosse considerada prioritária para a manutenção da moral e dos bons costumes. Engana-se quem pensa que a violência partia apenas dos órgãos estatais, a política higienista era alimentada pelo povo, que colaborava com a polícia:
 

“Limpe São Paulo, mate um travesti por noite”. […] Anunciada nos muros, uma guerra contra a peste gay e os travestis — contra o Vírus e a prostituição. […] As mulheres com os maridos, os filhos com os pais. Agitam pedaços de pau, trazem pedras e correntes. Limpam a cidade. Vão adiante da massa ameaçadora e cercam Karina, que fica no meio deles. A infeliz virou caça, é presa — está perdida. Arrebentada pelos paus e correntes. Torturada com pedradas — as mulherezinhas com seus maridos, os filhinhos com os papais. Brancos, lindas familiazinhas brancas. A avenida Floriano Peixoto está limpa por uma noite, Karina assassinada. Estraçalhada (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 92 – 93).
 

Ao longo da narrativa podemos observar a repetição de relatos de transexuais e travestis assassinadas brutalmente, todas mortas de forma ritualística:
 

Rosana estava na calçada trabalhando por conta própria. Seus peitos eram de dar inveja. Dois tesões. Arrancados, cortados, mutilados. O pau também, cortado, arrancado, amputado. Dela, tinha sobrado só aquele montinho horrendo, um ritual. O corpo ficou irreconhecível. Carbonizado, pela gasolina e por uma cabeça endemoninhada (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 76).

Valquíria tinha vinte anos, uma felicidade. Estava amanhecendo, Praia de Amaralina. Nós todas em volta, enquanto ela ia embora. Uma garrafa quebrada enfiada no ânus. Coca-Cola grande. Fizeram até perícia: violentada com pedaços de pau, hemorragia interna (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 78).

Igreja de Santa Tereza, Rogéria e um cliente. Dois tiros na cabeça. Os corpos deixados no átrio da igreja. É a matança (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 78).

Eram três da manhã quando um patrulhinha convidou-a para entrar. Ela aceitou de bom grado. Vi com meus olhos, ela indo embora cheia de paixão e reverências. Três dias depois foi encontrada na praia de Botafogo. Sem seios e sem pau. Cortes de faca e cinco balas na boca (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 85).
 

Cabe aqui ressaltar que a violência contra esses grupos não se iniciou no período ditatorial, mas muito antes, com base nas religiões, que a condenavam como pecado; nos discursos médico-legais, que consideravam a homossexualidade uma doença; na criminologia conservadora, que a via como perigo social; assim como nos valores tradicionais, que rejeitavam qualquer expressão de sexo-gênero desviante ao padrão heteronormativo por representar uma ameaça à família.

Somada às perseguições da ditadura, está a epidemia de aids. A epidemia serviu, em grande parte, para embasar os preconceitos e justificar as políticas higienistas do Estado, uma vez que a maioria das trans e travestis está fadada ao trabalho sexual nas ruas, onde ficam vulneráveis a abusos sexuais, favorecendo a exposição não só ao HIV, mas também a outras doenças sexualmente transmissíveis. Dessa forma, o vírus da aids, ou “a Peste”, como é apelidado por Fernanda, era — e ainda é — erroneamente associado ao sexo entre pessoas com pênis, fomentando a homo e a transfobia. Ademais, a mulher trans que busca assistência médica ainda se encontra suscetível a enfrentar o duplo estigma por parte dos agentes de saúde: em primeiro lugar por ser uma mulher trans, e em segundo, por ser portadora do vírus.
 

Princesa, se esconde. Não deixe que os clientes te vejam na cozinha. Esconde essas tetas, põe uma roupa decente: tem gente almoçando. A Aids está solta, bichas e travestis metem medo (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 78).
 

Implantada nas grandes cidades do país, essa política levou à morte inúmeras travestis e transexuais, principalmente as trabalhadoras sexuais que ficavam vulneráveis nos pontos de prostituição, fazendo com que o grande sonho de muitas delas fosse fugir para a Europa: “na Europa, a polícia não mata nas ruas. Um paraíso” (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 104). Fernanda narra sua descoberta, porém, tarde demais, de que a Europa, mesmo sendo mais segura que o Brasil, não era aquilo que se imaginava:
 

Sem esforços, nos braços do demônio, na Europa chega-se em voz baixa, silenciosamente. Aqui neste país, não se morre estrondosamente. Baleada ou esfaqueada, entre gritos e tesouras. Aqui a gente desaparece quieta quieta, em voz baixa. Silenciosamente. Sós e desesperadas. De Aids e de heroína. Ou então dentro da cela, enforcada na pia. Como a Celma, que eu gostaria de lembrar. Dormia na cela do lado, dentro deste outro inferno onde hoje vivo e decidi não contar (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 134).
 

A pressão estética exercida pelo próprio grupo também se configura como uma forma de violência, visto que a maioria se submete a procedimentos estéticos, muitas vezes clandestinos e sem anestésicos, assim como ao uso indiscriminado de hormônios sexuais, a fim de se parecer ao máximo — e o mais rápido possível — com uma mulher cis. Essa pressão se intensifica no âmbito da prostituição, por ser um espaço que reforça a competição.
 

Você quer que teus peitos cresçam? Simples, vendem hormônios na farmácia Anaciclin, sem receita, são pastilhas anticoncepcionais. A bunda? Depois te digo, tem a Severina bombadeira, algumas injeções de silicone. […] Anaciclin, vinte e oito comprimidos por caixa. Não sei esperar e tomo todos de uma vez, misturados com suco de cenoura. Vomitei uma mancha vermelha, me contorci de dor. Fernando resistia a mim, se rebelava. […] Vou te dominar, Fernando. Os meus Josés não beijarão um homem. Escondi o vômito e a dor dentro de um silêncio sofrido (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 60).
 

Nessa citação, podemos perceber a menção à bombadeira, figura de suma importância na cultura trans. A figura da bombadeira permite às mulheres em transição de gênero conquistarem suas tão sonhadas formas de maneira mais acessível, sem serem estigmatizadas por agentes de saúde e com menor custo. Contudo, sem anestésicos. Esse “corpo dos sonhos” geralmente equivale à beleza padronizada pela sociedade. A cultura brasileira aparece como um agravante nessa situação, uma vez que o padrão imposto socialmente no país prega que, para ser bonita e desejada, a mulher deve ser voluptuosa.

Sendo assim, mulheres trans (assim como mulheres cis) usam e abusam de cirurgias plásticas a fim de alcançar esse resultado, e com Fernanda não foi diferente: “quero os meus peitos, quero uma bunda grande para ser lambida por estes Josés que de dia não sabem me amar” (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 63). Porém, no ponto de vista de muitas mulheres trans, a dor e o sofrimento decorrentes da busca por uma aparência o mais similar possível com uma mulher cis compensam quando passam — quase sempre — despercebidas pelo público enquanto mulheres trans. Isso faz com que elas sejam menos estigmatizadas, visto que o que realmente importa para a sociedade é que a performance de gênero seja bem executada:
 

Confundida na multidão. Tenho tudo no lugar e passo tranquila, presente e invisível para os passeantes distraídos: uma mulher. […] Uma mulher com pau, eu sei. Mas o que eles não veem é o que não convém ver. […] Muitos sabem, percebem. Veem e mesmo assim se comportam como se eu fosse toda mulher. E este “como se” para mim é muito. Talvez tudo (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 82).
 

Assim como a violência contra os próprios corpos causada pela pressão social, o abuso de drogas também se caracteriza como uma violência contra si mesmas. Segundo Galrão e Carvalho (2020, p. 247), como resultado de anos de estigmatização, abusos e perseguições, muitas mulheres trans e travestis recorrem às drogas como uma fuga de suas duras realidades. Profissionais do sexo, em especial, acabam utilizando-as a fim de suportar os desafios do expediente. Fernanda, por exemplo, relata ter começado a beber por conta das frias noites da capital paulista:
 

Eu não me prostituía, eu vendia um sonho. […] Mas a noite em São Paulo era fria, e para continuar a ser pantera comecei a beber de verdade. Uísque e vodca. Entorpecia o cérebro, os pensamentos. Estava sozinha e despencava (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 93).
 

Após sua fuga para a Europa, ela narra a troca do álcool por cocaína por recomendação de uma colega de trabalho que defende que, dessa forma, não espantará os clientes com o mau hálito causado pela bebida. Com a chegada do inverno, Fernanda conta que passou a utilizar heroína para conseguir ser capaz de se expor com poucas roupas — o que não era incomum entre as profissionais do sexo que trabalhavam nas ruas da Europa. Com cada vez menos roupas e tato, o uso de drogas catapulta sua carreira. Contudo, cada vez mais dependente e com a tolerância cada vez mais alta, ela acaba gastando todo seu dinheiro para sustentar o vício. Além disso, sua apresentação decai e com ela, seu lucro. O abuso de drogas acaba facilitando sua ascensão ao mesmo tempo que a leva ao declínio:
 

Comecei a beber para valer, quase fiquei louca. […] Na noite, botava pra quebrar com um show de baixo nível, decomposto. Perdi a coroa, não era mais Princesa (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 103).

Risco os olhos de cores, borro a boca de batom. Não é mais aquele belo ritual, perfumo o corpo, levo-o para liquidação final. Cuspo esperma e lambuzo o rabo. Cheiro heroína, não tenho mais futuro. […] Cheirava coca e heroína para trabalhar. Trabalhava para cheirar. Do tesouro acumulado não sobrava quase nada. Gastava tudo entre Roma e Milão, droga, viagens e tudo o mais (Albuquerque; Jannelli, 1994, p. 132).
 

A autora relata ainda que, em seus últimos momentos na Europa, sonhava em voltar ao Brasil e deixar as drogas, porém as dívidas deixadas por elas tornaram-se empecilhos. Devendo para a dona da pensão onde residia e sem dinheiro para pagar, ao ser cobrada e provocada, ela parte para cima da mulher e a esfaqueia. Pensando tê-la assassinado, Fernanda sai na rua e se entrega para uma patrulha que passava, sendo condenada a seis anos de prisão por tentativa de homicídio. Ela conta que, na prisão, foi submetida a testes de DST e descobriu ser portadora de sífilis, assim como do vírus da aids. A prisão, por seu caráter repressivo, bem como outras instituições detentoras de poder, não podia deixar de seguir o “cistema”, fazendo com que Fernanda cumprisse toda sua pena na ala masculina. Em consonância com a manutenção dos “corpos normais”, ela conta que os próprios detentos estigmatizavam violentamente aqueles que andavam com “as bichas” (Albuquerque; Janneli, 1994, p. 19).

A história de Fernanda revela as complexidades e os desafios enfrentados pelas mulheres trans em uma sociedade que frequentemente as marginaliza e violenta. A narrativa oferece uma reflexão profunda sobre as interseções entre identidade de gênero, violência, discriminação e sobrevivência, contribuindo para ampliar o debate sobre a representação das vivências trans na literatura. A obra narra a dura realidade de subversividade de Fernanda, refletindo a realidade da maioria das mulheres trans, que travam uma luta diária contra o “cistema”, reivindicando seu lugar, assim como seu direito de existir na sociedade, principalmente no contexto em que se dá o enredo ––, mostrando que, lamentavelmente, nem sempre essa sociedade permite que essas mulheres transponham as barreiras que a elas se impõem.

O trabalho de recontar e analisar esse testemunho, se dá, aqui, para atentarmos ao seguinte fato: apesar de viver uma vida de constante subversão, ou seja, de constante luta por seu direito de existir tal e qual na sociedade, A Princesa distancia-se do cânone trans literário visto que retrata a vida que se dita às mulheres trans, que não são capazes de subverter suas realidades em meio a tamanha violência — da família, da sociedade, de si mesmas — não havendo espaço para o canônico final feliz.

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