Transresistência: narrativas de identidade e ativismo na experiência transgênero

Kyury Assis

O livro intitulado “Transresistência: Pessoas Trans no Mercado de Trabalho” foi publicado em 2021, pela editora Dita Livros, e é uma obra de autoria de Caê Vasconcelos, um homem trans e jornalista formado pela FIAM-FAAM. Com 232 páginas, a obra oferece uma dissertação cuidadosa do debate sobre a cidadania de pessoas trans, concentrando-se especialmente na esfera da empregabilidade. O autor destaca 13 relatos como protagonistas para compor o conteúdo do livro.

Ao longo das páginas, emergem figuras inspiradoras, como Luiza, Renata, Hela Santana, Leona, Mar, Carolina Iara, Erika Hilton, Pedro e Guilherme Calixto, cada uma contribuindo para a compreensão da complexidade e diversidade das identidades trans. A coletânea de histórias destaca as interseções entre identidades, evidenciando a necessidade de uma abordagem inclusiva ao discutir questões de gênero, raça e orientação sexual. Além disso, o livro oferece uma reflexão crítica sobre as lacunas existentes nos direitos sexuais e reprodutivos, bem como nos processos de retificação documental. As narrativas também ressaltam a importância do ativismo como meio de transformação social, destacando a eleição histórica de figuras como Carolina Iara e Erika Hilton.

No primeiro capítulo, intitulado “Das Ruas para os Museus”, a história de Luiza é explorada. Luiza viajou à Europa na trilha do tráfico sexual, descobrindo museus europeus e, posteriormente, tornou-se a primeira funcionária trans do MASP (Museu de Arte de São Paulo). A narrativa começa com a relação de Luiza com sua mãe, que esteve presente até 2003, ano em que Luiza e uma amiga decidiram partir para as ruas italianas. Após experiências na Itália e vivências em diversos países europeus, Luiza retorna ao Brasil em busca de uma vida com carteira de trabalho assinada, encontrando no MASP a oportunidade de conciliar suas paixões e experiências como orientadora de público.

No segundo capítulo, “Ativista LGBT+ Perdeu um Rim em Ataque Transfóbico”, Renata compartilha sua história como mulher trans agredida por nove skinheads. Além de enfrentar a violência transfóbica, Renata também relata as tragédias pessoais, incluindo a perda de oito irmãos e o suicídio de sua mãe. Renata, que atuava em um teatro local, decide mudar-se para São Paulo aos 27 anos, buscando uma carreira como cantora de MPB e samba. Ela enfrenta desafios ao retornar aos estudos após 15 anos, e, diante das dificuldades financeiras, opta por morar em uma ocupação. Renata, consciente das questões sociais, funda uma ONG chamada Cais.

O terceiro capítulo, “Do Lar Cristão à Cozinha de uma Casa LGBT”, começa contextualizando os direitos LGBTs na década de 70, influenciados pelo ativista Harvey Milk. Fausto Almeida, jornalista impactado pelos eventos de Castro Street, em São Francisco, inspira-se a nomear sua hamburgueria como Castro Burguer. Além de ser gay-friendly, o empreendimento promove a diversidade em sua decoração, menu e equipe de 16 funcionários, incluindo três pessoas transgêneras. A história de Bruno, um funcionário trans, é apresentada destacando sua jornada desde uma família conservadora até sua busca pela independência.

O capítulo quatro, “Intersecções: Negro, Trans e Periférico”, dedica-se a uma breve apresentação do significado de “intersecção” e à história de Enzo Neves. Enzo vivencia preconceitos relacionados não apenas à sua identidade de gênero, mas também à discriminação étnica e de classe por residir em uma periferia. O conceito de intersecção, introduzido desde o título, se desconecta ao apresentar as experiências de trabalho de Enzo, abordando a relação paterna dentro e fora do ambiente profissional, assim como a diferença entre empresas que reconhecem e não reconhecem seu nome social.

No quinto capítulo, “Dois Contra o Mundo: Um Amor Transcentrado”, Klaus e Helena compartilham não apenas suas experiências de criação e educação, mas também a relação afetiva entre pessoas trans. O relato destaca as questões de intersecção no mercado de trabalho, exemplificadas nas experiências de Klaus, um homem trans negro, e Helena, uma mulher trans branca, em ambientes de trabalho distintos.

O capítulo 6, intitulado “Roteirista Preta, Transfeminina e da Quebrada”, apresenta a história de Hela Santana, uma pessoa não-binária empenhada em transformar a representação de corpos trans e negros nas telas. Hela compartilha sua experiência após se identificar como pessoa trans não-binária, destacando que as pessoas trans brancas foram as que mais a atacaram, sem priorizar a discussão sobre o racismo dentro da comunidade trans. Hela aborda recortes importantes feitos sobre as pessoas trans e critica a homogeneização relacionada à LGBTfobia, ressaltando as distintas formas de discriminação, como a transmisoginia. No âmbito audiovisual, Hela discute as limitações das narrativas que envolvem corpos trans e os perigos de representações desatentas, que resultam na perda da individualidade.

No capítulo 7, intitulado “Corpo como Resistência no Trabalho”, Leona, uma mulher trans, compartilha a longa jornada de seu descobrimento e compreensão como pessoa trans. Inspirada por uma professora negra, inicialmente desejando cursar História, Leona se depara com a grade curricular do curso de Ciências Sociais durante a inscrição. Paralelamente às descobertas sobre sua identidade de gênero, Leona enfrenta desafios no ambiente de trabalho. Em 2016, ela se aproxima da UFABC como membro do coletivo Prisma – Dandara dos Santos, participando das lutas da universidade por questões relacionadas às pessoas trans. Em 2017, Leona ingressa no programa de pós-graduação e se envolve na busca por cotas para pessoas trans na graduação, resultando na aprovação pelo Conselho Universitário.

No capítulo 8, “Pronomes Neutros, Por Favor”, Mar, uma pessoa não binária, explora a não-binaridade pelo viés antropológico nas ciências sociais e posteriormente migra para a psicologia. Mar busca ser um psicólogo que não teve durante o processo de autodescobrimento das pessoas. No âmbito profissional, Mar dedica-se a atividades de pesquisa na USP, abordando o tema da saúde sexual interativa, e ministra aulas de inglês. Na pesquisa, Mar incorpora a pauta das pessoas não-binárias, mesmo que o projeto tenha foco em meninas trans, travestis e homens cis homossexuais. Além disso, coordena o eixo de psicologia no projeto “Sobreviver”, oferecendo atendimento psicoterapêutico para pessoas LGBTQIAP+ em situação de vulnerabilidade.

O capítulo 9, intitulado “Homem Trans Não, Boyceta”, conta a história de Guilherme Calixto, que enfrentou desafios para ser aceito em casa desde muito jovem e buscou independência financeira. Apesar da preferência por pronomes masculinos, Guilherme não se identifica como homem, mas sim como boyceta, expressando sua identidade de gênero.

— Boyceta é não sentir o peso de representar o homem, boyceta é ser trans. Não tem como uma pessoa cis ser boyceta. Eu não me enxergo em nenhuma hombridade, mas em uma masculinidade bicha. Tem a ver com me permitir transitar entre os espaços. Tenho uma masculinidade feminina, uma masculinidade não cisgênera, que vem de uma buceta (Vasconcelos, 2022, p. 147).

O capítulo 10, “Primeira Vereadora Intersexo do Brasil”, destaca a trajetória de Carolina Iara de Oliveira, uma cientista social e mestranda pela UFABC. Carolina, uma pessoa travesti negra, intersexo e portadora de HIV/AIDS, compartilha sua história desde a infância, incluindo cirurgias de redesignação sexual devido à sua condição intersexo. Inspirada por mulheres negras e acadêmicas, Carolina se torna a primeira vereadora intersexo eleita no Brasil, representando a Bancada Feminista do PSOL, defendendo pautas relacionadas ao emprego, acesso à saúde, e educação na comunidade LGBTQIAP+.

No capítulo 11, “Mulher Mais Votada no País, Negra e Travesti”, Erika Hilton compartilha sua jornada até se tornar a primeira travesti a ocupar uma cadeira na câmara municipal de São Paulo. Sua história é marcada por desafios familiares, prostituição e ativismo como forma de sobrevivência. Erika discute sua adolescência, marcada pela descoberta de sua identidade trans, conflitos com a igreja, expulsão de casa e envolvimento na prostituição. Através de relacionamentos tóxicos e sua entrada na militância, Erika conquista seu espaço na política, sendo eleita deputada federal trans em 2022.

No capítulo 12, “Psicólogo, Negro Músico e o Que Mais Ele Quiser”, a história de Pedro é contada no contexto de 2018, quando o Supremo Tribunal Federal decidiu sobre a retificação documental de pessoas trans sem a necessidade de ação judicial. Pedro, apaixonado por música e filosofia, cursou psicologia enquanto se entendia como pessoa trans. O capítulo destaca as dificuldades enfrentadas por Pedro durante o processo de retificação documental, com múltiplos cartórios apresentando diferentes obstáculos.

No capítulo 13, “Transresistência, a Minha História”, Caê Vasconcelos compartilha suas vivências como homem trans e jornalista. Sua transição começou em 2017, em paralelo às questões de gênero que o acompanharam desde a infância. Caê destaca o conflito interno que enfrentou ao não se encontrar profissionalmente e sua decisão de migrar para o jornalismo, impulsionado pela necessidade de abordar questões de direitos humanos, especialmente para a população LGBTQIAP+.

Os relatos apresentados revelam uma tapeçaria rica e diversificada de experiências vividas por indivíduos trans em diferentes esferas da sociedade. O livro “Transresistência: Pessoas Trans no Mercado de Trabalho”, de Caê Vasconcelos, através de seus capítulos, ilustra não apenas os desafios enfrentados, mas também as conquistas notáveis e a resiliência extraordinária das pessoas trans em suas jornadas. Cada capítulo oferece uma perspectiva única, destacando as nuances das experiências trans em setores diversos, desde o mercado de trabalho até a esfera política e ativista. A narrativa abrange questões como discriminação, violência, busca por reconhecimento legal e respeito à identidade de gênero, bem como a importância da representação e da luta por direitos igualitários.

Em última análise, “Transresistência” não apenas revela os desafios enfrentados pela comunidade trans, mas também celebra suas conquistas, destacando a importância contínua da visibilidade, compreensão e aceitação para criar sociedades mais inclusivas e respeitosas com a diversidade de identidades de gênero. Este é um chamado à empatia, ao reconhecimento e à solidariedade na construção de um futuro mais igualitário e acolhedor para todos.

Referência

VASCONCELOS, Caê. 2021. Trans-resistência: pessoas trans no mercado de trabalho. São Paulo: Dita Livros. 232 p.