As personagens de ficção no romance O Cortiço, uma análise sócio cultural

Jhonatas Santos Vieira

Resumo: O presente trabalho analisa a obra literária O Cortiço, de Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo, com o objetivo de entender seus personagens e as complicadas situações que eles viviam na sociedade brasileira do século XIX. A narrativa destaca como as personagens burguesas acabam se misturando com a vida simples dos moradores do cortiço, evidenciando as tensões e desigualdades sociais da época. Publicado em 1890, esse romance é uma das principais obras do movimento naturalista no Brasil e apresenta temas que permanecem atuais no século XXI. A metodologia utilizada foi a bibliográfica com análise de conteúdo. Assim, utilizou-se de alguns estudiosos como Beth Brait (2017), que examina os personagens; Antonio Candido (1993), que discute a função da literatura para o ser humano; Alfredo Bosi (2017), sobre as rupturas na literatura; Massaud Moisés (2012), em seu estudo sobre prosa e ficção. Conclui-se que O Cortiço oferece não apenas uma crítica social da época, mas também uma reflexão sobre temas humanos universais e atuais

Palavras-chave: Personagem. O Cortiço. Literatura.

Abstract: The present study analyzes the literary work O Cortiço, by Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo, aiming to understand its characters and the complicated situations they faced in 19th-century Brazilian society. The narrative highlights how bourgeois characters intertwine with the simple lives of the cortiço residents, exposing the social tensions and inequalities of the time. Published in 1890, this novel is one of the main works of the Naturalist movement in Brazil and addresses themes that remain relevant in the 21st century.The methodology used was bibliographic with content analysis. Therefore, several scholars were referenced, such as Beth Brait (2017), who examines the characters; Antonio Candido (1993), who discusses the role of literature for human beings; Alfredo Bosi (2017), on ruptures in literature; and Massaud Moisés (2012), in his study on prose and fiction. It is concluded that O Cortiço provides not only a social critique of its time but also a reflection on universal and contemporary human themes.

Keywords: Character. O Cortiço. Literature.

Introdução

Este trabalho tem como propósito analisar a obra O Cortiço (1890), de Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo, considerando tanto a estética literária quanto às temáticas sociais que permeiam o texto. Para Massaud Moisés (2012), O Cortiço é o exemplo mais acabado da tendência naturalista em nossas letras, ou seja, a forma com que Aluísio de Azevedo estrutura sua obra chama atenção e torna-a um cânone da literatura brasileira. Além disso, conforme destaca Antonio Candido (1972), a literatura cumpre uma função humanizadora essencial, ao expressar a condição humana e contribuir para a formação ética e cultural do cidadão.

Desse modo, ao retratar com vigor as questões de classe, raça e marginalização que atravessam a realidade brasileira do século XIX, O Cortiço não apenas ilustra os preceitos naturalistas com um olhar crítico, mas também exerce um papel humanizador, proporcionando ao leitor uma compreensão mais profunda das estruturas sociais e emocionais que moldam a experiência humana.

O texto literário, por sua vez, se destaca pela capacidade de transfiguração: de transformar a percepção imediata, desdobrando-se do particular para o universal e, assim, provocando prazer e desprazer no leitor. “O texto literário deve ter a capacidade de convidar o leitor para desconstruir a realidade pronta e estabelecida, a fim de instruir-se a organização de outras ordens, de outras formas de querer e realizar” (Cavalcante, 2002, p. 55). Ao desconstruir essa realidade estabelecida, o leitor passa a enxergar o mundo de maneira crítica e a considerar outras perspectivas e possibilidades. Do mesmo modo, ao propor novas realidades e formas alternativas de ver o mundo, a literatura inspira o leitor a reavaliar sua própria realidade, despertando nele a vontade de participar da construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.

Partindo desse pressuposto, a narrativa de Aluísio de Azevedo representa uma situação social forte e impactante, pois percebemos que a ficção comunica e nos passa a realidade de um povo. “A verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial” (Candido, 2014, p. 55). A verossimilhança está ligada à capacidade do autor de moldar o universo ficcional de forma coerente, de modo que o leitor aceite ou não a fantasia como uma forma de verdade plausível.

Aluísio de Azevedo inicia sua obra mostrando o duro cotidiano de parte da sociedade carioca, especificamente no bairro Botafogo no século XIX. Sociedade que trabalhava muito e era marginalizada, sendo constituída por operários, imigrantes e lavadeiras. O livro foi publicado pela primeira vez no Rio de Janeiro, em 1890, e escrito diante de um cenário de relevantes transformações históricas, como a Abolição da escravatura e a Proclamação da República. Diante disso, este trabalho tem por objetivo fazer uma análise da obra naturalista em questão, levando em consideração o contexto histórico daquela época e algumas nuances da estética em que se insere a fim de construir uma análise crítica sobre as personagens. Este artigo se justifica pela necessidade de entender como a obra de Azevedo critica a sociedade da época e a atual.

Este trabalho analisa como as personagens viviam em um contexto de exploração do homem pelo próprio homem, caracterizado pelo furto, pela ganância, pelo favorecimento das classes altas e pela exploração das camadas mais baixas da sociedade. Tais situações são apresentadas como características patológicas sociais. O narrador destaca essa realidade ao afirmar: “Desde que a febre de possuir se apoderou totalmente dele, todos os seus atos, todos, fosse o mais simples, visavam um interesse pecuniário. Só tinha uma preocupação: aumentar os bens!” (Azevedo, 2015, p. 15). Esse conceito é complementado pela análise de Aníbal Quijano, que em Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina (2005), afirma: “o controle do trabalho estava fundamentado no controle do capital e no padrão de poder” (Quijano, 2005, p. 108). Aqueles que detêm o capital têm a capacidade de definir as condições de trabalho e as regras que governam as relações laborais, perpetuando assim as desigualdades sociais e econômicas, pois, para que alguns cresçam, outros têm que permanecer na mesmice.

Beth Brait (2017) discute a construção das personagens, destacando que elas não são meras imitações do mundo exterior, mas projeções da forma de pensar e de ser do autor. Para a estudiosa, é essencial que as personagens literárias possuam características antropomórficas e continuem a ser avaliadas como representações do ser humano.

Antonio Candido (1964) também observa que o texto literário se fundamenta na relação entre o ser vivo e o ser fictício, enfatizando que a verossimilhança possibilita uma importante comunicação entre personagens e leitores. Em O Cortiço, Azevedo organiza o enredo em torno das pessoas, mostrando as reais experiências e vivências dos habitantes do cortiço.

É outra vez Antonio Candido (1993) a afirmar que o texto de Aluísio de Azevedo tomou de empréstimo não apenas a ideia de descrever a vida do trabalhador pobre no quadro de um cortiço, mas um bom número de motivos pormenores, mais ou menos importantes, ele descreve que o autor quis produzir e mostrar na sua obra a realidade que estava ao seu redor naquela época e através disso escreveu esse romance.

No que pese tal aspecto, Bosi (2017) versa acerca das muitas ideias de mudança e ruptura dentro da literatura, e a contextualização do momento estético naturalista, traz também um apanhado sobre a vida de Aluísio de Azevedo e diz que ele foi influenciado por Zola e Eça. Aluísio de Azevedo bebe de Eça de Queirós quando “cria tipos de representar usos e costumes de sociedades provincianas” (Santos, 2012, p. 12), e de Zola, Aluísio herda o olhar de mostrar na literatura a questão mais animalesca do Homem.

A partir do período romântico a narrativa desenvolveu, cada vez mais o lado social, como acontece no naturalismo, quem timbrou em tomar como personagens centrais o operário, o camponês, o pequeno artesão, o desvalido, a prostituta, o descriminado em geral. Na França Emile Zola conseguiu fazer uma verdadeira epopeia do povo oprimido e explorado, […] retratando as consequências da miséria, da promiscuidade, da espoliação econômica, e o que fez dele um inspirador de atitudes e de ideias políticas (Candido, 1988, p. 28-29).

Ambos versam sobre essa intenção, de mostrar a literatura como um direito humano, pois em seus textos eles retratavam a realidade, a verdadeira situação, como forma de crítica social, uma vez que “a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento” (Candido, 1988, p. 30). Assim, a literatura se torna mais do que uma forma de entretenimento; ela assume um papel ativo no desvelamento das estruturas de poder e nas dinâmicas sociais que impactam o indivíduo e a coletividade.

Massaud Moisés (2012) promove um estudo sobre a prosa de ficção, mostrando as três direções fundamentais em que ela seguiu, sendo que o realismo exterior defendeu o aproveitamento das conquistas da ciência, preconizando como realidade objetiva não a aparência e a prosa regionalista, em que se miscigenaram.

A pesquisa baseou-se principalmente no entendimento da obra de Aluísio de Azevedo, julgando necessário apresentar os pressupostos teóricos que orientam este trabalho e inserindo aspectos históricos e sociais. Dessa forma, foram utilizados livros, artigos e outras obras para uma compreensão crítica e aprofundada de O Cortiço, em vista de alcançar os objetivos propostos e realizar uma análise completa da obra.

Análise do corpus

O personagem é o ser fictício ou real responsável pelo desenrolar dos acontecimentos da narrativa. Em outras palavras, é quem produz efetivamente as ações no interior das obras literárias e, por consequência, sofre os efeitos gerados pelos eventos da trama. Vale ressaltar que todo texto literário é fictício, ou seja, ele se baseia apenas na realidade. Beth Brait afirma que:

A personagem é um habitante da realidade ficcional, de que a matéria de que é feita e o espaço que habita são diferentes da matéria e do espaço dos seres humanos, mas reconhecendo também que essas duas realidades mantêm um íntimo relacionamento (Brait, 2017, p. 20).

Essencialmente, essa visão revela uma relação dialógica entre a ficção e a realidade humana: embora sejam distintas, ambas são interdependentes, o que permite que uma enriqueça a outra e favoreça a construção de compreensão e empatia entre esses dois mundos.

O autor começa o primeiro capítulo de sua obra apresentando um personagem português que veio para o Brasil com sua esposa e sua filha. Ele trabalhou dos treze aos vinte e cinco anos em uma venda, mas, habitado por um delírio de enriquecer, decidiu abrir seu próprio comércio. “Romão só tinha uma preocupação: aumentar os bens”, e essa preocupação, o desejo de acumular sem freios, se manterá como o elemento econômico central do romance” (Sereza, 2022, p. 133). Vale ressaltar também que esse personagem era extremamente ganancioso; quanto mais economizava, mais dinheiro desejava acumular. Por conta disso, ele passava por algumas privações, como:

O rapaz atirou-se à labutação ainda com mais ardor, possuindo-se de tal delírio de enriquecer que afrontava resignado as mais duras privações dormia sobre o balcão da própria venda, em cima de uma esteira fazendo travesseiro de um saco de estopa cheio de palha (Azevedo, 2015, p. 05).

Após conhecer sua vizinha, uma mulher crioula na faixa dos trinta anos que trabalhava arduamente vendendo angu pela manhã e peixe frito com outros acompanhamentos à noite, João se aproxima cada vez mais dela. Ela havia acabado de perder o marido e, em pouco tempo, ele se torna seu procurador e conselheiro, assumindo o controle de tudo o que era produzido e também sobre ela.

A história de João Romão e Bertoleza surge, desde o seu primeiro capítulo, de uma compreensão profunda da vida econômica dessas duas personagens e dos habitantes do cortiço que erigem juntos e passam a gerir, como uma divisão de trabalho mais sofisticada e perversamente renovada, com o capitalismo João Romão eliminando muitos outros capitalistas ou personagens que estão na fronteira de integrar a condição capitalista entre eles (Sereza, 2022, p. 129).

Os personagens do romance em questão carregam taras patológicas, pois os autores naturalistas exploravam tais desvios para ilustrar a degradação moral e a vulnerabilidade do ser humano. Romão, por exemplo, é retratado como um personagem extremamente ganancioso, que economizava rigorosamente e guardava todos os lucros que obtinha. Em apenas um ano, ele conseguiu construir três casas, evidenciando sua ambição sem fim. Além disso, Romão usava sua esperteza para roubar objetos com a ajuda de Bertoleza e até materiais de obras vizinhas, incluindo os da pedreira localizada ao fundo do terreno. Essas atitudes retratam o comportamento compulsivo e a obsessão por ganhos materiais, características típicas da patologia social destacada na obra.

Que milagre de esperteza e de economia não realizou ele nessa construção! Servia de pedreiro, amassava e carregava barro, quebrava pedra; pedra, que o velhaco, fora de horas, junto com a amiga, furtavam à pedreira do fundo, da mesma forma que subtraiam o material das casas em obra que havia por ali perto (Azevedo, 2015, p. 08).

Essas três casinhas foram apenas o ponto de partida para Romão, que, com o tempo, passou a construir quatro, cinco e assim sucessivamente, ocupando todo o terreno nos fundos de sua bodega. Através desses pequenos furtos, ele erigia quartos para os moradores de seu cortiço, a Estalagem São Romão; chegando até a adquirir uma boa parte da pedreira que, em certos momentos, ele havia furtado. Com o aumento de sua renda, Romão passou a se dedicar também a outros negócios.

Com a chegada de Miranda, que tinha acesso à alta sociedade da época, surgiu uma tensão entre ele e Romão. Miranda decidiu se mudar do centro “pela necessidade, que ele reconhecia urgente, de afastar Dona Estela do alcance dos seus caixeiros” (Azevedo, 2015, p. 09). Em outras palavras, Miranda sentiu-se pressionado a afastar a esposa, mas não poderia encerrar o matrimônio, pois Dona Estela possuía um bom dote, e uma separação traria grande desonra. Além disso, Miranda temia a possibilidade de retornar à pobreza, o que tornava a ideia de se distanciar da esposa inviável e ameaçadora para sua posição social, ou seja ele suportaria, faria qualquer coisa, mas não podia perder o status.

Além de que, um rompimento brusco seria obra para escândalo, e, segundo a sua opinião, qualquer escândalo doméstico ficava muito mal a um negociante de certa ordem. Prezava, acima de tudo, a sua posição social e tremia só com a ideia de ver-se novamente pobre, sem recursos e sem coragem para recomeçar a vida, depois de se haver habituado a umas regalias e afeito à hombridade de português rico que já não tem pátria na Europa (Azevedo, 2015, p. 10).

Na sequência da narrativa, notamos que o casal Estela e Miranda, devido aos fatos ocorridos, se odiava. O relacionamento deles chegou ao ponto de um sentir desprezo pelo outro; até pela própria filha, Estela não sentia amor: “Estela amava-a menos do que lhe pedia o instinto materno por supô-la filha do marido, e este a detestava porque tinha convicção de não ser pai” (Azevedo, 2015, p. 10), esse conflito revela as tensões e desconfianças no casamento, mostrando como a suspeita de infidelidade e questões de paternidade podem romper os laços familiares. Azevedo usa esses elementos para criticar as relações humanas, destacando a hipocrisia e o interesse material presentes na sociedade da época.

Por sua vez, Bertoleza é uma personagem feminina, crioula que era escrava de um senhor cego e que mensalmente pagava uma quantia a quem era seu dono. Vale lembrar que essa personagem é a mesma que é enganada por João Romão em relação à sua carta de alforria. Logo após a morte de seu marido, João Romão aproxima-se de Bertoleza para que ela comece a trabalhar em sua quitanda. Não passa muito tempo até que ele já possua toda a confiança dela, ficando responsável por tudo que ela tinha: “No fim de pouco tempo, era ele quem tomava conta de tudo que ela produzia, era também quem punha e dispunha dos seus pecúlios e quem se encarregava de remeter ao senhor os vinte mil-réis mensais” (Azevedo, 2015, p. 06). Segundo Haroldo Ceravolo (2022), costumamos observar Bertoleza apenas como ‘negra’, ‘escrava’ e ‘mão de obra’, mas o livro permite vê-la também como um potencial capitalista que não se desenvolverá.

No naturalismo brasileiro, Aluísio Azevedo é o outro que toca mais frequentemente na questão do dinheiro e da vida econômica: É em O cortiço, que a modernização econômica da segunda metade do 19 ganha uma geografia especial, atores dinâmicos elementos transformadores e uma confluência de processo de resultado num painel humano no qual a exploração do trabalho surge viva e um e em movimento, dando forma a diferente personagens e situações num momento especialmente complexo da vida emocional (Ceravolo, 2022, p. 127).

Azevedo retrata as relações de poder e a exploração do trabalho e suas consequências de forma dinâmica, destacando o impacto das condições econômicas na vida emocional e nas interações dos indivíduos. Notamos, ao longo da narrativa, um sentimento de inveja entre os personagens: “E pôs-se a passear no quarto, sem vontade de dormir, sentindo que a febre daquela inveja lhe esturricou os miolos” (Azevedo, 2015, p. 20). A inveja aqui é vista como um reflexo das relações sociais marcadas pela competição, desigualdade e a busca pela ascensão, características intensamente presentes na obra, onde personagens lutam para melhorar de vida e se distanciam ou se aproximam dos outros com base em status e bens materiais.

Outro aspecto marcante dessa obra é que o autor faz questão de descrever minuciosamente os traços, o jeito de ser e viver de cada personagem, o que facilita ao leitor imaginar o cenário e entender o contexto da narração. Também notamos a miscigenação entre os personagens: alguns são portugueses brancos, enquanto outros são negros. A narrativa trata de temas muito atuais, como exemplificado pelo personagem Albino, que é homossexual e possui muitos traços femininos. Por outro lado, Rita Baiana representa uma personagem forte, decidida e independente; ela não precisava de um homem em sua vida, ao contrário de outras mulheres que viviam sob as condições sociais do século XIX. Rita é uma mulher sensual e provocante, capaz de despertar obsessões incontroláveis nos homens que a desejam. Diante disso, fica evidente que:

Mas, ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio, tinha o mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada de; aqueles requebros que não podiam ser sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem aquela voz doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante (Azevedo, 2015, p. 70).

A partir das considerações de Azevedo, como descrito na citação acima, percebe-se a sensualidade da personagem mulata e as provocações que ela exibia ao passar, exercendo um poder de sedução sobre os homens que a rodeavam. Esse fascínio é evidente no momento em que ela atrai a atenção exclusiva do português, que, mesmo diante de outras mulheres, só conseguia ver a mulata “E deixava-se ficar olhando. Outras raparigas dançaram, mas o português, o homem branco, só via a mulata, mesmo quando, prostrada, fora cair nos braços do amigo” (Azevedo, 1890, p. 79). O homem branco enxerga ela como desenvolvimento econômico, e também como objeto de prazer, o interesse da relação dele para com ela não é somente de prazer, mas também de exploração, prática comum naquela época. Mesmo que fosse um comportamento proibido, Rita rompia com os paradigmas da época não se encaixando aos modelos que a sociedade impunha para aquelas mulheres, ou seja ela era uma mulher à frente da sua época.

O naturalismo é, na literatura, o movimento que vai dizer com grande paixão que somos reprimidos sexualmente e que vai intensificar os discursos sobre o sexo, mas que acaba também por colaborar na construção e na difusão e novas sexualidades (Ceravolo, 2023, p. 210).

O movimento naturalista não só intensifica a discussão sobre o sexo, mas também contribui para uma visão mais clara e diversificada da sexualidade humana. Na obra, alguns personagens são negros, e o autor enfatiza certos modos de chamá-los, como: mulata, cafuza e entre outros; notamos a partir daí que na obra em questão tem-se uma preocupação em caracterizar e controlar os corpos dos personagens. “Essa Caracterização é frequentemente racial, uma questão crescente no debate ideológico brasileiro da época, alimentando por debates científicos sobre as origens da vida e da humanidade” (Ceravolo, 2022, p. 203), recordamos que o autor ressalta muito e coloca por base a sexualidade dos personagens como elemento fundamental. Nota-se, também, o interesse financeiro nas relações dos personagens, como por exemplo:

A ligação entre o português Jerônimo e a mulata Rita Baiana têm consequência para a vida financeira das personagens: Jerônimo por exemplo, depois de mudar para o cortiço rival “Cabeça de gato”, perde o trabalho na pedreira de João Romão e passar a viver com Rita, não consegue mais pagar pela educação da filha, o que era uma prioridade sua antes de “abrasileirar-se” (Ceravolo, 2023, p. 206).

Jerônimo era um português que veio para o Brasil junto com a mulher e, trabalhou em uma fazenda onde era um excelente trabalhador, mas vivia como escravo. “Para continuar a servir na roça tinha que sujeitar-se degradante, encurralado como uma besta, sem aspirações nem futuro, trabalhando eternamente para o outro” (Azevedo, 2015, p. 48). Em sequência, ele vai ao encontro de João Romão desejando um trabalho em sua pedreira na qual, depois, torna-se gerente. “Dentro de dois anos, distinguia-se tanto entre os companheiros, que o patrão o converteu numa espécie de contramestre e elevou-lhe o ordenado a setenta mil-réis” (Azevedo, 2015, p. 49), em uma dessas festanças que ocorriam no cortiço, Jerônimo se encanta com a dança de Rita Baiana, mulata sensual e provocante.

Jerônimo já nunca pegava na guitarra senão para procurar acertar com as modinhas que a Rita cantava. Em noites de samba era o primeiro a chegar-se e o último a ir embora; e durante o pagode ficava de queixo bambo, a ver dançar a mulata, abstrato, paleta, esquecido de tudo; babão (Azevedo, 1890, p. 96).

A moça, porém, tinha um caso com Firmo, o que desperta o ciúme de Jerônimo e leva a uma violenta briga, na qual o português sai ferido. Após sair do hospital, Jerônimo arma uma emboscada e mata Firmo. Ele havia mudado bastante desde que foi morar no cortiço, o que exemplifica a influência negativa do ambiente sobre as pessoas, como se os costumes do cortiço o tivessem contaminado. Após o ocorrido, Jerônimo abandonou sua esposa, Piedade, para viver com Rita Baiana. Desolada, Piedade se entrega ao álcool.

O cortiço é a variedade de papéis que a mulher pode assumir, papéis que são acompanhados por diferentes sexualidades. Se a mulher jovem “burguesa” era, nos outros romances citados, casta e, por consequência, sujeita às manifestações histéricas, as mulheres desses romances de Aluísio terão diferentes trabalhos e assumirão diferentes níveis de atividade sexual (Ceravolo, 2023, p. 220).

Especificamente em O Cortiço, o autor faz questão de apresentar mulheres que fogem dessa idealização da época e assumem papéis distintos. Beth Brait (2017) utiliza como ponto de partida os três grandes tipos de signos definidos por Philippe Hamon, que propõe três categorias de personagens: referenciais, embrayeurs e anáforas. No corpus analisado, encontramos praticamente esses três tipos mencionados por Hamon. Os personagens referenciais são aqueles que remetem a um sentido pleno e fixo, sendo comumente chamados de personagens históricos. Já os embrayeurs funcionam como elementos de conexão, ganhando sentido ao se relacionarem com outros elementos da narrativa. Por fim, as anáforas representam personagens que se inserem em mais de uma categoria, podendo participar de todas as três ao mesmo tempo. Quanto ao tempo da obra, ele é cronológico, pois percebemos um desenvolvimento claro entre o começo, o meio e o fim da história.

Encontramos personagens referenciais como Bertoleza, figura central feminina e parceira de João Romão, ela simboliza a força feminina e, ao mesmo tempo, a exploração dentro das relações de poder e escravidão emocional. Quanto aos Embrayeurs, esses personagens atuam como pontes que conectam diferentes aspectos da narrativa, enriquecendo as interações e o desenvolvimento da trama. Observamos como exemplos Rita Baiana que serve de ligação entre várias histórias e personagens, ilustrando a mistura cultural e os conflitos de identidade dentro do ambiente do cortiço.

E, por fim, como personagem anafórica, Piedade simboliza, ao mesmo tempo, a repressão, o conflito e a alienação. Ela acaba por sintetizar o fracasso do sonho de adaptação e felicidade no Brasil, servindo como um ponto de convergência entre valores antigos e o choque cultural que envolve a vida no cortiço. Sua trajetória é uma mistura de desilusão e perda, sendo o ponto de impacto das influências culturais e das escolhas de Jerônimo.

Antonio Candido, traz uma noção sobre a personagem que nos chama a atenção, quando ele nos diz que: “O Homo fictus é e não é equivalente ao Homo sapiens, pois vive segundo as mesmas linhas de ação e sensibilidade, mas numa proporção diferente e conforme avaliação também diferente” (Candido, 2014, p. 12); ou seja, nós leitores, tratamos os personagens como indivíduos reais, mas no fim das contas, no texto de ficção, a personagem não passa de palavras, ações etc. Partindo desse ponto o autor imprime várias características reais, assim possibilitando que nós, leitores, demos credibilidade à obra e pensemos que aquele personagem é real.

A obra é narrada em terceira pessoa, com narrador onisciente “Assumindo uma perspectiva do alto, de narrador onisciente” (Bosi, 2017, p. 202). Ou seja, ele é conhecedor de tudo e tem uma visão abrangente de todas as obras dos personagens, como colocava o movimento naturalista. O espaço da obra é o Rio de Janeiro; o tempo, final do século XIX; e o foco narrativo a vida no cortiço que significa casa coletiva para população pobre. Vale ressaltar também que para melhor entender o discorrer dos personagens na obra dependemos da organização estética, pois é através dessa organização que o texto torna-se verossímil, que podemos dizer que é a atribuição daquilo que parece verdadeiro.

Conclui-se, no plano crítico, que o aspecto mais importante para o estudo do romance é o que ressalta da análise da sua composição, não da sua comparação com o mundo. Mesmo que a matéria narrada seja cópia fiel da realidade, ela só parecerá tal na medida em que for organizada numa estrutura coerente (Candido, 2014, p. 75).

Na obra O Cortiço, Aluísio traz um retrato da realidade brasileira daquela época do século XIX. através do comportamento dos personagens. Da mesma forma, é próprio da estética e dos escritores naturalistas, principalmente os brasileiros, que estavam preocupados em demonstrar nas suas obras os problemas sociais, políticos e econômicos.

Só em o cortiço Aluísio atinou de fato com a fórmula que se ajustava ao seu talento: desistindo de montar um enredo em função de pessoas, ateve-se à sequência de descrições muito precisas onde cenas coletivas e tipos psicologicamente primários fazem, no conjunto, do cortiço a personagem mais convincente do nosso romance naturalista. Existe o quadro: dele derivam as figuras (Bosi, 2017, p. 201).

No final do século XIX, circulava no Rio de Janeiro uma expressão popular, em tom humorístico, que a estrutura tripartida desse ditado é tão marcada que inspira facilmente uma adaptação poética no estilo Pau-Brasil, de Oswald de Andrade. Assim, como destaca Candido (1993, p. 114), transforma-se a frase em algo como: “Mais-valia crioula Para português, negro e burro três pês: pão para comer, pano para vestir e pau para trabalhar”. O Cortiço aborda essas mesmas relações de exploração, retratando a marginalização dos personagens, que vivem em condições precárias e são constantemente moldados por um sistema que limita suas identidades e aspirações. Tanto a expressão quanto a obra de Azevedo denunciam a violência estrutural e as desigualdades que definem as vidas dos trabalhadores em um ambiente opressivo.

Segundo figurante é o negro, mais o mestiço, que sendo pobre e desvalido é assimilado a ele: o capoeira Firmo, Rita Bahiana, a arraia miúda dos cortiços, que quando etnicamente branca é socialmente negra. Terceiro figurante seria um animal; mas onde está ele? É justamente o que veremos, ao constatarmos que a redução bimesmo ológica do Naturalismo vê todos, brancos e negros, como animais (Candido,1993, p 117).

Candido expõe uma crítica profunda à forma como as estruturas sociais e raciais se entrelaçam na literatura e na sociedade, revelando a desumanização das classes marginalizadas e a necessidade de reconhecer a diversidade e a humanidade de todos os indivíduos. A obra não apenas reflete as influências do naturalismo, mas também permanece relevante para a compreensão das dinâmicas sociais atuais. A conclusão é que O Cortiço é um marco literário atemporal que nos instiga a refletir sobre a natureza humana e a sociedade, reforçando seu lugar de destaque no cânone literário brasileiro.

Breves considerações

Através deste artigo, buscamos demonstrar a continuidade das temáticas sociais entre os séculos XIX e XXI. Ao comparar essas duas épocas, percebemos que muitas questões persistem, como a busca pela ascensão social, a pobreza e a homossexualidade. Essas realidades sociais, retratadas nas obras de Aluísio de Azevedo, ainda são relevantes hoje, evidenciando que, apesar das mudanças superficiais, as estruturas sociais e os desafios enfrentados pelos indivíduos permanecem.

Este trabalho é importante porque permite aos leitores compreender como funcionava a sociedade no século XIX e como ela se reflete na contemporaneidade. Assim, é possível fazer comparações e perceber vestígios de séculos passados na sociedade atual. Além disso, a literatura desempenha um papel fundamental na análise crítica dessas dinâmicas, oferecendo várias vertentes de interpretação e compreensão das obras.

Embora a sociedade atual tenha desenvolvido soluções para algumas das patologias mencionadas, ainda observamos a frequência de certos fatores sociais. Para a área das letras, este trabalho enfatiza que a literatura não é apenas um relicário do passado, mas uma realidade que se atualiza constantemente. A literatura permanece relevante, mesmo quando pode parecer desatualizada, e serve como um meio de enriquecer nossa imaginação à luz da teoria. Essa abordagem nos ajuda a entender melhor o texto literário, ampliando as possibilidades de interpretação.

Em suma, as considerações aqui apresentadas reforçam a ideia de que a literatura é uma ferramenta poderosa de reflexão e análise social, convidando os leitores a explorar as intersecções entre passado e presente em suas leituras e a ver o quanto a obra mencionada nesse estudo é atemporal, embora a crítica social de Azevedo continue pertinente, sua obra também nos desafia a refletir sobre as possibilidades de mudança. O engajamento com as causas sociais, a educação e as políticas de inclusão social são formas de construir uma sociedade mais justa e igualitária.

Referências

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BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 52ª ed. São Paulo: Cultrix, 2017.

BRAIT, Beth. A personagem. 9ªed. São Paulo: Contexto, 2017.

CANDIDO, Antonio. A personagem de Ficção.13ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.

CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas cidades, 1993.

CAVALCANTI, Joana. Caminhos da literatura infantil e juvenil: dinâmicas e vivências. São Paulo: Paulus, 2002.

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