Murilo Rubião e Machado de Assis: atravessados pelo mistério

Matheus Petris da Silva

Resumo: Entre as várias definições do gênero literário conto, uma hegemônica, delineada por Edgar Allan Poe, encontra na chamada unidade de efeito seu aspecto basilar. Assim como o conto, o gênero literário fantástico é pensado em torno de um efeito, o da fantasticidade que, segundo aponta David Roas, se configura pela confrontação de duas instâncias: o real e o sobrenatural. Pensando nessa característica do conto e do fantástico, por meio da qual exige-se um desenvolvimento em prol de determinado efeito, de que maneira eles podem convergir? Com essa indagação como mote, este artigo analisa de forma comparativa dois contos da literatura brasileira: “Marina, a Intangível”, de Murilo Rubião; e “O país das quimeras”, de Machado de Assis. Para tanto, se compreenderá o conto por meio das reflexões de Poe (1999) e Eichenbaum (2013); e o fantástico por meio de autores como Ceserani (2006) e Roas (2014). A intenção não é a de utilizar os textos como pretexto para definir um ou outro gênero, mas demonstrar como os contos, além de trabalharem uma temática próxima — o trabalho solitário com a palavra — se organizam formalmente de modo análogo, como se o princípio do desenlace estivesse calcado em sua fantasticidade.

Palavras-chave: Literatura Brasileira. Conto. Fantástico. Machado de Assis. Murilo Rubião.

Abstract: Among several definitions of the short story literary genre, a hegemonic one outlined by Edgar Allan Poe finds its basic aspect in the so-called unity of effect. Just like the short story, the fantastic literary genre is thought around an effect, that of fantasticity which, according to David Roas, is configured by the confrontation of two instances: the real and the supernatural. Thinking about this characteristic of the short story and the fantastic, in which development is required in favor of a certain effect, how can they converge? With this question as its motto, this article comparatively analyzes two short stories from Brazilian literature: “Marina, a Intangível”, by Murilo Rubião; and “O país das quimeras”, by Machado de Assis. To this end, the short story will be understood through the reflections of Poe (1999) and Eichenbaum (2013); and the fantastic through authors such as Ceserani (2006) and Roas (2014). The intention is not to use the texts as a pretext to define one genre or another, but to demonstrate how these stories, in addition to working on a similar subject — the solitary work with the word — are formally organized in an analogous way, as if the principle of denouement was based on its fantasticity.

Key-words: Brazilian literature. Short story. Fantastic. Machado de Assis. Murilo Rubião.

I Introdução: o gênero conto e o fantástico, uma possível aproximação

Quanto mais versamos os modelos, penetramos as leis do gosto e da arte, compreendemos a extensão da responsabilidade, tanto mais se nos acanham as mãos e o espírito, posto que isso mesmo nos esperte a ambição, não já presunçosa, senão refletida (Machado de Assis).

No prefácio do livro O sino e o relógio – Uma antologia do conto romântico brasileiro, há uma breve discussão levantada pelos professores Hélio de Seixas Guimarães e Vagner Camilo (2020), na qual indicam a abundância de termos que versavam a respeito do gênero conto no século XIX. Naquele momento, não havia definições claras e as distinções entre os gêneros não estavam estabelecidas. Os próprios autores da época denominavam seus textos de modo disperso, sendo Machado de Assis exemplar nesse sentido. Sua primeira antologia de narrativas do gênero, intitulada Contos fluminenses (1870), trazia o substantivo à frente, o que não voltaria a acontecer nas futuras coletâneas, que teria o termo histórias como preferência. Ainda que incipiente nessa primeira antologia enquanto forma, são textos que balizarão sua futura produção de contos.

Essa dispersão de um termo específico não se limita ao século XIX ou ao Brasil. Formalistas russos como Chklovsky ou Eichenbaum pareciam, muitas vezes, usar o termo novela como sinônimo de conto e vice-versa. Em seu texto Teoria da prosa, Eichenbaum (2013, p. 231) opõe o romance à novela: “o romance vem da história, da narrativa de viagens; a novela vem do conto, da anedota”; além disso, existe uma diferença de princípio entre elas, a extensão das narrativas determina suas construções. A novela, que ele também chama de shortstory, tenderia à conclusão, como se a integridade de sua construção fosse voltada para construir o final da narrativa, seu final inesperado, “como um projétil disparado de um avião para golpear de bico e com toda a força o objeto visado”, o que implicaria em objetivos e procedimentos diferentes do romance. Na narrativa mais longa, são várias as incógnitas que não são resolvidas, como se as construções paralelas fossem mais importantes que a conclusão. Mais uma metáfora de Boris Eichenbaum (2013, p. 233) para ilustrar a questão: “Pode-se comparar o romance a um longo passeio por diferentes lugares, que supõe um retorno tranquilo; a novela, à escalada de uma colina, que tem como objetivo oferecer-nos a vista que se descortina daquela altitude”.

Após afirmar que a prosa americana, entre as décadas de 1830 e 1840, tenderia ao desenvolvimento da novela, o crítico russo (Eichenbaum, 2013, p. 235) intenta defini-la evocando um texto crítico de Edgar Allan Poe a respeito de Nathaniel Hawthorne, que versa sobre três características: o plano (a estrutura para maquinar o efeito), a extensão (ser lido de uma só vez) e o efeito (final/desenlace). Embora o texto citado de Poe seja posterior ao seu importante ensaio A filosofia da composição, essa definição se apresenta lá; e, apesar de Poe versar acerca de seu poema “O corvo” em seu ensaio seminal, no decorrer do tempo essa obra se tornou uma referência crítica/teórica sobre o conto enquanto gênero. Desse modo, podemos considerar esses aspectos da shortstory como uma caracterização satisfatória para os aspectos formais do conto — da forma como o compreendemos atualmente.

Atualmente, há uma distinção mais clara entre os gêneros conto, novela e romance: a organização em torno de um princípio de extensão diferente, os objetivos e os procedimentos de composição são outros (Eichenbaum, 2013, p. 232). Poe e os formalistas parecem ter germinado essa possibilidade. A popularização do já citado ensaio do escritor estadunidense, lançou lume ao caminho para uma definição do gênero conto, como se essa narrativa estivesse necessariamente vinculada a uma unidade de efeito. Nesse sentido, Poe (1999) julgava que os autores não poderiam iniciar suas narrativas sem premeditar o final delas, afinal, toda a estrutura do conto deveria servir em prol desse efeito, ou seja, a tessitura do conto estaria a serviço da intenção. Seria possível, então, pensar o gênero fantástico por meio do conto enquanto gênero? De que forma o fantástico se articularia formalmente com o conto?

O gênero fantástico pode se caracterizar como “uma particular combinação, e um particular emprego, de estratégias retóricas e narrativas, artifícios formais e núcleos temáticos” (Ceserani, 2006, p. 67) visando a fantasticidade. Portanto, ensejando uma definição do fantástico, percebemos que “o modo fantástico é usado para organizar a estrutura fundamental da representação e para transmitir de maneira forte e original experiências inquietantes à mente do leitor” (Ceserani, 2006, p. 12, grifos do autor). Ou seja, para além dos aspectos formais e retóricos, nota-se também uma necessidade dessa transmissão inquietante. Essa transmissão, segundo Roas (2014) e outros vários autores que se debruçam sobre o fantástico, se define pela confrontação de duas instâncias fundamentais: o real e o sobrenatural. A transmissão de inquietude se dará pela colisão entre duas codificações distintas de mundo. Com isso, de que modo essa transmissão inquietante, esse efeito, se articula em um conto? Visando responder essas indagações, este artigo analisará de forma comparativa dois contos da literatura brasileira: “Marina, a Intangível”, de Murilo Rubião, e “O país das quimeras”, de Machado de Assis.

II. Análise comparativa: Murilo Rubião e Machado de Assis

O conto de Murilo Rubião (1916-1991) foi publicado pela primeira vez em 1944, na Revista do Brasil e, posteriormente, incluído em sua primeira coletânea de contos, intitulada O ex-mágico (1947). Esse conto, assim como quase todos os demais de sua carreira literária, sofreu diversas alterações e foi constantemente republicado. Já o citado conto de Machado de Assis (1839-1908) foi publicado originalmente no periódico O Futuro em 1862, quando o autor tinha apenas 23 anos. Vale salientar que esse conto machadiano foi republicado com modificações no Jornal das Famílias em 1866, sob o título de “Uma excursão milagrosa”.

A partir dessa breve apresentação, pode-se notar que ambos os autores, de formas diferentes, modificaram ou reescreveram seus contos. No caso de Machado, por exemplo, seus contos reunidos em livros também foram modificados, sendo que quase todos já haviam sido publicados anteriormente em periódicos, organizados e reunidos em livro.

Em sua carreira literária, Rubião se dedicou exclusivamente ao gênero conto e ao fantástico. De algum modo, seus 33 contos publicados em vida foram exaustivamente modificados, suprimidos, reescritos. Em algumas dessas alterações, na busca constante por “clareza” e “objetividade”, o escritor mineiro alterava apenas algumas palavras, mas que eram de fundamental importância para a compreensão de suas narrativas. Assim como Machado, ao organizar seus contos em livros, esse processo de revisão sistemática retornava, se estendendo, inclusive, em novas organizações de contos já publicados e organizados por ele. Se Machado realizava alterações nos contos de suas antologias para desamarrá-los das imposições e “regras” dos periódicos da época (Crestani, 2009, p. 49-50), Rubião parecia ter uma dívida consigo mesmo, uma espécie de compromisso inexorável com sua atmosfera e a precisão da linguagem.

O trabalho de Murilo Rubião na construção de seus contos não se resumia à reescritura, a extrema depuração da linguagem fazia com que seus textos levassem anos para serem publicados; já que “concluídas” não parece ser um adjetivo em concordância com o trabalho literário rubiano, sempre à procura de uma possível precisão a ser alcançada. Sobre isso, Rubião declarou em entrevistas que, geralmente, seus textos começavam como histórias mais extensas, quase novelas, e iam sendo suprimidas até a estruturação da narrativa como um conto (Lowe, 1979, p. ?). Nesse sentido, Franzim (2016, p. 125) assinala: “Pela supressão, Rubião encontra um meio de tornar cada palavra publicada absoluta e fundamental”.

Essas características laboriosas e rigorosas convergem diretamente no que Poe escreveu a respeito do poema “O corvo”: “o trabalho caminhou, passo a passo, até completar-se, com a precisão e a sequência rígida de um problema matemático” (Poe, 1999, p. 103). Tamanha precisão e seu encadeamento relaciona-se com a ideia de unidade de efeito, aquilo que Poe também chamava de eixo narrativo, o centro que faz maquinar o desenvolvimento, o encadeamento, pois toda a estrutura e composição deverá servir em prol desse efeito. Com isso,

[…] notamos o eco da lição de Poe: na redução a que Rubião submete seus textos, eliminando todos os excessos, mantendo apenas as palavras essenciais, e poupando apenas aqueles termos cuja ausência comprometeria o todo da obra. Isso denota que o autor mineiro aceita como herança a busca pela unidade de efeito (ou impressão) poeana (Franzim, 2016, p. 115).

Murilo Rubião e Machado de Assis escolheram o conto como gênero para tecerem suas histórias de “Marina, a Intangível” e “O país das quimeras”. Pode-se pensar, então, assim como nas concepções de Poe, que a extensão da composição literária escolhida pelos autores estaria de acordo com o efeito pretendido por ambos: o do estranhamento pelo contato com o fantástico. Por conta dessa extensão, os leitores deverão ler essas narrativas do início ao fim, sem interrupção, para que o efeito seja paulatinamente construído, indo ao encontro das proposições do poeta: “Eu prefiro começar com a consideração de um efeito” (Poe, 1999, p. 101). Assim, caso uma obra literária seja deveras extensa, esse efeito derivado da unidade de impressão perde sua força. Por isso, acreditamos que o fantástico se adere satisfatoriamente à extensão do conto enquanto gênero.

Dirigimo-nos, então, aos respectivos contos. Antes de qualquer consideração, apresentemos os protagonistas das narrativas e, brevemente, seu enredo nas características que acreditamos importantes para esta análise. Em Rubião, o personagem-narrador é um jornalista que trabalha no período noturno em um jornal matutino, pois é um profissional de pouco apreço por seus contratantes. Além disso, se mostra frustrado com sua carreira e, ao longo da narrativa, buscará alguma iluminação como fonte de inspiração para que possa escrever. Já no conto de Machado, Tito é um poeta frustrado que precisa vender sua poesia para um outro personagem que almeja apenas o título de poeta. Além disso, Tito vive uma desilusão amorosa e, assim como o personagem de Rubião, se engolfava solitário em reflexões. Ou seja, os personagens dividem uma angústia quase congênita e são assombrados por seus ofícios: o labor da palavra os acompanha.

Se, em termos de estrutura e de seus elementos constitutivos, os contos seriam análogos, como tentaremos demonstrar, isso não ocorre em suas extensões narrativas, pois evidencia-se uma considerável diferença. Enquanto o de Rubião é conciso, o de Machado é extenso e detalhista. Isso se deve ao contexto de época, uma vez que o conto machadiano foi escrito no período em que o escritor tinha pouca experiência no gênero, como nos diz Crestani (2009, p. 68): “Nesse período, o conto ainda era uma forma nova entre os escritores brasileiros e teve de passar por um longo processo de definição e aquisição do seu estatuto literário”. Naquele momento, assim como os romances de folhetim, muitas vezes os contos eram publicados de modo seriado, o que, de certa forma, forçava os escritores a alongarem seus contos por uma imposição do periódico. Ainda é Crestani (2009, p. 68) quem afirma: “é provável que Machado de Assis, durante o período de colaboração no Jornal das Famílias, seguisse, como modelo narrativo, a estrutura do romance”.

Vamos a exemplos para compreender as consequências desse contraste. No início do conto machadiano, o narrador afirma: “Devo proceder ao retrato físico e moral do meu amigo Tito” (Assis, 1868, n.p.). Tal consideração, além de exprimir e antecipar a configuração de proximidade desse narrador com as personagens do conto, exemplifica a necessidade de traçar um plano psicológico, moral e/ou físico das personagens. E não somente, pois, diferentemente do conto de Rubião, que compreende reduzidas personagens, o conto de Machado é repleto delas. Se há uma diferença estilística — e isto é inegável — há também uma diferença narrativa que não nos impedirá de aproximá-los.

Tais diferenças estabelecem proximidade com uma ideia delineada por Roas (2014, p. 92) em suas discussões sobre a própria linguagem do fantástico, pois cada respectiva época requisitará de seus escritores uma especificidade para se codificar uma ideia de realidade, uma verossimilhança pela qual os leitores se enxergam nas narrativas, o que demonstra que

[…] tudo isso não implica uma concepção estática do fantástico, porque ele evolui ao ritmo em que se modifica a relação entre o ser humano e a realidade. Isso explica que, enquanto os escritores do século XIX (e também alguns do XX, como Machen ou Lovecraft) escreviam narrativas fantásticas para propor exceções às leis físicas do mundo, consideradas fixas e rigorosas, os autores do século XX (e do XXI), uma vez substituída a ideia de um nível absoluto de realidade por uma visão dela como construção sociocultural, escrevem narrativas fantásticas para desmentir os esquemas de interpretação da realidade e do eu (Roas, 2014, p. 92).

Pensemos em como a narrativa de Rubião se inicia, pois, comumente nos contos do escritor mineiro, se configuram atmosferas mais imagéticas do que descritivas ou explicativas. Em Machado, ao menos no conto aqui analisado, existe toda uma contextualização biográfica, por assim dizer, do personagem, para só posteriormente nos encontrarmos com ele, no presente da narrativa, em seu íntimo. Enquanto que, em Rubião, travamos contato diretamente com o personagem logo no primeiro parágrafo.

Primeiro, vamos ao conto de Rubião. Quando confrontado por sua ausência de criatividade, exprimindo sua angústia, o personagem-protagonista exclama: “Eu era o único jornalista destacado para o plantão da noite. Sendo o jornal um vespertino, logicamente só ocupava os seus redatores na parte da manhã” (Rubião, 1982, p. 28). É o que revela o descrédito do personagem em seu ofício. Nesse conto, o protagonista narra sempre em primeira pessoa, o que nos faz lembrar que esse tipo de narrador é uma característica comum na obra de Rubião. Nesse ponto, há uma necessidade fulcral de composição, pois podemos, em certa medida, pensar seu conto como expressão de uma angústia quase autobiográfica.

No primeiro parágrafo, o narrador-personagem diz: “Afastei da minha frente a Bíblia e me pus à espera de alguma coisa que estava por acontecer. Certamente seria a vinda de Marina” (Rubião, 1982, p. 27). Rubião era um leitor inveterado da Bíblia, já tendo afirmado em diversas ocasiões sua dívida para com as escrituras sagradas. Além disso, a maioria de seus contos e livros se abrem com epígrafes bíblicas, como é, inclusive, o caso de “Marina, a Intangível”. Não estenderemos nossa análise à epígrafe, mas, com essas breves relações, introduzimos a ideia autobiográfica citada acima. Seria esse conto a composição literária de suas angústias enquanto lapidador da palavra?

Pensemos por meio do conto. O narrador-personagem afirma: “A cesta, repleta de papéis amarrotados, me desencorajava” (Rubião, 1982, p. 28).

Podemos inferir que os papéis amarrotados se referem ao trabalho da escrita, as tentativas de escritura e a impossibilidade de realizá-la, é como se o ofício do escritor o inquietasse. Afinal, ele afirmará em seguida: “— Morra a poesia, morram os poetas!” (Rubião, 1982, p. 29).

Porém, ao dialogar com a criatura que irá irromper posteriormente na narrativa, ela parece conhecê-lo profundamente, afirmando que ele conseguirá escrever. O escritor estaria falando consigo mesmo? O ofício da escrita não é simples, ajudado ou não por uma criatura sobrenatural, as ideias podem se dissipar: “A alegria de ter encontrado com facilidade a frase que abriria o pequeno ensaio não durou muito. Quando ia escrevê-la, fugiu-me da pena” (Rubião, 1982, p. 29). Dito de outro modo, as ideias necessitam das palavras, necessitam do labor, do ofício. São momentos como esses no conto que parecem sintetizar toda uma preocupação fantasmagórica com a escrita, como se o personagem fosse constantemente assombrado por ela.

O sobrenatural que irromperá na narrativa já é estabelecido como presságio pelo personagem que se pôs à espera de “alguma coisa que estava por acontecer” (Rubião, 1982, p. 227). Aqui, há outra diferença entre os contos, pois, também recorrente em Rubião, o dito fantástico é aderido às suas narrativas de modo natural, sendo muitas vezes tal irrealidade aceita como normalidade pelos personagens. Se, como nos diz Todorov (p. 37-39), “a hesitação do leitor é pois a primeira condição do fantástico”, ou seja, “é a hesitação que lhe dá vida”, podemos relacionar o experimento dessa hesitação tanto do ponto de vista do leitor quanto do personagem? Seguindo a definição de Todorov, se essa irrealidade é aceita pelas personagens, a hesitação não se dissiparia? David Roas parece solucionar a questão:

E o essencial para que tal conflito gere um efeito fantástico não é a vacilação ou a incerteza em que muitos teóricos (a partir do ensaio de Todorov) continuam insistindo, e sim a inexplicabilidade do fenômeno. Essa inexplicabilidade não está determinada exclusivamente no âmbito intratextual, envolvendo em vez disso o próprio leitor (Roas, 2014, p. 89).

O espanto em “O país das quimeras” é outro, há mais distanciamento entre o real e sobrenatural. Algo que também se verifica em especificidades de época e de estilo, afinal, para além de uma codificação de um suposto real, muitas vezes, as obras são contempladas como “um experimento verbal sem nenhuma relação com a realidade exterior ao universo linguístico[…], ela não remete à realidade, baseando-se em vez disso em sua própria ficcionalidade” (Roas, 2014, p. 88). Todavia, elas também têm semelhanças em sua ficcionalidade. Seguindo algumas conceituações e discussões em torno do fantástico, as obras também compartilham de “procedimentos formais e sistemas temáticos”, como é intitulado um capítulo do livro O fantástico, de Remo Ceserani.

Refletiremos agora a respeito dos procedimentos formais e sistemas temáticos no conto machadiano. Sabendo da sua impossibilidade amorosa (e de sua frustração), Tito reflete sobre as próximas ações a serem tomadas. Escolhendo uma viagem, passa a ponderar qual a melhor forma de efetuá-la, se por terra ou por mar. Entretanto, o pensamento de Tito, descrita de forma racional e verossímil será interrompida pela aparição da criatura e, as suas próprias reflexões, irão se dissipar, pois irão se aderir ao inverossímil trazido por uma criatura logo após o seguinte diálogo: “— Coitado de mim, respondeu o poeta, que tenho a poesia fria, e apagada a inspiração! — De que precisas tu para dar vida à poesia e à inspiração? — Preciso do que me falta… e falta-me tudo” (Assis, 1868, n.p.).

A criatura convida Tito justamente para uma viagem, e ele inquirirá: “Partiremos amanhã. É por mar, ou por terra?” (Assis, 1868, n.p.); e será respondido: “Nem amanhã, nem por mar, nem por terra; mas hoje, e pelo ar”. Para além dessa fantasticidade traçada, pode-se notar a convergência entre a aflição criativa e a indecisão. E, assim como o personagem de Rubião, Tito está desiludido e desesperançoso com seu ofício.

Com relação ao espaço narrativo dos contos, ambos os escritores se encontram em lugares circunscritos. No conto de Murilo Rubião, o protagonista está em seu local de trabalho, enquanto que, no de Machado de Assis, Tito encontra-se em seu quarto. Em ambos, os escritores estão debruçados sobre seus papéis na tentativa de iniciarem suas criações. Estão sozinhos, com o intuito de escrever; similaridade que também é corroborada por outra afirmação de Poe:

[…] sempre me pareceu que uma circunscrição fechada do espaço é absolutamente necessária para o efeito de incidente insulado e tem força de uma moldura para um quadro. Tem indiscutível força moral, para conversar concentrada a atenção e, naturalmente, não deve ser confundida com a mera unidade de lugar (Poe, 1999, p. 110, grifos nossos).

Outrossim, ambas as narrativas se situam no período noturno, em consonância com aquilo que Ceserani (2006, p. 77) nos explica: “A noite, a escuridão, o mundo obscuro e as almas do outro mundo. A ambientação preferida pelo fantástico é aquela que remete ao mundo noturno”. Tal noite, tal silêncio, tal solidão, nos parece ser essa extensão metafórica aos anseios da escrita, é quando os escritores e personagens estão consigo mesmos, acompanhados apenas da folha em branco e de suas ideias. Ou melhor, pensemos como no conto machadiano: quando Tito, já no País das Quimeras, questiona as quimeras sobre suas existências, elas respondem: “— Não te lembras? À noite, cansado das lutas do dia, recolhes-te ao aposento, e aí, abrindo velas ao pensamento, deixas-te ir por um mar sereno e calmo” (Assis, 1868, n.p.). Ou seja, o momento em que o escritor, o poeta, escreve.

Retomando a centralidade da aparição sobrenatural, isto ocorre com ambas as personagens, pois elas são surpreendidas por alguém, tendo esse espaço isolado, de certa forma, invadido, destacando um dos procedimentos formais e sistemas temáticos: “A aparição do estranho, do monstruoso, do irreconhecível” (Ceserani, 2006, p. 84). Podemos notar isso, respectivamente, nos contos analisados: “Porém, ao descerrar as venezianas, deparei com a fisionomia de um desconhecido” (Rubião, 1982, p. 29); “Mas, ó pasmo! Mal o poeta abriu a porta, eis que uma sílfide, uma criatura celestial, vaporosa, fantástica […]” (Assis, 1868, n.p.).

Com isso, nota-se o diferente trabalho com a linguagem, não só na concisão, mas na relação dos personagens com a criatura. Em Rubião, não há um espanto, uma surpresa, mas a ação se torna banal, afinal, o próprio personagem presumira que “Os sons teriam que vir de fora”. No caso de Machado, há uma surpresa exclamativa, em que há um número maior de substantivos e adjetivos. Melhor dizendo, visando escapar do discurso racional, “o narrador se vê obrigado a combinar de forma insólita substantivos e adjetivos, para intensificar sua capacidade de sugestão” (Roas, 2014, p. 174). Tanto o fantástico quanto a linguagem se constroem com outros contornos e em acordo com suas próprias necessidades.

Notamos, então, que esse distanciamento secular entre as narrativas exige de cada uma delas sua especificidade. Pois, como “a construção do texto fantástico seria guiada — paradoxalmente — por uma ‘motivação realista’” (Roas, 2014, p. 164), cada autor lidou de sua forma com essa motivação. Afinal, “o modo fantástico utiliza profundamente as potencialidades fantasiosas da linguagem, a sua capacidade de carregar de valores plásticos as palavras e formar a partir delas uma realidade” (Ceserani, 2006, p. 70).

Se em Murilo Rubião a fantasticidade invade o cotidiano e fica mais preso a ele, a criatura se adensa ao cotidiano do personagem-protagonista; em Machado de Assis, a criatura invade esse cotidiano, mas para levar o personagem-protagonista a outro mundo, a dimensão fantástica se torna externa e não interna ao mundo. Confirma-se, como observamos na abertura deste artigo, que o fantástico se constrói a partir de um conflito entre o real e o sobrenatural. Para tanto, o leitor necessita de “um mundo que ele reconhece e em que se reconhece […]” (Roas, 2014, p. 91). Para complementar, Roas (2014, p. 91) afirma: “[…] a integração do leitor no texto implica uma correspondência entre sua ideia de realidade e a ideia de realidade intertextualmente”. Nesse sentido, há uma diferença na construção do real em cada conto, enquanto em Machado de Assis há toda uma introdução, situando o leitor no mundo daqueles personagens, com diversas descrições — afinal, estamos falando de um Machado ainda jovem e de um gênero em construção —, em Rubião estamos diretamente diante do personagem, diante daquela realidade de forma mais imagética, menos descritiva-explicativa; a verossimilhança efêmera se configura de modo distinto, de acordo com cada época.

Dando continuidade a tal construção fantástica, na qual passamos de uma “dimensão do cotidiano, do familiar e do costumeiro para a do inexplicável e do perturbador” (Ceserani, 2006, p. 73), tal interrupção da normalidade e da solidão parece vir a prolongar a curiosidade do leitor. Podemos notar isso no trecho a seguir de “Marina, a Intangível”: “Afinal, duas pancadas longas e pesadas, que a imobilidade do ar fez ganhar em volume e nitidez, ressoaram, aumentando os meus sombrios pressentimentos” (Rubião, 1982, p. 28). E no excerto de “O país das quimeras”: “Estava o poeta nestas averiguações, quando ouviu que batiam à porta três pancadinhas. Quem seria? Quem poderia ir procurar o poeta àquela hora?” (Assis, 1868, n.p.).

Notamos, novamente, a diferença. Se em Rubião pouco importa a identidade da criatura, em Machado é uma dúvida crucial: a normalidade e o espanto. Todavia, em ambos os contos, os personagens estavam profundamente ensimesmados, preocupados, em situações nas quais “há uma forte interiorização da experiência, o eu profundo é agredido por uma súbita irrupção” (Ceserani, 2006, p. 84).

Dito isso, torna-se cada vez mais tangível a preocupação e o refinamento com a linguagem, pois é justamente por meio dela que será possível construir essa fantasticidade. Ademais, a necessidade de integração do leitor com essa narrativa, como nos apontou Roas, exige recursos formais que integrem o leitor nessa narrativa, que o faça se identificar e acreditar nela para, em seguida, ser surpreendido.

Aqui, surge uma pergunta: em Rubião, isso realmente acontece? E se não, tal efeito perderia a força? Cabe a reflexão a partir do seguinte trecho: “Muito antes de ouvir o surdo rumor das pancadas, a expectativa me enervava. Não mais podia esperar. Que surgisse o que ameaçava vir!” (Rubião, 1982, p. 28). O personagem quer confrontar o sobrenatural, ela o questiona, tem ares premonitórios, ou seja, Rubião subverte a dimensão linguística “ao promover a descrição de um fenômeno impossível dentro desse mesmo sistema” (Roas, 2014, p. 174).

Em Rubião, a fantasticidade parece ocorrer de maneira distinta, enquanto em Machado parece convergir com a própria tradição, o autor mineiro traz uma outra originalidade para com ela; está para além de suas “limitações”. Ainda assim, pode-se pensar a fantasticidade inerente a essas narrativas, pois, assim como as personagens são surpreendidas com as aparições, elas também são sobressaltadas com seus sumiços, ou seja, na mesma medida em que o fantástico surge, ele também se esvai.

Vejamos. Em Rubião (1982, p. 32): “Quando deles me desvencilhei, encontrava-me só no terreiro e nenhum som, nenhum ruído se fazia ouvir”; em Machado (1968, n.p.): “A vela estava gasta; a galga, estendida sob a mesa, tinha os olhos fitos na porta. Tito entrou e atirou-se sobre a cama, onde adormeceu, refletindo no que lhe acabava de acontecer”. Ou seja, tanto em Rubião quanto em Machado hesitamos perante a veracidade do ocorrido, em comum acordo ao que nos diz Roas (2014, p. 93, grifos nossos), pois, se a “tematização do conflito é essencial: a problematização do fenômeno é o que determina, em suma, sua fantasticidade”.

III. Considerações finais

Diante da análise realizada, verificamos que o efeito fantástico gerado pelas narrativas, cada qual a seu modo, se adere ao conto formalmente, como se a unidade de efeito — para retomarmos Poe — estivesse a serviço do fantástico. Nesse sentido, conclui-se que o fantástico se adere satisfatoriamente ao conto enquanto gênero e, mesmo em contos tão distantes temporalmente e tão diferentes (em extensão), há um funcionamento análogo.

Pode-se notar um esquema estrutural bem delimitado das narrativas aqui comparadas. Na construção de um mundo verossímil e em sua codificação, observamos os personagens escritores frustrados, sozinhos em um espaço fechado e na calada da noite. Posteriormente, surge a irrealidade, o sobrenatural que se choca com o real, irrompendo um ambiente soturnamente silencioso, criaturas fantásticas agora fazem companhia aos escritores. Porém, o sobrenatural é dissipado, e a “realidade” retorna. Todavia, a diegese narrativa não revela se estivemos em um plano onírico ou se o conflito realmente existiu, o que fica é a modificação causada por esse incidente, ambos os escritores foram afetados por ele, como podemos observar, respectivamente, nos contos de Rubião e Machado: “Sabia, contudo, que o poema de Marina estava composto, irremediavelmente composto. Feito de pétalas rasgadas e de sons estúpidos.” (Rubião, 1982, p. 32); “Desde então Tito possui um olhar de lince, e diz, à primeira vista, se um homem traz na cabeça miolos ou massa quimérica […]” (1862, n.p.).

Desse modo, como “o essencial para que tal conflito gere um efeito fantástico não é vacilação ou a incerteza em que muitos teóricos […] continuam insistindo, e sim a inexplicabilidade do fenômeno” (Roas, 2014, p. 89), não podemos explicá-los, mas podemos supor que ocorreram. Se aconteceu ou não, pouco importa. O que é certo é a dívida que Murilo Rubião afirmava ter com Machado de Assis e o compromisso que teve com o conto e com o fantástico: “Quem não acredita no mistério não faz literatura fantástica. Aliás, o fantástico já existia entre nós, mas só no Machado de Assis. Eu cheguei ao fantástico exatamente por ter começado pelo Machado. Sem ele, eu não chegaria ao fantástico nunca” (Lowe, 1979, p. 30). Seja em “Marina, a Intangível” ou em “O país das quimeras”, nós acreditamos no mistério e, sem ele, essas narrativas seriam outras.

Referências

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. O País das Quimeras (conto fantástico). Disponível em: https://www.machadodeassis.ufsc.br/obras/contos/avulsos/CONTO,%20O%20pais%20das%20quimeras,%201862.htm. Acessado em: 15 set. 2024.

CESERANI, R. O fantástico. Curitiba: Editora UFPR, 2006.

CRESTANI, J. L. Machado de Assis no Jornal das Famílias. São Paulo: Edusp, 2009.

EICHENBAUM, Boris. Teoria da Prosa. In: TODOROV, Tzvetan (org.). TEORIA da literatura: textos dos formalistas russos. São Paulo, SP: UNESP, 2013.

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GUIMARÃES, H. de S.; CAMILO, V. Introdução ao conto romântico. In: GUIMARÃES, H. de S.; CAMILO, V. (org.). O sino e o relógio: uma antologia do conto romântico brasileiro. São Paulo: Carambaia, 2020.

LOWE, E. Entrevista com Murilo Rubião. Revista Escrita, nº 29, pp. 24-33, 1979.

POE, E. A. A Filosofia da Composição. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.

POE, E. A. Poemas e Ensaios / Edgar Allan Poe. 3. ed. revista. São Paulo: Globo, 1999.

ROAS, D. A ameaça do fantástico. São Paulo: Unesp, 2014.

RUBIÃO, M. Murilo Rubião, seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico e exercícios por Jorge Schwartz. São Paulo: Abril Educação, 1982.

RUBIÃO, M. Obra completa. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2010.