Feminismo e autonomia feminina no século XIX: comparação entre Aurélia, de José de Alencar, e Eloise Bridgerton, de Julia Quinn

Ana Luiza Camargo

RESUMO: O presente artigo pretende investigar, de modo comparativo, as personagens Aurélia Camargo, de José de Alencar, e Eloise Bridgerton, de Julia Quinn, personagens conhecidas por desafiar, em busca de autonomia e independência, as normas sociais da sua época. Busca-se entender os pontos de convergência e divergência entre elas, principalmente pensando na inquestionável influência do contexto de criação de cada uma delas, uma vez que a personagem do escritor brasileiro José de Alencar foi desenvolvida no século XIX, enquanto a da escritora norte-americana é uma tentativa do contemporâneo século XXI de representar o contexto social do século XIX.

Palavras-chave: Eloise Bridgerton; Aurélia Camargo; Senhora; Bridgerton.

ABSTRACT: This paper aims to investigate, in a comparative way, the characters Aurélia Camargo, by José de Alencar, and Eloise Bridgerton, by Julia Quinn, both known for challenging,looking for their autonomy and independence, the social rules of their time. The study seeks to understand the points of convergence and divergence between them, particularly considering the undeniable influence of the context in which each was created, given that the Brazilian author’s character was developed in the 19th century, while the American writer’s character is a contemporary 21st-century attempt to represent the social context of the 19th century.

Keywords: Eloise Bridgerton; Aurélia Camargo; Senhora; Bridgerton.

1. Introdução

São os personagens os responsáveis pelo desenvolvimento e desempenho dos enredos em que estão inseridos (Gancho, 2001, p. 10). Sendo eles invenção do autor, cabe a este desenvolvê-los de modo que o leitor seja capaz de interpretá-los e entendê-los em toda a sua complexidade e verossimilhança, cujas ações e motivações refletem não só nas tensões da própria narrativa, mas também nas convenções sociais, por sua vez baseadas na própria intenção do autor de criticá-las e subvertê-las.

É essencial nesse desenvolvimento, especialmente em romances, a diferenciação entre personagens planos e esféricos. Para E. M. Forster (1927), personagens esféricos são aqueles capazes de surpreender: ao mesmo tempo que convencem o leitor de suas atitudes, são complexos e passíveis de evolução com o decorrer dos acontecimentos. Personagens desse tipo são reflexo da imprevisibilidade da vida real, permitindo uma maior identificação e empatia por parte dos leitores. Eles são ferramentas essenciais para que o autor explore e critique as convenções sociais dentro da narrativa, promovendo uma maior compreensão das suas intenções críticas pelo público.

José de Alencar exemplifica essas características com maestria em suas obras. A protagonista do romance Senhora, Aurélia Camargo, mostra-se complexa e ilustra bem a capacidade de surpreender e cativar o leitor: “[…] é Aurélia quem decide sua vida e a vida de grande parte das pessoas que a rodeiam” (Souza, 2017, p. 109). Por meio das ações dos personagens, em especial das ações da protagonista, é que se extrai a crítica do autor sobre a sociedade patriarcal do século XIX, de modo que Alencar inverte os papéis de homem-mulher, soberano-submissa, através de uma representação incomum dos costumes vigentes da época.

Segundo Aguiar e Costa (2011, p. 96), José de Alencar se aproxima da realidade ao empregar métodos como a análise psicológica, a definição precisa de marcos temporais e descrições detalhadas. Essa abordagem realista, além de dar profundidade e credibilidade aos personagens, permite ao leitor uma imersão mais completa na narrativa e se categoriza como um veículo importante no estabelecimento da crítica do escritor. Aurélia, com sua psique bem desenvolvida, suas convicções e seus conflitos internos, é a ferramenta principal nas mãos de Alencar para a abordagem de temas complexos como a educação tradicional, o casamento por conveniência e a moral vigente (Coutinho, 2002; Candido 1980).

De acordo com Coutinho (2002, p. 262 apud Aguiar; Costa, 2011, p. 97), “em Senhora, que é um dos romances mais bem construídos do autor, realizou Alencar uma boa crítica à educação tradicional e ao casamento por conveniência”.

Contudo, cabe a este artigo analisar se a construção da personagem feminina em outro contexto de produção traz a mesma percepção sobre esses temas. Um exemplo contemporâneo que nos interessa é Eloise Bridgerton (personagem popularizada pela série de adaptação do streaming Netflix, Bridgerton), da escritora Julia Quinn (2000). Assim como Aurélia, Eloise é compreendida como uma figura que questiona e subverte as normas de sua época. No entanto, sua ótica é distinta, diferente da que encontramos em Senhora. Na série de livros Bridgerton (2000-2006), a temática é, muitas vezes, “romantizada”, já que o seu contexto narrativo combina elementos históricos com sensibilidades modernas.

Os contextos social e histórico (externos) não são necessariamente úteis para explicar as causas diretas das ações das personagens ou os significados atribuídos pelas narrativas. Por outro lado, eles se tornam internos, intrínsecos à estrutura das histórias quando moldam a formação das figuras fictícias e a maneira como irão ser percebidas pelos leitores (Candido, 2006, p. 83). Sendo assim, procuramos levar em consideração a distância de mais de um século entre as criações das duas personagens escolhidas, oferecendo perspectivas e abordagens diferentes sobre temas como feminismo, mercantilização dos casamentos e autonomia feminina.

O objetivo deste artigo é analisar e comparar os mecanismos e fatores que colaboram para a construção das personagens em suas respectivas narrativas e contextos, assim como as prováveis percepções dos leitores sobre a independência e autonomia de ambas as figuras, na medida em que é a partir dessas considerações que a intenção crítica dos autores se concretiza ou não.

2. A personagem Aurélia, de Alencar

O romance de José de Alencar, dividido em quatro partes que condizem com as etapas de um casamento arranjado, comparando-o de maneira crítica com uma compra (preço, quitação, posse e resgate), tem sua temática situada nos costumes da sociedade carioca do século XIX, a qual o autor pertencia.

A protagonista, Aurélia Camargo, é descrita pelo narrador observador como uma bela, mas ainda assim esperta, jovem mulher. Aurélia é mostrada ao leitor como alguém de personalidade, posicionamentos fortes, irônica, sarcástica por algumas vezes, consciente de si mesma, mas um tanto melancólica: “[…] no íntimo sentia-se profundamente humilhada pensando que para toda essa gente que a cercava, ela, a sua pessoa, não merecia uma só das bajulações que tributavam a cada um de seus mil contos de réis” (Alencar, 2014, p. 10).

Protagoniza o romance também o dinheiro, motivo pelo qual toda a trama se desenvolve, representando a corrupção social. É por meio das noções de riqueza e do dinheiro propriamente dito que ocorre a principal virada de jogo: algo que usualmente servia como uma forma de opressão social (dotes matrimoniais), vira poder e escolha, mudando o cenário de “mercantilização feminina” ao qual a personagem estava fadada desde o seu nascimento.

Quando Aurélia ganha sua inesperada herança, mais do que estabilidade financeira, ela recebe, de certo modo, sua independência, bem como poder e influência. É instigante a inversão de papeis sociais pela qual a personagem passa, e é admirável tal enredo de Alencar. Pela herança, a “Senhora” que dá título ao livro tem a possibilidade de decidir o seu futuro, de conseguir o que deseja: a felicidade e a liberdade de se casar com alguém que ela mesma escolheu.

A escolha da personagem é seu antigo amor, Fernando Seixas, que já havia sido seu, mas que, por pressão socioeconômica, a trocou por um futuro mais certeiro, por um casamento com uma mulher de melhor posição social. No entanto, com a proposta anônima de um dote generoso, Aurélia consegue recuperar Seixas. Mas a história não acaba por aí, e o plano da personagem ainda estava só no começo.

O plano de Aurélia ganha forma mais concreta a partir da “Quitação”, quando ela assume a posição de dona de seu marido, colocando-o no lugar de pertence comprado, motivada pela raiva de seu abandono anterior.

Além disso, creio que, nessa segunda parte, algo que acontece de grande importância é a introdução do leitor à história dos pais de Aurélia e à vida da moça antes de conhecer Seixas. A visão desromantizada do mundo e a consciência dos desafios nele intrínsecos, por parte da personagem, são resultantes, em grande parte, do exemplo familiar que possui. A trágica história de amor entre Emília e Pedro Camargo nos é revelada e podemos tecer uma comparação com a relação de Aurélia e Fernando, ambos amores interrompidos em determinado momento por questões externas e incontroláveis pelas partes masculinas e de cunho financeiro. A complexidade da personagem de Alencar é aos poucos desenvolvida e perceptível aos leitores, que criam compaixão por ela e passam a compreender tanto as motivações de seu “contrato” de casamento como o medo de ter o mesmo fim que a mãe e sua personalidade construída a partir do exemplo matriarcal, mulher forte, independente e decidida.

A “vingança”, por assim dizer, da personagem principal, acarreta uma evolução pessoal em Seixas, que, com o tempo, deixa sua ambição financeira de lado, assim como sua crise emocional interna que misturava vergonha, insegurança, humilhação e amor duvidoso, após alguns desentendimentos, e se transformam em admiração e amor genuíno, se é que podemos assim dizer.

Aurélia demonstra uma base bastante sólida para suas ações em relação ao amado. Mesmo após o abandono e enquanto seu plano estava em prática, ficou claro, no decorrer do enredo, que a mulher ainda nutria fortes sentimentos pelo escritor. No entanto, ela precisava testar o caráter dele, dando-lhe uma segunda chance para verificar a integridade de seus sentimentos, se ele poderia amá-la sem influência do passado, amá-la pelo que é agora.

Tratando-o com certo desdém e superioridade, Aurélia tem sucesso em seu plano. Fernando e ela, ao fim da última parte, acabam em uma relação respeitosa de amor mútuo. Nessa última parte, o dinheiro, como protagonista, finaliza seu papel. Na tentativa de se “alforriar”, Seixas paga a Aurélia o que lhe devia como preço de sua liberdade. Aurélia aceita, mas propõe ao amado que retomem seu laço como antigamente, que se esqueçam de todo o incidente relacionado ao casamento comprado. Por um lado, temos o orgulho sendo deixado de lado e, por outro, redenção, pois a ideia de casamento passa de humilhação a uma questão de orgulho e se transforma, ao fim, em puro amor.

3. A personagem Eloise, de Quinn

O romance de época contemporâneo, por sua vez, faz parte da série de livros que conta a história de amor de cada um dos filhos da família Bridgerton, família da alta sociedade londrina no século XIX. Os oito irmãos (Anthony, Benedict, Colin, Daphne, Eloise, Francesca, Hyacinth e Gregory) foram criados principalmente pela mãe, viúva com ótimas condições financeiras e reconhecimento social, graças ao título de “visconde” que possuía o seu finado esposo.

O dinheiro, diferente do que observamos em Senhora, não ocupa um papel central na trama de Para Sir. Phillip, com Amor, quinto livro da série escrita por Quinn, no qual Eloise é protagonista. Assim como nos demais volumes, o dinheiro aqui serve apenas de plano de fundo para o desenvolvimento do enredo. Ele condiciona as ações e privilégios de Eloise, evidentemente, mas não é ele quem move a história.

Eloise, em Para Sir. Phillip, com Amor, mantém sua personalidade (construída ao longo dos livros anteriores), ainda que seus traços “feministas” estigmatizados como mais radicais esmoreçam, uma vez que a personagem passou por amadurecimento e está agora em uma situação diferente, a preocupação em se casar e não ficar sozinha se faz presente por uma primeira vez.

A Bridgerton tem algo que seria pouco comum para garotas do seu século, a vontade de seguir estudando em um ensino superior, o que era impossível já que era algo restringido apenas para o sexo masculino. Além disso, a menina de personalidade forte, às vezes arrogante, se mostra independente na medida em que argumenta não estar interessada em casar-se: “Eloise tem quase 21 anos, e, embora tenha recebido vários pedidos, não demonstrou nenhuma inclinação em se casar” (Quinn, 2014, p. 67). Eloise é “fora da curva”, não segue as expectativas sociais da época, que previam que as mulheres deveriam almejar um casamento e a vida de esposa que ele demandava na época.

Por vezes, parece-me que, se a história se passasse no presente século XXI, Eloise seria chamada, quem sabe, de nerd, a típica jovem que se mostra desinteressada no amor e ambiciosa pelo conhecimento, personagem extremamente recorrente nos filmes/romances da atualidade[1]. Talvez o que diferencie a Bridgerton dessa fórmula de personagem-tipo seja o seu posicionamento forte em relação à defesa de direitos das mulheres, como o de estudo superior e não obrigação para o casamento.

Aos vinte e oito anos e sem um marido ou com um potencial casamento em vista, o peso que carrega de ser uma “solteirona” para a sociedade parece cair sobre os ombros de Eloise, que no quinto livro de Os Bridgertons encontra seu protagonismo. A jovem mulher sempre foi mostrada ao leitor como alguém que recusava a obrigação das mulheres pela busca de um esposo, Eloise entediava-se nesse caminho forçado que via as demais jovens seguindo. A construção da personagem não chega a ser descontínua ou aleatória, mas sim diferente da construção da intensidade revolucionária de Aurélia, em Senhora.

Eloise passa a trocar cartas com o recém-viúvo de sua prima, inicialmente para lhe prestar condolências, mas a relação dos dois evolui a algo diferente quando Phillip Crane confessa à garota para quem escreve estar interessado em torná-la sua esposa. O fato é que Sir. Crane necessitava de uma figura feminina materna para seu casal de filhos, principalmente, e Eloise, esgotada das expectativas da sociedade, e insegura com as suas escolhas no passado, via em Crane um potencial bom companheiro, se não fosse por um possível amor, que fosse uma relação de respeito mútuo e parceria. Uma espécie de “mutualismo” com um homem com quem conversava há um ano e que imaginava ser uma boa pessoa parecia ser, definitivamente, a opção mais apropriada e segura para fugir da pressão e até ter um pouco de emoção, mantendo sua dignidade e fazendo, ao mesmo tempo, uma escolha de forma autônoma, como sempre desejou.

Chegando sozinha na casa do conhecido, diferente do que esperava, ela encontra um homem distante e mal-encarado. As primeiras interações com ele a decepcionam, e Phillip, que esperava uma mulher que pudesse ser submissa como as demais, de certa forma, encontra Eloise como já a conhecemos. Com o passar da convivência, a mulher se vê conectada com as crianças, cuja existência ela desconhecia anteriormente, e passa a ver Phillip de outra maneira, já que o baronete vai se mostrando para ela além da fachada rude anterior.

Apesar das divergências e dos desentendimentos, ambos aprendem a conviver e superam seus respectivos traumas e inseguranças, e tornam-se um casal legítimo, que mostram se amar e respeitar. O amor se torna capaz para a jovem que desacreditava ser merecedora dele e incapaz de encontrar alguém especial: “Eloise afirmava não ter encontrado a pessoa certa” (Quinn, 2014, p. 23).

4. Comparando as personagens

Aurélia e Eloise compartilham da essência e espírito de independência, a “Senhora de si” assume essa posição independente quando recebe sua herança e passa a tomar decisões sobre sua vida e futuro sozinha, invertendo, inclusive, os papéis de gênero vigentes. A Bridgerton busca o mesmo, decidir ela mesma o seu futuro e o que realmente faz, rejeitando, assim, as convenções sociais de casório. Eloise revolta-se com a ideia de que o objetivo principal de toda a vida de uma mulher se centre no casamento, e mostra-se encantada com as possibilidades de avanço pessoal pela educação e conhecimento, assim como Aurélia que, ao tratar seu casamento com uma transação comercial, enquanto expõe a mercantilização dos casamentos, subverte as regras sociais a respeito da subordinação feminina e casamentos arranjados.

O dinheiro e a personalidade forte são instrumentos usados para a criação dessas personagens que se convergem. O dinheiro é a parte fria de Senhora, enquanto o mesmo dinheiro é possibilidade e privilégio para Eloise. Aurélia também passa a ser capaz de tomar suas decisões a partir do momento em que adquire dinheiro, é evidente, mas diferente da Bridgerton, a qual nasceu em “berço de ouro”. Aurélia “sentiu na pele”, com a sua condição econômica anterior, o suficiente para se tornar consciente do poder do dinheiro, tendo mais consciência de classe que Eloise talvez.

As jovens feministas liberais, acima de tudo, expõem as injustiças (principalmente Eloise) e têm consciência de que casar apresenta, também, importância social e econômica na sociedade na qual estavam inseridas, fato esse que por si só já representa uma construção fora da curva e um pensamento chocante para a época. Não quero dizer que as personagens femininas que não seguem esse caminho ou não demonstram sua opinião estejam erradas, talvez elas realmente não vejam problema na submissão do casamento já que nunca ninguém lhes disse que parecia errado, talvez procurar um esposo se trate de um mecanismo de sobrevivência para algumas, até para aquelas que não falam suas opiniões, afinal, quem as pode julgar? Demanda coragem e até sorte de se revelar como defensora da luta feminina. Sem o dinheiro e os privilégios de estar em uma elite, é difícil imaginar um cenário em que Eloise ou até Aurélia teriam conseguido representar tais figuras de desejos independentes.

Aurélia e a imagem revolucionária que representa, e Eloise com seu espírito barulhento, rebelde e questionador, ambas no século XIX (mesmo que uma delas tenha sido construída no século XXI), se diferem de algumas outras personagens, especialmente as escritas no século XVIII, também pelo fim de suas histórias. A partir do que é exposto por Vasconcelos e Espínola, no século XVIII, as personagens femininas eram punidas pelo enredo por suas atitudes ousadas (Vasconcelos; Espínola, 2021).

Complementando a análise, é possível observar como as figuras femininas que desafiam as convenções sociais eram compreendidas na época, conforme o que afirma Simone de Beauvoir (1970, p. 234): “Ela contesta a moral e a sociedade; ela é má como o Outro, como a Natureza rebelde, como ‘a mulher má’”.

De certa forma, o desfecho das duas personalidades é também semelhante, a reconciliação e o final amoroso com os pares acontece. Aurélia com Fernando e Eloise com Phillip terminam suas jornadas seguindo seus planos no fim das contas, a escolha autônoma das figuras femininas as leva para relações inicialmente conturbadas, mas que terminam em respeito mútuo e amor.

Aurélia mostrava ao leitor o desejo de casar desde quase o início do romance, motivada pela sua vingança, ela se mostrou determinada a realizá-lo. Talvez a raiz da sua decisão não tenha sido o amor, mas sim a revanche de uma mulher abandonada que acabou tendo seus planos saindo fora do controle e retomando o amor inicial no fim. Da mesma forma que Eloise encontrou no casamento, realizado sem pressa, espaço para ser a mulher autônoma que precisava ser.

Porventura, o leitor questione se esses desfechos condizem com toda a construção das figuras independentes criadas durante o enredo. Ao fim, as personagens parecem se render ao amor romântico e abandonar, em determinada medida, suas respectivas lutas pela autonomia; talvez não passe de um final romantizado e idealizado, conforme as expectativas tradicionais. No entanto, vale ressaltar que as personagens, ao terminarem suas jornadas dessa maneira, representam a não uniformidade do feminismo e mostram que se pode lutar pela independência e direitos femininos e, ainda assim, encontrar um companheiro. Suas escolhas conscientes e suas particularidades as levam para um final de liberdade, de qualquer maneira.

Para tanto, as relações e a moral dos romances são ligeiramente diferentes, principalmente no quesito da natureza das relações. O peso da história de Aurélia e Seixas é fortemente marcado pela inversão de papéis entre homem e mulher e a complexidade da espécie de “jogo” de controle emocional entre os dois, enquanto que as tensões entre a Bridgerton e seu baronete não são tão intensas, se concentrando mais nas diferenças de personalidade e na construção posterior de uma parceria e não em conflitos de poder.

As diferenças apontadas de relações, poder e motivações estão, evidentemente, enraizadas nos diferentes contextos de produção das obras. Enquanto uma obra critica o capitalismo, principalmente, a outra tem suas motivações de escrita nas próprias demandas e expectativas da massa capitalista. Senhora surge no século XIX como uma forte exposição crítica do próprio José de Alencar sobre as morais da época, o papel e os direitos das mulheres e os casamentos arranjados, ainda que dentro dos limites do que seria aceitável em um romance da época, fato que pode explicar seu final. Os Bridgertons como um todo e suas subdivisões me parecem muito mais moldados conforme as expectativas do público da contemporaneidade do que qualquer coisa, público que ao mesmo tempo se atrai por personagens fortes como Eloise, mas que é acomodado com os costumeiros “finais felizes” totalmente romantizados. Eloise Bridgerton, apesar de sua força e determinação, talvez tenha sido a cota de feminismo para chamar determinado público da modernidade.

Apesar disso, a representatividade de personagens mulheres que se mostram dispostas a lutar e defender a causa feminina continua a ser essencial para a visibilidade da causa nos grandes veículos de massa, ainda que, às vezes, não pareçam ser o suficiente para representar a totalidade, continuam a servir de inspiração.

5. Considerações finais

A comparação entre Aurélia Camargo, de José de Alencar, e Eloise Bridgerton, de Julia Quinn, revela que, apesar dos diferentes contextos literários e até históricos, as personagens possuem características semelhantes enquanto mulheres que, numa sociedade patriarcal que as oprime e pressiona, buscam autonomia de suas escolhas e futuro. Embora a intenção do autor ao escrever uma obra nem sempre nos leve a lugares de grande significado (Eagleton, 2006, p. 105-106) e mesmo reconhecendo as diferenças notáveis proporcionadas pelos contextos históricos e sociais de tais obras, é evidente que ambas as personagens se destacam como figuras inspiradoras e motivadoras para seus respectivos públicos, sejam esses de massa ou não. Ao representar a história dessas personagens em suas respectivas obras, os autores não refletem exclusivamente as lutas individuais dessas mulheres, mas também contribuem para uma discussão muito maior sobre a autonomia feminina.

Concluímos, diante do exposto, que a representação de tais personagens, independente das motivações para sua construção, tem sua importância na medida em que traz visibilidade para a causa feminista para diferentes leitores de diferentes esferas da literatura.

Referências

AGUIAR, Hellen Cristina Silva de; COSTA, Sueli Silva Gorricho. A construção da personagem Aurélia Camargo, na obra Senhora de José de Alencar. Nucleus, [S.L.], v. 8, n. 1, p. 91-111, 29 abr. 2011. Fundação Educacional de Ituverava. Disponível em: http://dx.doi.org/10.3738/1982.2278.459. Acesso em: 11 nov. 2024.

ALENCAR, José de. Senhora. São Paulo: Melhoramentos, 2014.

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: fatos e mitos. Trad. Sérgio Milliet. 4ª ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970. Disponível em: https://joaocamillopenna.wordpress.com/wp-content/uploads/2018/03/beauvoir-o-segundo-sexo-volume-11.pdf. Acesso em: 12 nov. 2024.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006 [1980]. 199 p.

EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

FORSTER, E. M. Aspects of the novel. Nova Iorque: Harcourt, 1927. Disponível em: https://www.gutenberg.org/cache/epub/70492/pg70492-images.html. Acesso em: 18 jul. 2024.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 7ª ed. São Paulo: Ática, 2001.

QUINN, Julia. Os Segredos de Colin Bridgerton. Trad. Claudia Guimarães. São Paulo: Arqueiro, 2014.

QUINN, Julia. Para Sir. Phillip, com Amor. Trad. Viviane Diniz. São Paulo: Arqueiro, 2015.

QUINN, Julia. Um Perfeito Cavalheiro. Trad. Cassia Zanon. São Paulo: Arqueiro, 2014.

SOUZA, Vanessa Fátima Moraes de. A presença do patriarcalismo na literatura brasileira: análise comparativa entre Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e Senhora, de José de Alencar. Entrelinhas, [S.L.], v. 11, n. 1, p. 100-116, 14 jun. 2017. [S.I]. UNISINOS – Universidade do Vale do Rio Dos Sinos. Disponível em: http://dx.doi.org/10.4013/entr.2017.11.1.07. Acesso em: 11 nov. 2024.

VASCONCELOS, Gizélia Maria de; ESPÍNOLA, Melissa Rhênia Barbosa. Mudanças sociais e representatividade feminina: uma análise dos crimes contra a honra e da mulher enquanto agente de direitos a luz de “Os bridgertons”, de Julia Quinn. Porto Alegre: Edipucrs, 2021. 11 p. In: Seminário de Ciências Criminais e Literatura, 1., 2021, Porto Alegre. Disponível em: https://editora.pucrs.br/edipucrs/acessolivre/anais/1617/assets/edicoes/2021/arquivos/6.pdf. Acesso em: 26 ago. 2024.

[1]Hermione Granger (Harry Potter) e Alex Dunphy (Modern Family) exemplificam a figura feminina de nerd que prioriza os estudos e o conhecimento em relação a interesses amorosos.