A fazenda e a cidade: notas para uma leitura de “A Moratória”, de Jorge Andrade

Marcel Vieira Barreto Silva

1 A Moratória e o drama moderno no Brasil

A entrada no Brasil das experiências do drama moderno – que há muito já existia na Europa e nos Estados Unidos – se dá, inicialmente, através da construção de um teatro capaz de receber tais espetáculos. Fruto da consolidação de uma burguesia com vontade e capacidade de patrocinar um teatro de nível internacional, o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), fundado em 1948, foi a primeira empresa que demonstrou a viabilidade econômica de um teatro moderno no Brasil. Iná Camargo Costa vai explicar essa conjuntura:

Quando o teatro moderno finalmente começou a ser produzido por aqui, o país já dava os primeiros sinais (econômicos e sociais) de que a estratégia de retomada do crescimento imposta pelo capitalismo tardio fora adequada – começávamos a produzir bens de consumo! –, o que significa, nos estreitos limites da produção cultural, a proliferação de uma burguesia com anseios cosmopolitas em condições de patrocinar (financiando e consumindo) um teatro de padrão internacional. [1]

Importando as experiências modernas para o Brasil, nas figuras de encenadores, estes vindos principalmente da Itália, e de textos estrangeiros, onde se destacavam autores americanos como Tennessee Williams e Arthur Miller, o TBC era moderno apenas em termos formais. Ou seja, esse sistema, ainda em formação, contava com um local de apresentação dos espetáculos (o próprio TBC), um público que os assistia (a burguesia patrocinadora e consumidora) e um texto dramático que se vinculava às tendências modernas; entretanto, os textos encenados, em sua maioria, eram importados, e a ausência de textos nacionais de qualidade, que retratassem a perspectiva do país, fazia com que esse sistema não se consolidasse. Ou seja, entre 1948 e 1955 (data da estréia de A Moratória), existia no Brasil teatro moderno – personificado pelo TBC e pelos textos nele encenados –, mas não havia a produção de drama moderno brasileiro.

Sem desprezar as experiências anteriores, como os textos de Nelson Rodrigues, Abílio Pereira de Almeida e outros, o primeiro similar nacional de qualidade que incorpora as tendências da dramaturgia moderna à perspectiva de retratar a realidade nacional surge apenas em 1955, com A Moratória, de Jorge Andrade, encenado no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo. Enquanto no Nordeste do país, o Romance de 30 assimilou as formas modernas do romance e as utilizou para retratar os problemas da região, no Sul, para usar a expressão de Gilda de Mello e Souza, somente com A Moratória é que esse processo vai se realizar, neste caso, em forma dramática. Em texto publicado em 1956, essa ensaísta afirma que “a tomada de consciência da crise através da literatura só começa a efetuar-se agora, tardiamente, e num gênero como o teatro, muito pouco vinculado à nossa tradição”. [2]

Assim, A Moratória ajuda a abrir espaço para os autores nacionais, redundando na encenação de Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, em 1958, no teatro de Arena de São Paulo, quando se consolidará o teatro e a dramaturgia modernos no Brasil. Daí por diante, até o Golpe Militar de 1964, o que se dará é a continuação desse processo, com a encenação de peças como Pedreira das Almas (1958) e Vereda da Salvação (1964), de Jorge Andrade; Gimba (1959), de Gianfrancesco Guarnieri; O pagador de promessas (1960), de Dias Gomes, entre outros, possibilitando as discussões sobre a representação das classes subalternas no teatro brasileiro.

Este artigo, portanto, tenciona apontar alguns caminhos para uma leitura da peça de Jorge Andrade, enfocando como se processa, em A Moratória, a tensa relação entre o campo e a cidade. Essa relação se configura numa inadaptação da família de Joaquim, antigo fazendeiro paulista que perdeu suas terras em decorrência da crise do café de 1929, à nova vida na cidade, espaço em que suas concepções de mundo são confrontadas com uma nova ordem, na qual o nome familiar não representa mais nada. Os espaços da cidade e da fazenda são apresentados no texto (ou no palco) concomitantemente, o primeiro mostrando a suntuosidade da antiga vida no campo, e o segundo, a precariedade da vida na cidade. O elo entre esses dois planos é a máquina de costura de Lucília, filha de Joaquim, esteio financeiro da família, em meio às adversidades da nova vida.

2 Quando ainda somos o que fomos…

“Há homens que não sabem, não podem viver fora de seu meio”. [3] Quando, com essas palavras, a personagem Helena explica a sua filha, Lucília, a condição do patriarca Joaquim, na verdade ela não diz apenas da angústia de um homem subtraído de sua terra, mas também revela a substância artística que acompanha toda a obra do dramaturgo Jorge Andrade, no volume de peças que compõe o livro Marta, a Árvore e o Relógio. Aliás, o conjunto dessas dez peças, que foram escritas em diferentes momentos e organizadas sem obedecer à ordem temporal de feitura, forma um panorama memorialístico do ciclo do café na região Sudeste. “Certamente, Jorge Andrade constrói uma dramaturgia da memória, daí a permanente mescla do tempo, princípio operativo inerentemente memorialístico”. [4]

O dramaturgo, nascido na cidade de Barretos, no interior de São Paulo, é considerado um dos criadores da moderna tradição teatral brasileira. Oriundo de uma família ligada ao universo cafeeiro, neto e filho de grandes proprietários rurais, que foram devastados pelos efeitos do crack da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929, Jorge Andrade pôs em seus textos toda a bagagem de histórias e experiências do homem expulso de sua terra pelas pressões do mundo. Na realidade, é a dramaturgia não só de um homem atormentado, mas também do povo de uma região, cujas raízes estão fincadas no passado e cujo futuro foi abruptamente cerceado, ou seja, um teatro que “(…) afigura-se como um grande julgamento que recorre à exumação para compreender, defender e acusar; é um constante prestar de contas, é libertação e redenção do passado em prol do porvir”. [5]

Escrita em 1954 e encenada no ano seguinte, no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo, A Moratória conta a história de uma família massacrada pela perda de suas terras e, conseqüentemente, de suas raízes. “Ainda somos o que fomos”, esbraveja o pai da família, Joaquim, enquanto espera, inutilmente, o perdão de sua dívida para reaver a fazenda tomada, mote propulsor do drama.

Ambientada em duas linhas temporais – a do presente, em 1932, situada na cidade, e a do passado, em 1929, ainda na fazenda – a peça, como assegura Décio de Almeida Prado, evoca o fim do processo social de divisão e perda das fazendas, com a ascensão de novas classes sociais, resultado de dois fatos históricos relevantes: a Crise do café e a Revolução de 30. [6] Assim, a peça representa, como o conjunto da obra de Jorge Andrade, não apenas as elucubrações de um saudosista desiludido com o tempo e o processo histórico, mas também a angústia por que passaram muitas pessoas vítimas desse processo. Tais pessoas formam, aliás, o substrato da obra deste dramaturgo. São seu povo e seus personagens, cujas histórias devem ser contadas e registradas, para o entendimento de uma época.

A dicotomia entre “cidade” e “campo” é expressa no texto em várias cenas e falas dos personagens. Desde a disposição do palco, que caracteriza os ambientes, quer a partir do luxo do campo, quer da precariedade da cidade, até às referências dos personagens à vida nesses dois ambientes, aparece uma disfunção no tocante à percepção da família para a mudança histórica que ela enfrenta. Enquanto no campo as relações entre os indivíduos se fiam através da palavra empenhada e do nome de suas famílias, na cidade a importância desse nome é diminuída bruscamente. Isso vai se tornar a problemática central do texto, (doravante referido, nas sua transcrições diretas, pela iniciais AM), de modo que, durante a peça, várias vezes Joaquim invocará o status decadente de seu nome familiar, como forma de ampliar um valor que não mais existe.

JOAQUIM: Entre dois homens de bem, a palavra empenhada basta.
HELENA: Vender café a prazo nesta situação é perigoso, Quim!
JOAQUIM: Não há perigo nenhum. As coisas não são feitas assim como você pensa. O que podem me fazer? Tenho os meus direitos. Quando receber o dinheiro do Arlindo, pago os débitos e pronto. (AM, 127).

Na cidade, o que move as relações sociais é, antes de tudo, o capital. Não importa quem compra, importa é que se vende. Para a família, que apesar de já morar na cidade ainda tem os valores do campo, o trabalho de Lucília, como costureira, é a manutenção das condições mínimas de sobrevivência. Isso gera desconforto em Joaquim, pois, de acordo com suas concepções de mundo, apesar de terem perdido tudo, eles ainda possuem o nome, signo da instituição familiar que começara a ruir no êxodo para a cidade. Assim, o fato de Lucília costurar para gente com nome “inferior” ao dela, revela o embate entre duas concepções de mundo divergentes: a do “nome” e a do “trabalho”.

JOAQUIM: É exatamente o que não suporto.
LUCÍLIA: O quê?
JOAQUIM: Ver você costurando para essa gente. Gente que não merecia nem limpar nossos sapatos!
LUCÍLIA: Não reparo neles. Não sei quem são, nem me interessa. Trabalho, apenas. (Por um momento, fica retesada) Por enquanto, não há outro caminho.
JOAQUIM: Gentinha! Só têm dinheiro…
LUCÍLIA: (Seca) É o que não temos mais. (AM, 124).

Outro fato curioso da relação entre o campo e a cidade é a ligação da personagem Helena com a igreja. Vejamos: na primeira cena do Primeiro Ato, conversam, no plano do presente, Lucília e Joaquim, e este pergunta à filha onde está sua esposa. Ela responde que a mãe foi à igreja. Simultaneamente, o plano do passado se acende, como podemos conferir na rubrica:

(Pausa. Joaquim olha para os quadros, no Primeiro Plano. Helena aparece no Segundo Plano; encaminha-se para os quadros, ajoelha-se e começa a rezar).
JOAQUIM: Era diante desses quadros que sua mãe costumava rezar lá na fazenda. (Pausa). Foram sua igreja durante trinta e cinco anos. (AM, 124-5).

Noutro momento, quando ainda estão na fazenda, Helena e Lucília se prostram diante das imagens dos santos, a fim de rezar a ladainha de Nossa Senhora, para que os problemas da crise na fazenda sejam bem resolvidos. Vemos, assim, que enquanto estão na fazenda, os quadros dos santos são a “igreja” de Helena, representando o seu afastamento da cidade e do convívio social. Mudando a família de espaço, Helena comumente passa horas fora de casa, na igreja. A fazenda produz sua própria subsistência até em termos religiosos, marcando a forte agregação do núcleo familiar, enquanto que na cidade Helena passará a buscar auxílio religioso fora do espaço da casa, marcando assim, notadamente, a desagregação daquele núcleo. Isso é igualmente perceptível em outra cena em que Helena conversa com Lucília sobre a possibilidade de Tia Elvira, irmã de Joaquim, que conseguiu “sobreviver” aos eventos de 1929, arrematar a fazenda, ficando claro o quanto essa família, principalmente Joaquim, está vinculada à sua terra e às suas tradições.

HELENA: Se seu tio arrematar a fazenda, o Quim poderá continuar, trabalhar, morrer em suas terras. Há homens que não sabem, não podem viver fora de seu meio. Seu pai sempre morou na fazenda. Para nós, o mundo se resume nisto. Toda a nossa vida está aqui.(Joaquim sai no Primeiro Plano, trazendo um embornal, cartuchos, buzina de chifre, pios de passarinho, etc.). E não se esqueça, Lucília, de que seu irmão não tem profissão, não estudou. Em que condições iríamos viver?
LUCÍLIA: E eu? Por acaso não conto para nada?
HELENA: Você é mulher!
LUCÍLIA: Posso ajudar, também.
HELENA: Viveríamos, mas não é só isto que importa. A gente nasce, vive e trabalha na terra. Não aprendemos a fazer outra coisa, nem a viver de outra maneira. Se tivéssemos que sair, não sei o que poderia acontecer. (AM, 151-2).

Uma discussão entre Joaquim e Marcelo, no meio do Segundo Ato, estando eles no plano do presente, é bastante significativa acerca do conflito entre concepções de mundo distintas – enquanto Joaquim ainda tem raízes fincadas na fazenda, seu filho, Marcelo, começa a perceber as diferenças do universo que agora habitam. Com efeito, o pai critica Marcelo pelo fato de ele não honrar o nome que tem, mas este busca expor que o nome não mais interessa, naquele contexto. É que o grande problema da família é o apego ao passado, quando ele não mais lhes pertence e o presente é um mundo totalmente estranho, onde as leis são outras e as coisas funcionam diferentemente.

MARCELO: (Pausa) Papai! Há dias fui à Casa Confiança comprar um par de sapatos. Pedi para pagar no fim do mês e o dono me perguntou: “Quem é o senhor?” “Sou o filho de seu Quim”, respondi. Sabe o que ele me perguntou ainda? “E quem é seu Quim?”
JOAQUIM: (Empertiga-se) Ele se atreveu?!
MARCELO: Vivemos num mundo diferente, onde o nome não conta mais… E nós só temos o nome. (AM, 159).

Um pouco mais à frente, ainda nessa discussão, Marcelo tenta argumentar porque não se adapta à vida de operário a que está submetido, devido à necessidade de trabalhar para sustentar a família.

MARCELO: O senhor finge não compreender o que digo. Não me adapto a esta ordem de coisas.
JOAQUIM: Servia para ajudar sua irmã até voltarmos para a fazenda. Mas é melhor ficar na cama do que enfrentar a vida.
MARCELO: O senhor me ensinou?
JOAQUIM: Mostrei o caminho. Fiz minha obrigação.
MARCELO: O caminho. É exatamente o que estou querendo provar: que o senhor mostrou o caminho errado. O caminho que para nós, principalmente para nós, não tem mais sentido. O senhor não me educou para ser operário.
JOAQUIM: Então, por que não estudou? Não foi por falta de falar.
MARCELO: A situação seria a mesma. Não se trata disto. O que importa é aceitar ou não o presente; esquecer, saber esquecer. (Pausa) Papai! O senhor não compreende que depois de se ter vivido solto, no meio do campo; depois de se ter conhecido uma outra segurança, não é possível ficar preso o dia inteiro dentro de um salão com o chão sujo de sangue e receber ordens de gente que… que… Não agüentava aquilo. Estava farto. Era lá que a saudade, a consciência do que fomos, mais me oprimia. (AM, 159).

No fim da discussão, Marcelo explica por que sua família está, definitivamente, inadaptada com a nova ordem do mundo e das coisas. Isso mostra que, contraditoriamente, apesar de estar durante muito tempo “dormindo”, Marcelo foi o primeiro a “acordar” para o entendimento de que o modo de vida que a fazenda trazia consigo, as leis sociais que regiam as relações, agora não tinham mais valor algum. Isso se justifica por dois fatos: na cidade, Marcelo era o integrante da família que mais entrava em contato com a sua realidade, já que ele trabalhava fora de casa, no frigorífico, e via como agora as pessoas se portavam diante do mundo. Além disso, ao discutir com Joaquim, Marcelo já sabia que a moratória da dívida (cujo pedido é o centro de tensão na peça e a última esperança de Joaquim de retomar a fazenda de seus antepassados) havia sido negada e a família perdera de vez a fazenda. Agora, por não compreender as mudanças de seu tempo, estaria a família apenas morrendo devagar.

MARCELO: Reconheço, sou um fraco. Não assumi a responsabilidade. E o senhor? O senhor só pensa na sua fazenda, no seu processo, nos seus direitos, no seu nome. Enquanto pensa em si mesmo, na sua honra, não pode sentir o que sinto. O senhor não sai à rua para saber o que os outros pensam de nós. O senhor finge não perceber que não fazemos mais parte de nada, que o nosso mundo está irremediavelmente destruído. Se voltássemos para a fazenda…
JOAQUIM: (Num grito) Vamos voltar!
MARCELO:… tornaríamos a perdê-la. As regras para viver são outras, regras que não compreendemos, nem aceitamos. O mundo, as pessoas, tudo! Tudo agora é diferente! Tudo mudou. Só nós é que não. Estamos apenas morrendo lentamente. Mais um pouco e ficaremos como aquele galho de jabuticabeira: secos! secos! (AM, 160-1).

Tendo já conhecimento de que Joaquim havia perdido o processo de moratória, Lucília recebe Elvira para tratar de um vestido e acabam discutindo sobre a culpa dessa sua tia na ruína do pai e a falta de compaixão que teve pelo irmão. Esse embate entre elas, bem como seu desfecho, representa uma descoberta para Lucília: enquanto Marcelo foi o primeiro a compreender as relações sociais na cidade, foi ela quem percebeu que, na nova ordem, tanto a glória quanto a miséria dependem unicamente do trabalho, e não mais do nome ou da tradição. Assim, a atitude de expulsar a tia Elvira de sua casa fez Lucília se livrar dessa tradição e das implicações que ela própria traz.

ELVIRA: (Primeiro plano) (Aparece já vestida) Antes de sair tenho uma verdade a dizer: vocês, os filhos, também não souberam perdoar. Nunca perdoaram a seu pai a pobreza em que ficaram!
LUCÍLIA: (Primeiro plano) Porque vivíamos desesperados.
ELVIRA: (Primeiro plano) Cada um tem suas razões. Se não ajudei foi porque não pude, e isto basta.
LUCÍLIA: (Primeiro plano) Pode ficar com seu dinheiro. Faça bastante caridade!
ELVIRA: (Primeiro plano) Lucília!
LUCÍLIA: (Primeiro plano) Ficamos pobres e continuaremos pobres à nossa custa. Agora saia daqui! Já esperei demais por este dia. Felizmente não moramos mais em sua casa, e devo isto ao meu trabalho. (AM, 182).

Nessa perspectiva, um grande mérito da peça é o de descobrir um novo tema para o desenvolvimento da literatura no Sudeste do país: o drama do café e suas conseqüências históricas. Sensivelmente atrasada se comparada à produzida no Nordeste, devido à consolidação do romance regionalista, a literatura do Sudeste encontra no teatro sua manifestação. [7] Além disso, “a grandeza d’ A Moratória deriva em parte de Jorge Andrade não tomar partido no conflito que descreve e permitir, de braços cruzados, que se cumpra o destino doloroso de suas personagens”. [8] No que concerne ao texto, é bastante relevante ressaltar que ele, como aponta Sábato Magaldi, “surge como um bloco homogêneo e compacto, seguro na nitidez de suas duas linhas; cheio de mérito na fusão de um tema atraente com uma forma precisa e adulta”. [9] Entretanto, apesar de representar um determinado espaço e um determinado povo, a peça não faz uma obra descritiva, nem se importa com o pitoresco. Antes de tudo, assume os valores morais da classe que representa, exprimindo-os no modo de ser e de viver de cada personagem. [10]

3 Considerações finais

Como vimos, o embate entre as concepções de mundo do campo e da cidade é representado em A Moratória, não apenas na disposição cênico-espacial-temporal, revelada no uso dos dois planos, como também na construção psicológica das personagens e nas suas ações perante a nova ordem do mundo que a cidade representa, reveladora da afamada dialética tradição/modernidade. É nos personagens mais jovens (Lucília e Marcelo) que se dará primeiramente essa percepção de que os valores representados pela fazenda não são possíveis de se retomar, principalmente porque eles são abruptamente inseridos no universo do trabalho, de onde, agora, se tirará o sustento. Os personagens mais velhos continuarão, melancolicamente, atrelados ao universo do campo – sendo essas lembranças os últimos elos com o mundo perdido.

A Moratória, como revela João Roberto Faria, apresenta um perfeito equilíbrio entre o maior aprofundamento psicológico dos personagens e o registro histórico da crise do café na década de 30. [11] No entanto, a relevância de A Moratória ainda está em representar passado e presente concomitantemente, um dialogando com o outro, com o passado funcionando, por vezes, como memória coletiva, que explica o presente.

Ao tomarmos a conclusão de Gilda de Mello e Souza, na qual ela assegura que A Moratória é a primeira obra-prima do teatro moderno brasileiro, podemos nos envolver em discussões que não valorizam a grandiosidade da obra, até porque tal assertiva não lhe assevera o mérito. Devemos nos ater, portanto, à força dramática da peça, que consegue relacionar uma “substância de expressão”, presente e viva, a uma “forma”, inovadora e extremamente eficaz.

Referências

ANDRADE, Jorge. Marta, a Árvore e o Relógio. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986.

ARANTES, Luiz Humberto Martins. Teatro da memória: história e ficção na dramaturgia de Jorge Andrade. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001.

ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Jorge Andrade: dramaturgo de São Paulo. Metrópole e Cultura: São Paulo no meio século XX. Bauru, SP: EDUSC, 2001, pp.135-88. Coleção Ciências Sociais.

COSTA, Iná Camargo. A produção tardia do teatro moderno no Brasil. Sinta o drama. Petrópolis: Vozes, 1998, pp.11-83.

FARIA, João Roberto. A dramaturgia de Jorge Andrade. O teatro na estante: estudos sobre dramaturgia brasileira e estrangeira. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 1998, pp.143-57.

MAGALDI, Sábato. Jorge Andrade. Moderna Dramaturgia Brasileira. São Paulo: Perspectiva, 1998, pp. 41-65. Estudos, 159.

PRADO, Décio de Almeida. A Moratória. ANDRADE, Jorge. Marta, a Árvore e o Relógio. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986, pp. 625-9.

______ . O teatro brasileiro moderno. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. Debates, 211.

ROSENFELD, Anatol. Visão do ciclo: estudo da obra de Jorge Andrade. O mito e o herói no moderno teatro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996, pp.101-22. Coleção Debates, 179.

SOUZA, Gilda de Mello e. Teatro ao sul. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980, pp. 109-16. Coleção O baile das quatro artes.

 

1. COSTA, A produção tardia do teatro moderno no Brasil. Sinta o drama. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 35.

2. SOUZA, Gilda de Mello e. Teatro ao Sul. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980, pp.109-10.

3. ANDRADE, Jorge. A moratória. Marta, a Árvore e o Relógio. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 151.

4. ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e Cultura: São Paulo no meio século XX. Bauru, SP: EDUSC, 2001, pp. 135-88.

5. ROSENFELD, Anatol. Visão do ciclo: estudo da obra de Jorge Andrade. O mito e o herói no moderno teatro brasileiro. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1996, pp. 101-22. Coleção Debates, 179.

6. PRADO, Décio de Almeida. A Moratória. ANDRADE, Jorge. Marta, a Árvore e o Relógio. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986, pp. 625-29.

7. Cf. SOUZA, op. cit.

8. Ibidem, p. 112.

9. MAGALDI, Sábato. Moderna Dramaturgia Brasileira. São Paulo: Perspectiva, 1998, p. 57

10. Cf. PRADO, p. 626.

11. Cf. FARIA, João Roberto. A dramaturgia de Jorge Andrade. O teatro na estante: estudos sobre dramaturgia brasileira e estrangeira. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 1998, p. 146.