O neobarroco em “Zera a Reza”, de Caetano Veloso

Leonardo Davino de Oliveira

O presente trabalho[1] tem como objetivo fazer uma leitura da letra de Zera a reza, inserida no disco Noites do Norte (2000), de Caetano Veloso, partindo da teoria do neobarroco, segundo Severo Sarduy em seu ensaio O barroco e o neobarroco. Buscaremos identificar os mecanismos que fazem desta letra uma produção neobarroca.

Zera a reza
Caetano Veloso

Vela leva a seta tesa
Rema na maré
Rima mira a terça certa
E zera a reza

Zera a reza, meu amor
Canta o pagode do nosso viver
Que a gente pode entre dor e prazer
Pagar pra ver o que pode
E o que não pode ser
A pureza desse amor
Espalha espelhos pelo carnaval
E cada cara e corpo é desigual
Sabe o que é bom e o que é mau
Chão é céu
E é seu e meu
E eu sou quem não morre nunca

Vela leva a seta tesa
Rema na maré
Rima mira a terça certa
E zera a reza

Primeira letra do disco Noites do Norte (2000), Zera a rezasurge como mais uma demonstração da arte neobarroca de Caetano Veloso, artista do seu tempo, do nosso tempo, cujas letras são, quase sempre, tidas como complicadas e de difícil entendimento, ou seja, o receptor frui a obra mas encontra dificuldades para entender a mensagem. Assim, procuramos perceber a oclusão proposital desta obra de Caetano.

O neobarroco, que segundo Chiampi (1998), é uma reciclagem do barroco histórico feita nos dias atuais, surge como característica do “fim das utopias”. Severo Sarduy (1979), em seu ensaio O barroco e o neobarroco, aponta três mecanismos de artificialização que são a base da teoria neobarroca, a saber: substituição, troca do objeto-foco por um outro que faz referência àquele; proliferação, a multiplicação de metonímias do objeto-foco através da repetição de termos e mesmo seqüências de significantes; e condensação, fusão de dois dos termos de uma cadeia de significantes, de cujo choque resulta um terceiro termo que resume semanticamente os dois primeiros.

“As palavras da letra são uma brincadeira nada rigorosa com inversões e espelhamentos” (Veloso, 2003). Esta definição feita pelo autor refere-se aos quatro primeiros versos da letra, em que os anagramas vela-leva; seta-tesa; rema-maré; rima-mira; terça-certa; sera-reza, utilizados aqui como ludismo, desviam a atenção do receptor para o texto sob a letra.

Em Zera a reza identificamos ainda a união entre “opostos” pois, citando a reza, momento sagrado em que o ser se comunica com o divino, e o pagode, momento de profanação do corpo, Caetano Veloso parodia veladamente com a letra Deus e o Diabo (1989), de sua autoria, em que o verso “O carnaval é a invenção do Diabo / que Deus abençoou” fortalece a correlação entre profano e sagrado, procedimento típico do texto barroco e aspecto recorrente na produção deste autor.

Já no início da canção propriamente dita, nos versos: “Zera a reza meu amor / canta o pagode do nosso viver” há um convite para que o receptor, evocado através da expressão “meu amor”, largue tudo, ou melhor, a reza, e saia para aproveitar a vida, que está substituída, no texto, por vela, que está passando; portanto, urge curtir o momento de confraternização e liberdade. Há aqui a intertextualidade com os versos da canção Deixa sangrar(1989), também de Caetano: “Deixa o mar ferver, deixa o sol despencar / deixa o coração bater, se despedaçar / chora depois mas agora deixa sangrar, deixa o carnaval passar”, ou seja, é preciso zerar a reza, livrar-se das convenções e extravasar os sentimentos e as emoções.

Contemporaneamente, o carnaval é uma festa de prazer feita, em grande parte, por pessoas que passam a maior parte do ano em meio a dor, pela marginalidade social imposta. É portanto “entre dor e prazer” que acontece o pagode, o samba, o carnaval. O carnaval é a maior expressão dessa dor e desse prazer citados pelo texto, é preciso aproveitar, mesmo que seja preciso “pagar pra ver”, isto é, os componentes das escolas de samba, e mesmo os “foliões” dos blocos carnavalescos, economizam durante o ano todo para poder brincar o carnaval. É importante percebermos a crítica feita pelo eu-lírico à “turistização” do carnaval institucionalizado do Rio de Janeiro, tanto quanto do carnaval de Salvador. Tal crítica já havia sido feita por Caetano, em 1977, na canção Um frevo novo (1989), a qual diz: “todo mundo na praça / manda a gente sem graça pro salão”, portanto, a festa paga restringe e divide, o que não deve ser próprio do carnaval; este, para o eu-lírico, deve ser feito na praça, na rua e para todos, pois o folião é um participante essencial para a existência do carnaval.

Segundo Bakhtin (1999), em seus estudos sobre o contexto de Rabelais, “os bufões não eram atores que desempenhavam seu papel no palco. Pelo contrário, eles continuavam sendo bufões e bobos em todas as circunstâncias da vida. Situavam-se na fronteira entre a vida e a arte”. Bakhtin (1999) observa ainda que os atores assistiam às funções do cerimonial sério, para parodiá-los. O carnaval ignora toda distinção entre atores e expectadores, pois os expectadores vivem o carnaval. Obviamente, as representações carnavalescas atuais são outras, mas ainda percebe-se esta essência do carnaval como uma “segunda vida”, principalmente para aqueles que trabalham durante o ano preparando a festa, apesar da turistização, e de se fazer hoje um carnaval com palco (Marquês de Sapucaí, Rio de Janeiro; entre outros). O folião é, ou deve ser, expectador, mas também ator, tendo o “chão”, a “praça” e a avenida como palco para o espetáculo, eis uma das intenções do eu-lírico de Zera a reza, chamar a atenção de seu destinatário para a “segunda vida”, uma vida livre das convenções.

Já a expressão “o que pode e o que não pode ser” nos remete a canção-marchinha carnavalesca de João Roberto Kelly, Cabeleira do Zezé (“Olha a cabeleira do Zezé / será que ele é / será que ele é). No carnaval, não há a preocupação com a verdade, pois é a ilusão, a possibilidade de ser o que não se pode ser na vida ordinária, uma característica fundamental dessa festa que, para Bakhtin (1999) “convertia-se na forma de que se revestia a segunda vida do povo, o qual penetrava temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade, igualdade e abundância”. No carnaval, permite-se ser o que quiser, há liberação de sentimentos e desejos reprimidos pela ética social e, principalmente, religiosa, daí os versos “A gente se embala, se embola, se embola / só pára na porta de igreja”, da canção Sangue, suor e cerveja (1989), de Caetano, mas que parecem ressoar na canção Zera a reza, apontando para a repressão religiosa imposta sobre o indivíduo.

O verso “Zera a reza meu amor” inicia a discussão feita pelo eu-lírico sobre a devoção religiosa do receptor pelo Deus das religiões instituídas. O eu-lírico sugere que o verdadeiro Deus não é este para quem o receptor presta devoção, visto que este Senhor discrimina, separando católicos, protestantes, judeus etc. O samba seria, portanto, um deus mais original devido à união proporcionada por ele entre seus “fiéis”, permitindo a estes a felicidade, a libertação dos dogmas, dos sectarismos e preconceitos. O verso “E eu sou o que não morre nunca”, que parodia com outro, “o samba não vai morrer”, da canção Desde que o samba é samba (1993), que aliás tem outro verso importante para nossa análise “O samba é pai do prazer, o samba é filho da dor”, nos atenta para o fato de que o eu-lírico incorpora o próprio samba, ele é o samba e se imortaliza como um deus.

Os versos: “A pureza desse amor espalha espelhos pelo carnaval / e cada cara e corpo é desigual / sabe o que é bom e o que é mau” apontam para a expectativa dos dias de festa que acompanham o povo durante o ano todo, haja visto, por exemplo, o trabalho das escolas de samba para apenas uma noite de apresentação. Os espelhamentos, quase anagramáticos: Espalha-espelhos e cada-cara retomam a idéia inicial do jogo como recurso para desviar a atenção do leitor tal como observa Affonso Ávila (1994), ao tratar do artista barroco. Ao fazer o jogo de espelhamentos com as palavras do refrão: vela-leva; seta-tesa; rema-maré; rima-mira; terça-certa; sera-reza, e ao dizer que “espalha espelhos” Caetano Veloso trabalha criando um processo de metalinguagem na letra.

O eu-lírico trata do carnaval feito por pessoas que muitas vezes trabalham simplesmente movidas pela paixão pela festa, ou seja, é a “pureza desse amor” que “espalha espelhos”. No geral, essas pessoas vivem nas periferias, onde a violência e o tráfico de drogas imperam devido à marginalidade social. Esta gente do povo tem, no carnaval, um momento de alegria.

A avenida, no texto substituída por “chão”, é o céu por onde as estrelas, que são os passistas, desfilam e brilham, no entanto, não podemos esquecer do turismo relacionado ao desfile, já citado acima. Há uma citação de um verso da letra Gente (1977), do mesmo autor, em que diz que “Gente é pra brilhar”. O carnaval permite esta elevação do povo da periferia ao céu, às estrelas, e Caetano Veloso registra isto como um verdadeiro artista consciente da cultura popular. Todos se reúnem, não importam as diferenças. O essencial é festejar a vida com toda a expressividade que o corpo permite.

O samba, na letra confundido, ou incorporado pelo eu-lírico, chama atenção ainda para o fato que já é quase terça-feira, a “terça-feira gorda”, é o último dia da festa, a única certeza é que o carnaval está terminando, mesmo que o samba continue exibindo “a beleza desse amor”, e é preciso aproveitar, “chora depois, mas agora deixa sangrar” (Deixa sangrar, 1989). Assim, o pagode e o samba, não são apenas ritmos ou estilos de dança: transcendendo a tudo isso, são o “zera reza”, que permitem o instante zero do sagrado.

A proliferação dos significantes: “pagode do nosso viver”; “pode entre dor e prazer”; “vê o que pode e o que não pode ser”, “espelho”, “conhece o bom e o mau”, “que não morre nunca”, resulta no significado SAMBA, que está substituído no título por “zera a reza”. Por isso é preciso fazer uma leitura em filigranas das especificidades do texto, para chegar-se a novas (e implícitas) significações da letra. Será através desta leitura em filigranas que se perceberá também as relações intertextuais, com outras letras do mesmo autor ou de outros autores, produzidas ao longo do texto, que auxiliam na proliferação de significações dificultando um entendimento do conteúdo numa primeira leitura. A intertextualidade, seja para gerar novas significações, no hipertexto, seja para reler o hipotexto, na produção neobarroca, serve como desperdício de significantes, daí Sarduy (1979) afirma que o texto barroco ou neobarroco é marcado pelo erotismo.

Não é por acaso que Zera a reza abre o disco Noites do Norte (2000), um disco que, inspirado pelo pensamento do abolicionista Joaquim Nabuco, tem fortemente impresso nas letras a questão da escravidão. Portanto inicia-lo falando do samba, dança de origem africana, herança dos negros trazidos como escravos, e do carnaval, festa popular que, no Brasil, incorporou o samba, além do frevo e hoje do axé, como ritmos matrizes. Todavia, Caetano Veloso faz essa homenagem de forma velada, através do jogo significante/significado, das proliferações e substituições que caracterizam a obra neobarroca.

Referências

ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco I. São Paulo: Perspectiva, 1994.

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovit. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec, 1999.

CHIAMPI, Irlemar. Barroco e Modernidade. São Paulo: Perspectiva, 1998.

SARDUY, Severo. O barroco e o neobarroco. In: MORENO, César Fernández (Org.). América latina em sua literatura. Tradução de Luiz João Gaio. São Paulo: Perspectiva, 1979.

VELOSO, Caetano. Letra só. FERRAZ, Eucanaã (Org.). São Paulo: Companhia das letras, 2003.

VELOSO, Caetano. Sobre as letras. FERRAZ, Eucanaã (Org.). São Paulo: Companhia das letras, 2003.

 

[1] Este trabalho foi desenvolvido por Leonardo Davino de Oliveira, bolsista PIBIC/UFPB, como resultado parcial da pesquisa “O neobarroco em Caetano Veloso”, sob orientação do Professor Dr. Amador Ribeiro Neto.