Leito de folhas verdes: análise dos elementos estruturais do poema

Salete Valer

Resumo: Este estudo analisa o poema Leito de Folhas verdes de Gonçalves Dias  com o objetivo de observar como os elementos estruturais (ritmo, métrica, rima) presentes no texto se organizam para dar o sentido literário a esse gênero.

Palavras chaves: poema, elementos do poema, sentido literário.

Abstract: This paper analyzes the poem Leito de Folhas verdes (Gonçalves Dias) and it aims to observe how elements (rhythm, metric, rime) are organized inside the text in order to construct the literary sense of this kind of genre.

Key Words: poem, poem’s elements, literary sense.

 

O POEMA

Este estudo do poema Leito de folhas verdes do autor Gonçalves Dias tem por objetivo compreender melhor a relação entre os elementos (ritmo, a metrificação, rima) que estruturam esse gênero e o sentido literário como resultado da organização e aplicação desses elementos.

1 Por que tardas, Jatir, que tanto a custo
2 À voz do meu amor moves teus passos?
3 Da noite a viração, movendo as folhas,
4 Já nos cimos do bosque rumoreja.

5 Eu sob a copa da mangueira altiva
6 Nosso leito gentil cobri zelosa
7 Com mimoso tapiz de folhas brandas,
8 Onde o frouxo luar brinca entre flores.

9 Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
10 Já solta o bogari mais doce aroma!
11 Como prece de amor, como estas preces,
12 No silêncio da noite o bosque exala.

13 Brilha a lua no céu, brilham estrelas,
14 Correm perfumes no correr da brisa,
15 A cujo influxo mágico respira-se
16 Um quebranto de amor, melhor que a vida!

17 A flor que desabrocha ao romper d’alva
18 Um só giro do sol, não mais, vegeta:
19 Eu sou aquela flor que espero ainda
20 Doce raio do sol que me dê vida.

21 Sejam vales ou montes, lago ou terra,
22 Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,
23 Vai seguindo após ti meu pensamento;
24 Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!

25 Meus olhos outros olhos nunca viram,
26 Não sentiram meus lábios outros lábios,
27 Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
28 A arazóia na cinta me apertaram.

29 Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
30 Lá solta o bogari mais doce aroma
31 Também meu coração, como estas flores,
32 Melhor perfume ao pé da noite exala!

33 Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes
34 À voz do meu amor, que em vão te chama!
35 Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
36 A brisa da manhã sacuda as folhas!

A imagem desse poema remete a uma declaração de amor marcado pela angústia da espera. Descreve os sentimentos e o pensamento do “eu poético feminino” em um aspecto temporal que se inicia com a chegada da noite e se prolonga até o amanhecer do dia seguinte.

A espera do amante que partiu se enuncia, de forma diferente, nas estrofes três e oito. No verso nove (estrofe três) “Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco” há a primeira marcação de tempo: chegou a noite, e nessa hora  ainda há a esperança da volta do amado Jatir que está longe, cujos passos são movidos pela voz do puro sentimento da amada que ficou em sua casa (na floresta). No decorrer da noite, os movimentos trazem o vento e as folhas provocam ruídos nos altos bosques e a amada permanece sob uma alta mangueira, local em que está o leito gentil, o qual ela cobriu com brandas folhas e que brilha através do luar que transpõe as flores.  A noite avança na floresta e a flora, em sua diversidade, solta seus aromas entre os quais estão os das flores do tamarindo e do bogari.

As horas da noite vão passando, a lua brilha, as estrelas brilham, os perfumes das flores noturnas se espalham levados pela brisa. Essa imagem romântica provocada pela lua, pelas estrelas e pelo perfume de diversas flores cria um ambiente de magia em que “o eu poético” é transportado para um mundo de sonhos no qual ela pode viver seu grande amor, pois aí não existe a triste realidade da vida, uma realidade de solidão e de abandono.

O alvorecer chega e com o giro do sol, as flores do dia começam a desabrochar. Como uma flor que vegeta sem o sol, a amada espera que a energia do sol lhe dê  ânimo para continuar  a espera. O “eu poético” pensa em seu amante caminhando, de dia ou à noite, atravessando vales, montes, lago, terra e, mesmo distante, ela está sempre emitindo seu pensamento de carinho e proteção, pois ele foi seu único amor. Os olhos dela nunca viram outros olhos, nem beijaram outros lábios, nem outras mãos apertaram sua saia na cintura.

No verso vinte e nove “Do tamarindo a flor jaz entreaberta”,  a narração retoma  a terceira estrofe e compara o aroma dessa flor, no momento presente, com o aroma da noite anterior. Aqui, a marcação do segundo tempo, o tempo da desilusão, pois, tal como o perfume das flores, sua esperança se esvai com a chegada do dia.

No final do poema, mais precisamente na estrofe nove, a narração retoma a primeira estrofe para mostrar a conscientização do “eu poético” em relação ao não retorno do amado. Com isso, a imagem do leito nupcial tão bem cuidado e construído com amor já não tem mais valor, passa a ser inútil sem a presença do companheiro, por isso pede à brisa que o desfaça.

Assim, estruturas lingüísticas tais como, “Eu sob a copa da mangueira ativa”, “vales ou montes”, entre outros, descrevem um espaço físico de uma floresta. A presença de vocábulos como “Jatir”[1], “Tupã”, “bogari, “tamarindo” e a oração “A arazóia na cinta me apertavam”, anuncia a cultura e a língua indígena.

ELEMENTOS ESTRUTURANTES DO POEMA

A sonoridade do poema pode ser altamente regular, muito perceptível, determinando uma melodia própria na ordenação de sons, ou pode ser de tal forma discreta que praticamente não se distingue da prosa. O poeta pode obter o efeito desejado através da sonoridade das palavras ou fonemas; da prática da metrificação ou da sinestesia, que é a expressividade dos sons, da correspondência entre som e um sentido necessário a esse som o qual causa certa sensação.

Ritmo

De acordo com Cândido (1986) o ritmo é uma alternância de sons, ou seja, quando lemos um verso e, sobretudo um poema completo, o que nos prende a atenção é o movimento ondulatório que caracteriza o verso e o distingue de outro, a esse movimento chamamos de ritmo. Ritmo é, pois, uma alternância de sonoridade mais fraca e mais forte, formando uma unidade configurada. Sendo assim, o ritmo[2] está ligado intimamente à idéia de alternância: alternância de som e silêncio; de graves e agudos; de tônicas e átonas; de longas e breves. Um verso se compõe de sílabas ditas sílabas poéticas as quais não correspondem às sílabas gramaticais. Isso é, pela acentuação, diferenciam-se as sílabas tônicas das sílabas átonas o que irá formar as unidades rítmicas que são responsáveis pelo ritmo.

O poema “Leito de folhas verdes” é estruturado em nove estrofes com quatro versos em cada estrofe (quarteto) resultando em um total de trinta e seis versos. É uma composição em decassílabos, cujo ritmo mantém bastante regularidade. O verso com cesura na sexta, na segunda e ou terceira sílaba caracteriza o verso heróico e, de modo geral, marca o tempo através da tonicidade.

A análise rítmica do poema, de acordo com Duarte & Reis (2000), apresenta, já no primeiro verso, o vocábulo tardas, reiterado na última estrofe numa variante anominativa sugerindo de início o caráter circular do texto. É em favor desse vocábulo, um verbo de valor interjetivo que estabelece de pronto o estado de carência do eu enunciador, que as principais forças do texto se organizam. Exprimindo um ímpeto de indignação, demarcada por sua posição no verso e pela pontuação da frase, é sobre ele, chamando para si a atenção, que incide o primeiro acento de intensidade e duração ou acento poético. É sobre ele também, como fonte enunciadora de uma decepção amorosa, que convergem, em movimento de ida e volta (do vocábulo para todo o texto), os efeitos sonoros obtidos na estrofe. Efeitos que se ouvirá ressoar compondo uma estrutura que rege o sentimento de angústia e a dor da espera.

Dessa forma, a marcação rítmica parece associar a um movimento pendular, de relógio, ligado à idéia da espera noturna, reforçado pela organização dos níveis gramaticais no decorrer do enunciado.

Métrica

Para que os versos se enquadrem em um número desejado de sílabas, normalmente o autor usa de alguns procedimentos funcionais[3], os quais têm por objetivo ampliar ou reduzir a sílaba métrica.

A descrição teórica dos elementos estruturais da sonoridade, acima exposta, mostra que o poema em análise mantém uma estrutura decassílaba e, para tanto, o procedimento funcional selecionado em grande quantidade foi o da sinaléfa, na qual ocorre a junção de uma vogal de início ou final de um vocábulo com um artigo, ou entre dois vocábulos como podemos observar no verso (8)

8 Onde o frouxo luar brinca entre flores.

Esse recurso funcional faz com que a estrutura métrica do poema se mantenha padronizada sempre em versos formados por dez sílabas poéticas.

Rima

A rima, de acordo com Cândido (1986), apareceu na literatura latina por volta dos séculos IV e V como conseqüência da decadência da métrica quantitativa que se baseava na alternância e combinação de sílabas longas e sílabas breves. Dessa forma, esse uso vai se intensificando na  medida em  que a língua latina se esvai e as línguas neolatinas se organizam estruturalmente. A função principal da rima é criar a recorrência do som de modo marcante, estabelecendo uma sonoridade contínua e nitidamente perceptível no poema.

Sendo assim, no que diz respeito à rima, o poema “Leito de folhas verdes”, apresenta versos brancos, com exceção da quarta estrofe na qual aparecem as palavras “brisa / “vida” (rima toante). Esses vocábulos relacionam o sentimento de mudança, em que a brisa traz o novo para a o “eu poético”. Em termos gerais, os versos não apresentam rima consoante (concordância de todos os fonemas a partir da vogal tônica), nem rima toante (concordância de vogais tônicas, ou de vogais e outra; ou outras vogais átonas que as seguem).

Observamos, porém, que a sonoridade desse poema se estrutura com rimas por assonância (repetição de vogais) e rima por aliteração (repetição de consoantes), bem como a presença de recorrências por repetições de palavras, por repetições de sintagmas e repetições de versos.

Rima por Aliteração

A rima estruturada por aliteração (repetição de consoantes) ocorre pela repetição da realização sonora de determinadas de consoantes, que pela sua repetição provocam uma rima interna ao poema.

De acordo com a teoria de Grammont (apud Cândido 1986) existe uma correspondência  entre  a sonoridade e o sentimento. Sendo assim, as consoantes nasais (N) trariam um sentido de lentidão, brandura, langor e timidez; a líquida (l) traria um sentido de fluidez, escorregamento; a líquida (r) tem um efeito variável dependendo da vogal que a segue; as fricativas (sibilantes s, z, f e v) e chiantes (j e ch) produzem um efeito de sopro, sussurro, sibilo, deslizamento; frêmito, angústia, ciúme e cólera respectivamente.

Assim, as realizações das consoantes mais recorrentes encontradas no poema são as abaixo descritas:

  • [g]-verso 18;
    • Ex.: “Um só giro do Sol, não mais, vegeta:”
  • [l]-versos 6, 13, 25 e 35;
    • Ex.: (6) “Nosso leito gentil cobri zelosa”
  • [N]-versos 21, 23, 24, 31,32 e 34 sendo que /N/ (elemento nasal) aqui representa a realização de todas as consoantes nasais;
    • Ex.: (21) “Sejam vales ou montes, lago ou terra”,
  • [r]-versos 14 e17;
    • Ex.: (14) Correm perfumes no correr da brisa,
  • [s] – versos 2, 4, 11, 12, 15, 18, 19, 20, 21, 25, 26, 27, 31 e 36;
    • Ex.: (2) “À voz do meu amor moves teus passos?”
  • [t]- versos 1, 24, 27, 33 e 35;
    • Ex.: (1) “Por que tardas Jatir que tanto a custo.”
  • [v] – verso 34
    • Ex.: (34) À voz do meu amor, que em vão te chama!

Observamos que as realizações sonoras mais recorrentes no poema são os sons relacionados à consoante S, entre os quais, estão os fonema [s],[z] e[ʃ]; as consoantes nasais  se realizam  com o elemento nasal [N] e  a consoante  T  se realiza com o som de [t].

Assim, de acordo com essa teoria, a realização das fricativas silibantes remete a um sentido de sopro, sussurro, sibilo, deslizamento, concordando com o tema do poema, o qual descreve um evento que se passa em uma floresta, por isso a brisa, o balanço das árvores faz parte dos motivos  do poema.

O elemento nasal, de acordo com a mesma teoria, estaria dando um sentido de lentidão, brandura, langor e timidez, concordando com a narração no que diz respeito à passagem do tempo, de espera – uma espera lenta em que a personagem representa o papel de uma romântica à espera de seu amado que não chega. Em relação à realização do [t], observamos que já no primeiro verso ocorre cinco vezes como vemos abaixo.

(1) Por que tardas, Jatir, que tanto a custo

Segundo Cândido (1986:24), mesmo que essa realização venha acompanhada de outra dental [d],  em um poema construído em torno da passagem do tempo, essa  “forma procura transmitir a duração psicológica em relação com o fluir das horas, e no qual uma índia se angustia com a demora do namorado” sentido esse que junto com o sentido da consoante S reforça a interpretação do poema de espera e lentidão.

Rima por Assonância

A rima por assonância (repetição de vogais) ocorre pela repetição de vogais nos versos, e com isso também contribui para caracterizar a sonoridade do poema, marcando assim, algumas especificidades à rima do poema.

De acordo com a mesma teoria exposta acima em (4.3.1) as vogais agudas (i, u) trariam um sentido de dor, desespero, alegria, cólera, ironia e desprezo ácido, troça; as vogais claras (em especial as médias anteriores (é, e) trariam um sentido de leveza e doçura); as brilhantes (a, ó, e, ã e) remetem a um sentido de barulho rumoroso; as sombrias (u, ó e õ)  direcionam  a um sentido de barulho surdo, raiva, peso, gravidade, idéias sombrias; as vogais nasais repetem os efeitos das  vogais orais modificando-as.

No que diz respeito à realização de vogais no poema em análise, as mais recorrentes são:

  • [a] – versos 1, 5, 28, 29, 33 e 36;
    • Ex.: (5) Eu sob a copa da mangueira altiva
  • [e] – versos 11,14 e 32;
    • Ex.: (11) Como prece de amor, como estas preces,
  • [i] – verso 23;
    • Ex.: (23) Vai seguindo após ti meu pensamento;
  • [o]-versos 2, 3, 4, 30 e 35;
    • Ex.: (3) Da noite a viração, movendo as folhas,
  • [u]-verso 22
    • Ex.: (22) Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,

Observamos, em relação às rimas por assonância, que as realizações das vogais mais recorrentes são [a] e [o].  Sendo assim, de acordo com a teoria de Grammont, acima exposta, as brilhantes (a, e, ã, e) remetem um sentido de barulho rumoroso, ou seja, concorda com o sentido do poema pela mesma justificativa relacionada ao sentido das fricativas silibantes. A realização das vogais sombrias (u, ó, o e õ) levam ao sentido de barulho surdo, raiva, peso, gravidade, idéias sombrias, ou seja, podemos relacionar o uso dessas vogais ao sentido do poema, tendo em vista o pensamento sombrio e pesar do “eu poético”.

Rima por Recorrências

A sonoridade de um poema pode decorrer por processos de aliteração e assonância, como vimos acima. Além dessas formas, a recorrência de estruturas maiores  do que fonemas podem contribuir para a sonoridade. Entre os tipos de recorrências temos:

 Recorrência por palavras

A recorrência por repetições de palavras tem o objetivo de produzir uma rima interna aos versos, bem como, serve para reiterar a importância desses elementos lingüísticos na estrutura do poema, ou seja, para intensificar o significado do conteúdo do tema pretendido pelo poeta. Assim, descrevemos os vocábulos que se repetem seguidos dos versos que os seguem.  O vocábulo amor  (versos 2, 11, 16, 24 e 34);  folha (versos 3, 7 e 36); flor (versos 8, 9,17,19, 29), leito (versos 6 e 35);  lua (versos 8 e 13);  sol (versos 18, 20 e 35).

Dessa forma, a repetição dos vocábulos acima, direcionam a leitura para a temática do  amor (amor, leito), em que o ambiente físico descrito no poema remete à natureza (sol, lua),  indicando um  ambiente  espacial específico  (folhas, flor, arvores) formando a imagem de mata, floresta.

A recorrência pelo uso da mesma palavra no mesmo verso implica na intensificação do sentido que esses signos podem inferir sobre o verso e sobre o poema. Essa recorrência pode ser encontrada na palavra prece (verso 11), olhos (versos 25), lábios (versos 26). Esses vocábulos também reforçam a imagem da pureza (prece) que se mescla com o sensual (olhos e lábios), imagem estereotipada do “eu feminino”, mas aqui descreve um feminino indígena já interpretada e idealizada por uma cultura européia.

Recorrência por sintagmas

As repetições de sintagmas também reforçam a necessidade de o autor marcar o sentido dessas estruturas no poema. O sintagma nominal, abaixo descrito, marca o espaço de tempo que vai desde o anoitecer até o amanhecer, tendo em vista que essa flor se abre à noite e se fecha com a chegada do sol.

(9) Do tamarindo a flor abriu-se , há pouco
(29) Do tamarindo a flor jaz entreaberta.

O desabrochar e o fechar da flor condiz com os sentimentos e as esperanças do “eu poético” que está firme e seguro à noite, mas ao chegar o sol, no dia seguinte, essa esperança vai se apagando, se desfazendo lentamente.

E com a repetição dos sintagmas abaixo descritos

(02) À voz de meu amor moves teus passos?
(34) À voz do meu amor, que em vão te chama!

o autor também pretende marcar dois tempos: o primeiro se encontra na primeira estrofe, em que o “eu poético” ainda acredita que sua voz pode guiar os passos de seu amado durante a sua caminhada por vales e montanhas distante. Já o segundo sintagma vem acompanhado com o adjunto de modo “em vão”,  e com isso,  aponta a inutilidade da espera e a tomada de consciência de que Jatir (o amado) não voltará.

Recorrência de versos

A repetição de versos intensifica ainda mais a oposição e a marcação do tempo da narração, pois na oração Já solta o bogari mais doce aroma! (10), relata que tanto a flor do bogari quanto a flor do tamarindo exalam  um melhor perfume  durante a noite,  hora também de fazer as preces. A retomada desse mesmo verso em (30) está acompanhada aos versos (31) e (32),

(30)  Lá solta o bogari mais doce aroma
(31) Também meu coração, como estas flores,
(32)  Melhor perfume ao pé da noite exala!

os quais apontam um reforço na marcação do tempo – noite para o amanhecer-. Marcam também a intrínseca relação do humano com a natureza, em que o “eu poético” compara a vitalidade de seu amor, reforçado pela força abstrata da prece, à intensidade do aroma, que é mais forte à noite. Porém, ao amanhecer, está sem ânimo, sem vitalidade, sem esperança de que seu amor retorne.

A ANÁLISE

O Romantismo caracteriza-se pela inovação, ou seja, pelo desejo de criar uma literatura nacional, e para atingir esse objetivo, a linguagem que caracterizava a literatura, até então, sofre transformações. As transformações podem ser observadas principalmente nas construções da versificação dos poemas e nas construções sintáticas.  A sintaxe que até então era clássica e bem cuidada, com os românticos, passou a ser mais coloquial, comunicativa e simples e as  composições que eram de metro fixo deram lugar a novos  ritmos e variadas formas métricas, em outras palavras, uma linguagem com maior liberdade de expressão.

No que diz respeito à estruturação da sonoridade do poema “Leito de Folhas verdes” a sua métrica se compõe em versos decassílabos com acentos tônicos regulares nas segunda/terceira, sextas e décimas sílabas, caracterizando, assim, o verso heróico. Essas características concordam  com as inovações próprias dessa escola, que contrariam a rigidez métrica e rítmica do classicismo. Assim, as inovações relacionadas a uma maior liberdade na estrutura do poema podem ser observadas pela presença de versos brancos e pela sonoridade. Ou seja,  contrariamente, à rigidez da rima clássica, a sonoridade nesse poema, marca-se pela presença de rimas internas:rimas por assonância (repetição de vogais) e rima por aliteração (repetição de consoantes), bem como a presença de recorrências por repetições de palavras, por repetições de sintagmas e repetições de versos.

A análise dos níveis gramaticais do poema aponta, inicialmente, que no nível lexical algumas das inovações do português brasileiro são visíveis na identificação de objetos e noções próprias à realidade local, ao clima, à fauna, à flora e no vocabulário. Isto é, o poema estrutura-se com vocabulários usuais, mas é enriquecido com algumas palavras mais específicas da língua indígena tais como arazóia, tamarindo, bogari, Jatir, tupã etc.

A recorrência de algumas palavras como flor, folha, luar, lua, sol, etc reforça, na narrativa, à descrição de um ambiente espacial de floresta relacionado ao povo indígena, apontando, especialmente, para os elementos da natureza tal como a lua e o sol, vocábulos esses que marcam nessa cultura o aspecto temporal, dia e noite.  Os vocábulos lábios, olhos, prece, mãos, amor direcionam para a imagem do “bom selvagem”, do “erótico”, e da “pureza feminina”.

O poema, no nível semântico, se serve de usos de metáforas ao relacionar o movimento da natureza, para marcar a passagem temporal da noite para o amanhecer como podemos observar nos versos (9) e (10) abaixo.

(9) Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
(10) Já solta o bogari mais doce aroma!

Assim, a imagem da noite é descrita pelo evento do desabrochar das flores noturnas que exalam um doce perfume.

O movimento da natureza também é uma metáfora para os sentimentos da personagem como podemos ver nos versos da estrofe (8)

(29) Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
(30) Lá solta o bogari mais doce aroma
(31) Também meu coração, como estas flores,
(32) Melhor perfume ao pé da noite exala!

Os versos presentes nessa estrofe representam uma metáfora dos sentimentos e das emoções do “eu poético”, tendo em vista que ao amanhecer, as flores que durante a noite exalavam um forte perfume, neste momento, seu perfume já não tem a mesma intensidade, ou seja, podemos comparar a intensidade do aroma noturno com os sentimentos da amada. Isto é, as esperanças que, durante a noite, fortaleciam seu coração estão se desfazendo, contrastando com as esperanças que ela nutria ainda durante a noite, momento em que seu coração se sentia mais esperançoso e forte, tal qual o perfume das flores.

Outro nível gramatical a ser observado nesse poema diz respeito à sintaxe, que, apesar de refletir uma tentativa de liberdade lingüística e métrica característica das inovações dessa escola,  ainda apresenta certo estilo conservador na linguagem. Ou seja, o texto apresenta certa inversão de elementos da estrutura sintática, demonstrando, com isso, uma linguagem mais elaborada  assemelhando-se à forma mais clássica.

(1) Por que tardas, Jatir, que tanto a custo
(2) À voz do meu amor moves teus passos?
(3) Da noite a viração, movendo as folhas,
(4) Já nos cimos do bosque rumoreja.

Nessa estrofe a ordem dos constituintes está exposta de forma inversa se levarmos em conta a ordem do parâmetro do Português do Brasil (PB), ou seja,  a seleção  dos  elementos na sentença são canonicamente sujeito, verbo, complemento e posteriormente o adjunto adverbial e  nos sintagmas nominais a ordem nome- complemento ou  nome-adjunto. Observamos, assim, algumas inversões na ordem dos constituintes causando com isso, certa estranheza sintática, característica essa (hipérbatos) comum à escola clássica.

De acordo com Simões & Theodoro Pereira (2005), a presença de uma forma mais clássica nos poemas românticos de Gonçalves Dias se deve ao fato de esse poeta ter tido uma formação clássica, ou seja, “tinha em conta os clássicos, vernáculos e latinos como fonte de expressão e construções primorosas”, conservou por isso, de certa forma, certo purismo, mas como já conhecia a língua brasileira “procura exprimir sua convicção acerca da união lingüística Luso-brasileira, sem perder-se da indiscutível necessidade de expressão individual para cada uma das literaturas”.

Outra característica relevante nesse poema, como podemos ver na estrofe (7), é a  presença  da  “idealização do eu feminino”  como marca própria da escola Romântica.

(25) Meus olhos outros olhos nunca viram,
(26) Não sentiram meus lábios outros lábios,
(27) Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
(28) A arazóia na cinta me apertaram.

Observamos, porém, que, diferentemente da literatura romântica européia, até então em voga e reproduzida no Brasil, na qual se enunciava um “eu feminino” urbano, o enunciado em análise, apresenta um novo foco. Isto é, através dos elementos lingüísticos presentes no poema, podemos depreender a temática do lírico amoroso indianista em que o “eu poético” é uma personagem feminina (puro e dócil), que está à espera de seu amor que partiu e ainda não voltou, em acordo com as personagens femininas românticas. Nesta narrativa, todavia, a personagem romântica vive na floresta, mas apesar das marcas da cultura e costumes indígenas, ela é descrita conforme as   relações do ambiente urbano, ou seja, mesmo ao estar descrevendo o relacionamento entre índios,  o autor cria para eles uma imagem que provavelmente  tem muita relação com o homem citadino.

Dessa forma, pela análise dos elementos lingüísticos encontrados no enunciado do gênero poema “Leito de folhas verdes”, a enunciação aponta para um espaço físico específico das florestas tropicais e que as personagens enunciadas (o eu poético e Jatir) caracterizam uma idealização da cultura indígena brasileira justificando com isso, o objetivo dos poetas românticos em retratar uma realidade de cunho nacional, ou seja, a narração dos fatos ou paisagens nacionais, mas isso é feito de uma forma lírica idealizada como convém ao gênero literário poema relacionado a esse período literário brasileiro.

Para finalizar, em termos gerais, podemos marcar aqui, a relação do autor brasileiro com a cultura Européia e, especialmente, a colaboração de um poeta romântico com o Estado no que diz respeito à abordagem da temática indianista e às narrativas através das quais se procura integrar o silvícola à nação. E, esse olhar do poeta sobre essa temática, também participa da construção de um imaginário do índio, esse elemento distanciado da cidade, desconhecido e, aqui, idealizado.

REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio. Na Sala de Aula: Caderno de Análise Literária. São Paulo: Ática,1985

______. O estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas Publicações-FFLCH-USP,1986.

CHOCIAY, Rogério. Teoria do verso. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1974.

DUARTE, Osvaldo & REIS, Célia Maria Domingues da Rocha. A construção rítmica em Leito de folhas verdes, de Gonçalves Dias. Acta Scientiarum, Maringá/PR. V. 22, no 1, P 66-74, 2000.(material enviado, via e-mail, pela autora).

SIMÕES, Darcília & THEODORO PEREIRA, Juliana. Novos Estudos Estilísticos de I-Juca-Pirama (Incursões Semióticas). Rio de Janeiro: Dialogarts, 2005. P.208 www.dialogarts.com.br/jucapirama2005.pdf

Poema :http://www.revista.agulha.nom.br/gdias02.html

 

Artigo recebido em 25/10/2007 e aprovado em 04/11/2007.

 

[1] Clossário: http://www.regisbonvicino.com.br/textcrit25.htm
-Jatir significa, em tupi, arpão de haste longa,
– arazóia: saia elaborada com pena de pássaros presa à cintura
– tamarindo e bogari: flores noturnas que exalam doce perfume

[2] Quanto ao conceito de ritmo em relação a uma língua, percebe-se que há certa diferenciação na sua nomenclatura, pois, em algumas línguas como o inglês e o alemão o ritmo é marcado em pés, e não em sílabas poéticas como nas línguas neolatinas. Nas sílabas, o acento tônico corresponde às vogais longas, de modo que o ritmo se elabora efetivamente por uma alternância de longas e breves.

[3] De acordo com Chociay (1974:17), os principais procedimentos funcionais são:  Elisão (supressão de fonema (s)  em qualquer ponto silábico (ex minh´alma)); Apliação (processo de aumento de corpo silábico (ex.: feliz – felice)); Sinalefa (acomodação em uma mesma sílaba métrica de duas ou três vogais, ou seja, transforma  hiato vindo de palavras diferentes em ditondos (ex.:abre os)); Dialefa (opera uma separação normal de vogais, ou seja, vogais que estão separadas permanecem separadas, opondo-se, dessa forma, ao processo  da sinalefa , com  o objetivo de ampliar a sílaba métrica ( ex.: e  – os). Sinerese (dentro da mesma palavra um ditongo se transforma em um hiato (ex.: tu-a)); e Diérese (opera uma separação intravocabular, ou seja, dentro da mesma palavra ocorre a transformação de hiato em ditongo  (ex.: sau-da-de).