Uma estética dos fatos, em Oswald de Andrade

Victor da Rosa

Cidade de São Paulo, ano de 1918. No 3º andar do prédio nº 67 da rua Líbero Badaró, uma garçonnière: reduto de encontros amorosos. Na garçonnière, algumas telas de Di Cavalcanti, discos de Beethoven, Schubert e Rubinstein, acompanhados de uma grafonola e um caderno grande – 33cm x 24cm –, com a capa preta e suas duzentas páginas numeradas, que veio a servir como um diário de registros cotidianos e subjetivos de alguns freqüentadores do lugar. Entre os freqüentadores, jovens de 21 a 28 anos. Oswald de Andrade, Inácio da Costa Ferreira, Edmundo Amaral, Pedro Rodrigues de Almeida, Vicente Rao, Léo Vaz, Guilherme de Almeida, Sarti Prado, Menotti del Picchia e Maria de Lourdes Pontes, a Daisy ou Miss Cíclone, única figura feminina do local.

Este diário, hoje, está inserido no cânone da literatura brasileira. E isso porque, um dos seus mais assíduos escritores e mantenedor da garçonnière, veio a ser, poucos anos mais tarde, o Oswald de Andrade ícone daquilo que se chamou de movimento modernista brasileiro. Qual seja: aquele mesmo diário escrito a várias mãos em fins da memorial década de dez com objetivos, a priori, não muito pretensiosos, em nossa recente década de oitenta é publicado em nome de uma demanda mercadológica que não me cabe, tampouco interessa, discutir, mas que traz à superfície discussões em torno do que se entende por literatura e poesia – falo poesia e não poema: é necessário perceber a distinção. Até que ponto um caderno onde há de tudo – pensamentos, trocadilhos, reflexões, alusões a fatos ocorridos na cidade, etc., etc. –, como observa Mário da Silva Brito (1992: pp. 5-6), pode ser considerado literatura? Onde está o limite entre o não-literário e o literário, entre o poético e o não-poético? Ou ainda uma pergunta não menos problemática, já feita e refeita no contexto pós-moderno: será possível que uma obra de arte seja criada acidentalmente, sem a intenção do artista de criá-la? Não pretendendo aqui elaborar respostas definitivas a essas questões, mas sim esboçar algumas idéias a respeito e apresentar uma leitura que faço desse documento literário, desde já adianto: é possível, sim, na talvez cômoda posição daquele que olha quase um século depois, conceber O Perfeito Cozinheiro das Almas Deste Mundo… como obra literária.

Se faz necessário perceber, antes de qualquer coisa, que, a partir, principalmente, do século XX, com as reflexões estruturalistas e pós-estruturalistas a respeito do texto literário, a participação do leitor na construção de uma completude da obra vem sendo enfatizada. Isto quer dizer que aquela concepção romântica de artista enquanto criador e portador de um sentido único e axiomático da obra literária – e isso se estende a todas as formas de expressão artística – vem se diluindo. Ora, basta pensar que muitos críticos da literatura flaubertiana consideram suas cartas literariamente mais interessantes que seu romance, indiscutivelmente valioso, Madame Bovary. Teria Flaubert escrito suas cartas com pretensões literárias? Me parece que, contemporaneamente, isso não é o mais importante.

Além disso, basta folhear as páginas d´ O Perfeito Cozinheiro… para perceber que a idéia de que o caderno tenha sido concebido com ideais puramente comunicativos entre seus relatores é ingênua. Já na primeira página João de Barros anuncia que “muito de arte entrará nestes temperos, arte e paradoxo (…)”. E mais, o que tem de comunicativo em trocadilhos como: “Nos casos de amor, á Dulcinéa prefira-se a Dulce nua” ou “Je volie, 1ª pessoa do pres. do ind. do volier, parente do René Thiolier”? E o que dizer das figuras coladas ou dos desenhos e caricaturas feitos por Ferrignac, do uso parcial de pseudônimos e de todo universo ficcional que se constrói em torno, principalmente, da figura de Daisy, a Miss Cyclone?

Aliás, a figura ciclônica de Daisy nos permite pensar a questão literatura/vida, realidade/ficção com mais propriedade, uma vez que, ao perceber que tudo no diário gira ao seu redor – até pelo fato de ser a única figura feminina com acesso ao caderno –, propõe jogos e, muitas vezes, provoca o ciúme dos “gravatas” – principalmente em Miramar (Oswald de Andrade) e João de Barros (Pedro Rodrigues de Almeida) – que, do início ao fim, não economizam elogios e declarações à musa. Na página 68, a normalista escreve que arranjou um namorado japonês, e salienta: “vê que sorte!”. Brinca com a personagem Cyclone: “uma versão literária de si mesma” (1998: p. 45).

Versão literária de si mesmo: essa máxima irá perseguir também Oswald, porém não apenas no diário, mas em grande parte de sua literatura – para não dizer em toda. Apenas a cargo de exemplo, cito Memórias Sentimentais de João Miramar onde, conhecendo a biografia oswaldiana, percebe-se que as relações não são poucas, e seu romance inaugural, Alma, onde a personagem título tem uma trajetória muito semelhante à de Daisy. Literatura e vida: literatura na vida. Poesia e fatos.

Mas voltando à Cyclone: também em seus momentos melancólicos, os limites entre literatura e vida se tornam tênues. Na página 148, Cyclone reclama sofrer “como Vinci, como Sandri, como Le Faustin…” (…) “o sofrimento de muitas almas de ficção”. Quem sofre: Cyclone ou Maria de Lurdes Castro? Não nos é permitido saber.
E não só no caráter ficcional do diário é possível encontrar o literário, o poético. É interessante perceber que a própria disposição formal inquieta, fragmentada e nervosa do caderno marcará toda uma estética não apenas oswaldiana, mas também de um tempo, o modernista. E mais. O fato de o diário servir como registro do cotidiano e, como já foi discutido, esses registros possuírem não apenas valor pragmático, mas também – e principalmente – valor estético, irá nos remeter para outro momento da vida literária de Oswald de Andrade onde a premissa fundamental é: “A Poesia existe nos fatos” – frase-abertura do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de 1924. Isto é, embora as diferenças entre o diário coletivo O Perfeito Cozinheiro… e a poesia pau-brasil sejam muitas – a começar pela questão formal: por um lado um diário e por outro um livro de poemas e um manifesto –, existe um laço que liga esses dois momentos: uma afirmação estética; a percepção de uma poeticidade nos fatos e nos registros banais. “A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal” (2003: p. 12). Ora, como não lembrar de relatos cyclonicos ou miramarianos após ler este trecho do Manifesto…? Por exemplo: “Chego; toda atarefada no casaco d´ inverno, busco em toda esta esplendida ´garçoniere` os vultos amigos dos meus rapazes. Mas qual. nem um siquer a quem dar o beijo rapido da chegada (…) Cyclone” (p. 82). Ou então: Manhã só, manhã triste. O Sr. de Kubelick, pallido e cabeludo, tropeçando no tapete chega a tocar Rubenstein para eu ouvir. Lá fora briga-se por causa do Valois. Hontem entrevistei a Pavlowa. Ella tem marido, cachorro, frio e boceja como qualquer de nós. Miramar” (p. 45).

Tanto a sala de jantar domingueira, o sujeito compondo valsa e a Maricota lendo o jornal do Manifesto... quanto o casaco d´ inverno, a pressa, a briga e Miramar ouvindo Rubenstein d´ O Perfeito Cozinheiro… são fatos estéticos e atitudes poéticas. E muito semelhantes.

Mas as semelhanças não acabam por aí, uma vez que o poeta usará do próprio ambiente da garçonnière e de seu romance com Cyclone como pano de fundo, reafirmando assim, uma estética não só nos fatos, mas naqueles fatos, para a composição de um dos poemas pau-brasil:

passionária
Meu amigo
Foi-me impossível vir hoje
Porque Armando veiu comigo
Como se foras tu
Necessito muito de algum dinheiro
Arranja-mo
Deixo-te um beijo na porta
Da garçoniere
E sou a sinceridade

Ora, o efêmero dos fatos fica aqui evidente na própria estrutura do poema: suposto bilhete deixado por Cyclone (passionária) na porta da garçonnière. Também na pressa ciclônica, evidenciada pela secura das palavras e das frases.

No entanto, duas observações devem ser feitas. A primeira diz respeito ao fato de encontrarmos também n´ O Perfeito Cozinheiro…, muitos relatos subjetivos, ou seja, o oposto dos fatos. Nesses casos, a poesia não estaria fora (nos fatos em si), mas partiria de dentro do sujeito, como é o caso de algumas confissões: “(…) Pela primeira vez, percebi uma coisa seria – que ella me faz falta – Mirabysmo” (p. 83). E a segunda se refere às aproximações emotivas que estão presentes da primeira à última página do diário. Nesses dois casos – que se confundem – o diário se diferencia da estética pau-brasil. Nos poemas, se observa um distanciamento e um controle sobre os impulsos que não é visível nos relatos – estes, por sua vez, irão ocorrer, na maioria das vezes, de forma impulsiva, apressada e distraída (por exemplo, nas curtíssimas passagens onde Miramar escrevia apenas: “Já volto”). Basta pensar no uso pronominal. O uso quase constante de primeira pessoa do diário se opõe ao de terceira pessoa dos poemas.

Os poemas pau-brasil, inclusive, podem ser pensados, metaforicamente, como fotografias. E o fotógrafo – ou o poeta – nesse caso, só teria o trabalho de observar os fatos e registrá-los. Alguns títulos dos poemas ilustram bem essa questão: fernando de noronha, procissão de enterro, biblioteca nacional, na avenida, cidade, bonde, metalúrgica, o violeiro, fotógrafo ambulante, etc., etc. A constante percepção e poetização daquilo que está fora.

É interessante perceber, como observa Haroldo de Campos, que o que se encontra aí é um programa de dessacralização da poesia, através do despojamento da “aura” de objeto único que circundava a poética tradicional (2003: p. 25). Qual seja, ao afirmar que “A poesia existe nos fatos”, o artista no sentido romântico como ser divino é efetivamente questionado. E não só o artista, mas também a poesia – e as artes plásticas? e a música? – como objeto exclusivamente contemplativo. Questionamentos, aliás, muito semelhantes aos de Marcel Duchamp, que provoca discussões ao assinar como artístico um porta-garrafa em 1912, uma roda de bicicleta em 1913 e o famoso urinol em 1917 – ano de abertura da garçonnière. Rupturas – aliás, muito características do início do séxulo XX.

Rupturas que nos permitem deslocar e descentralizar, a partir das reflexões anteriores que propunham os entrelaçamentos estéticos entre Pau-Brasil e O Perfeito Cozinheiro…, o eixo da semana de 22 e suas repercussões para os anos 1917-1918, entendendo o diário, já, como inquietação estética e experimentação estilística oswaldiana, que antecede, ou mais pontualmente, que faz parte de uma história canonizada pelos manuais limitadores.

Referências

ALMEIDA, Tereza Virginia de. Ausência Lilás da Semana de Arte Moderna. Florianópolis, Ed. Letras Contemporâneas, 1998.

______. Oswald poeta: por uma leitura pós-moderna (dissertação de mestrado). Rio de Janeiro, Pontifica Universidade Católica, 1991.

ANDRADE, Oswald de. O Perfeito cozinheiro das almas deste mundo. Prefácio de Mário da Silva Brito. São Paulo, Ed. Globo, 1992.

______. Pau-Brasil. Prefácio de Haroldo de Campos. São Paulo, Ed. Globo, 2003.

______. Um homem sem profissão sob as ordens da mamãe. Prefácio de Antonio Candido. São Paulo, 1990.

BOAVENTURA, Maria Eugênia. O Salão e a Selva (biografia ilustrada de Oswald de Andrade). São Paulo, Ed. Ex-Libris, 1990.

TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro : apresentação dos principais poemas manifestos, prefacios e conferencias vanguardistas, de 1857 a 1972. Ed. Petropolis: Vozes, 1985.