RESUMO
O presente artigo discute a recepção crítica dos romances O Último Dia de um Condenado (1829) e Os Miseráveis (1862), de Victor Hugo, na França do século XIX. Ambas as obras foram alvo de ataques e controvérsias, em razão do seu distanciamento dos padrões morais e estéticos da época. Valendo-se de excertos dos próprios romances, paratextos hugoanos e análises de estudiosos contemporâneos, o artigo apresenta as principais críticas feitas às ficções supracitadas e as esmiúça, indaga e contrapõe. Ao apresentar a recepção crítica das obras de Hugo e analisar a sua relação com o percurso do romance no século XIX, visa-se contribuir para a compreensão da trajetória da produção romanesca e dos estudos literários, os quais são indissociáveis de aspectos socioculturais.
ABSTRACT
This article discusses the critical reception of Victor Hugo’s novels The Last Day of a Condemned Man (1829) and Les Misérables (1862) in 19th century France. Both works were subjected to attacks and controversies due to their deviation from the moral and aesthetic standards of the time. Using excerpts from the novels, Hugo’s paratexts, and analyses by contemporary scholars, the article presents the main criticisms of the aforementioned fictions, delves into them, questions them, and counters them. By presenting the critical reception of Hugo’s works and analyzing their relationship with the trajectory of the novel in the 19th century, the aim is to contribute to the understanding of the development of novelistic production and literary studies, which are inseparable from sociocultural aspects.
PALAVRAS-CHAVE: RECEPÇÃO CRÍTICA; VICTOR HUGO; O ÚLTIMO DIA DE UM CONDENADO; OS MISERÁVEIS; ROMANTISMO.
KEYWORDS: CRITICAL RECEPTION; VICTOR HUGO; THE LAST DAY OF A CONDEMNED MAN; LES MISÉRABLES; ROMANTICISM.
“Das revoluções abri o abismo imundo?
É porque é preciso um caos a quem quer fazer um mundo;
É porque uma grande voz em minha noite falou;
É porque enfim eu queria, levando à meta o povo,
Com o século que desaba
Confrontar o século findo”
( Victor Hugo, 1828 – Tradução de Jorge Bastos)[1].
“Esperemos que um dia o século XIX, política e literariamente, se possa resumir numa frase: a liberdade na ordem, a liberdade na arte”(Victor Hugo, 1828 – Tradução de Jorge Bastos)[2].
1 DA MORAL, DA CRÍTICA LITERÁRIA E DO ROMANCE NO SÉCULO XIX
Moral, de acordo com o Dicio, Dicionário Online de Português, possui como uma de suas possíveis significações aquilo “que está de acordo com os bons costumes; que explica, disciplina, ensina”[3]. Se, contemporaneamente, é difícil sustentar uma análise de literatura que objetive classificar o valor da obra com base no quão ajustado o seu conteúdo está a essa definição, por outro lado, no entanto, foi esse o principal critério adotado no século XIX para guiar a crítica literária. Considerando que, ao longo da presente pesquisa, trabalharemos com O último dia de um condenado e Os Miseráveis, romances de Victor Hugo, que foram publicados, respectivamente, em 1829 e 1862, compreendemos indispensável que se iniciasse com uma aclimatação ao contexto social, político e literário que norteava a França neste período. Segundo Maria Teresa de Freitas (1986), quando se trata de Hugo, especialmente, a história de sua vida e de sua obra é indissociável da História de seu país e, ainda mais, de seu século, uma vez que, de forma direta ou indireta, o escritor esteve ligado às grandes revoluções e evoluções ocorridas no tempo em que viveu, influenciando-as ou sendo influenciado por elas.
No século XXI, Victor Hugo figura entre os grandes nomes que compõem o cânone da literatura ocidental. A nós, que somos apresentados à imagem de Hugo já consolidada e interligada a essa posição canônica, a apreensão de que, durante os anos oitocentistas, a obra hugoana despertou aos seus contemporâneos, em igual medida, comoção e cólera, admiração e repulsa, pode se parecer como um corpo estranho e ininteligível. É a explorar essa relação entre literatura e sociedade, precisamente, que nos dedicaremos a seguir. Para tanto, iniciaremos com uma breve apresentação acerca dos critérios moralistas das instituições dominantes que permeavam a divisão entre o que seria uma boa, correta, apropriada e uma má, escandalizante, periculosa literatura; o senso comum fomentado de que a prática literária, principalmente o romance, poderia se caracterizar como um perigoso artifício para a subversão social e como isso reflete nas análises literárias que eram realizadas na época.
Conforme exposto por Andréa Correa Paraíso Muller (2012), no século XIX, acreditava-se que a literatura dispunha do poder de influenciar as pessoas e determinar os seus comportamentos, de modo que a distinção entre ficção e realidade era altamente frágil, quando não inexistente. Sendo assim, o conteúdo apresentado e desenvolvido nos textos literários serviria como um facilitador da manutenção da ordem social, caso o caráter da obra fosse edificante, com temas instrutivos, castos e pertinentes à Igreja, ou, na perspectiva oposta, fazia-se igualmente necessário garantir que uma literatura filosófica, científica e, mais tarde, com o surgimento do romance, popular e exploradora de temáticas que poderiam despertar vontades e ímpetos políticos, religiosos e carnais marcados como errôneos, fosse profundamente reprimida e a sua chegada às massas fosse evitada. Nesse sentido, “a Igreja não era a única instituição a proibir livros. O Ministério Público francês também posicionou-se contra diversos escritores no século XIX. […] Em meados do século XIX, não era uma situação incomum uma obra literária ser alvo de processo judicial” (MULLER, 2012, p. 24). Percebe-se, portanto, que era de grande interesse às organizações de poder oitocentistas que a produção romanesca fosse controlada e os romancistas mais audaciosos fossem duramente punidos, a fim de evitar que o controle social que exerciam começasse a ser questionado e ameaçasse ser rompido.
Em meio a esse contexto, não causa surpresa que a moral viesse a se tornar o principal critério para o julgamento de uma obra. O termo não possuía clareza de significado e, a serviço dos juristas, dos religiosos e dos críticos literários, poderia adquirir diversas finalidades: tornar-se uma justificativa para levar ao tribunal o autor de um romance cujo conteúdo desagradasse, sob a acusação de atentado contra a “moral pública” e a “moral religiosa”, proibir a circulação de uma obra entre os leitores católicos por sua natureza imoral e, no campo da crítica, o mais importante para nós, era a moral – ou a sua suposta falta – que ditaria o que se diria a respeito de uma obra e de um escritor, não os seus aspectos artísticos. Como ressalta Antoine Compagnon, em O demônio da teoria:
Por crítica literária compreendo um discurso sobre as obras literárias que acentua a experiência da leitura, que descreve, interpreta, avalia o sentido e o efeito que as obras exercem sobre os (bons) leitores, mas sobre leitores não necessariamente cultos nem profissionais. A crítica aprecia, julga; procede por simpatia (ou antipatia), por identificação ou projeção: seu lugar ideal é o salão, do qual a imprensa é uma metamorfose, não a universidade; sua primeira forma é a conversação (COMPAGNON, 1999, p. 21-22).
Sob esse viés, é possível ponderar que, a crítica literária do século XIX, da maneira como se manifestou, está significativamente alinhada à definição supracitada realizada por Compagnon. As análises literárias propostas não se construíam em cima de nenhum princípio técnico ou teórico fundamental e, consequentemente, os aspectos linguísticos e construtivos do texto literário eram negligenciados frente ao maior interesse do crítico pelo conteúdo apresentado e o seu alinhamento, ou dissonância, ao que era socialmente visto com bons olhos e panfletado como correto. Sendo assim, o teor ideológico de um romance possuía muito mais relevância para o crítico do que os recursos estilísticos empregados em seu desenvolvimento, de forma que, como nos diz Compagnon, o que definiria se a opinião emitida pelo crítico a uma obra seria favorável ou desfavorável era a simpatia ou antipatia sentida pelo assunto abordado, resultando em comentários parciais, providos de concordâncias ou discordâncias pessoais e isentos de qualquer tentativa de distanciamento.
Convém ressaltar que, no século XX, os estudos da literatura avançam progressivamente em uma direção oposta. De acordo com Roberto Acízelo de Souza (2004, p. 36), é possível encontrar dois claros pontos, interligados, em comum entre as correntes teóricas surgidas a partir dos anos mil e novecentos: o desejo de criar uma nova concepção para os estudos literários, que estaria expressamente voltada ao rompimento com os parâmetros do século XIX. O texto literário passa a ser analisado com base em sua coerência interna, de modo que o teórico literário se vale, primordialmente, de aspectos linguísticos, e não mais de fatos exteriores, como as relações sociopolíticas e a biografia do autor.
Uma vez que Hugo, o nosso interesse de estudo central neste trabalho, é parte do grande século XIX, consideramos importante que se abrisse um breve panorama acerca da crítica literária no período e da maneira como executava a sua prática. Essas informações serão de suma relevância para aportar as discussões que serão feitas a seguir. Mas, por ora, vejamos o romance, ainda não devidamente evidenciado e distinguido. O que faz com que cause um impacto tão grande e ressalvas ainda maiores? E, principalmente, o que caracteriza e distingue o seu potencial revolucionário, que é rapidamente percebido e temido?
De certo, há dois fatores que permeiam o romance e que podem ser destacados como pilares para o levantamento de uma série de suspeitas que recaem sobre si: em primeiro lugar, trata-se de uma experiência estética nova, experimental, sem regras preestabelecidas e sem modelos clássicos do mesmo gênero que possam servir de comparação e embasar a distinção entre o que seriam os bons e os maus romances, como acontecia com o drama, por exemplo. Não por acaso, é o próprio Victor Hugo, em seu Prefácio à peça Cromwell, datado de 1827, quem irá se levantar contra os padrões clássicos vigentes e irá advogar a favor do drama romântico, o novo drama, o drama moderno, que rompe com a tradição, com os modelos e privilegia a inovação, a criatividade e a busca pela harmonização de elementos contrários. Para Hugo, não se deve pedir conselhos senão à natureza, à verdade e à inspiração, sendo mais que necessário, urgente, que se goze da liberdade no campo das artes e se desatem as amarras das limitantes regras canônicas. Em seu manifesto, Hugo irá ironizar o paradoxo a que chegaram os críticos adeptos a modelos: a um drama que segue os preceitos clássicos, diria-se: “isto se assemelha a tudo”, logo não tem nada que o diferencie e não possui valor. A um drama que se distancie dos clássicos, diria-se: “isto não se assemelha a nada”, logo está em desacordo com as referências prestigiadas que espelhamos e também não possui valor.
Hugo irá criticar a beleza absoluta que a Antiguidade derrama sobre tudo e reivindicar que é preciso adotar uma concepção teatral que englobe a dualidade da vida, tal como a dualidade do homem, o sublime e o grotesco, o feio e o belo, contraste presente em tudo que é vivo. Na concepção hugoana, “o teatro é um ponto de ótica. Tudo o que existe no mundo, na história, na vida, no homem, tudo deve e pode aí refletir-se, mas sob a varinha mágica da arte” (HUGO, 2007, p. 79). Podemos ver se sobressair o desejo de uma expressão artística que se encarregue de assuntos atuais, que pinte a cor local e se volte à construção do futuro, sem predominância dos conceitos que guiaram o passado. Com esse manifesto, Hugo se consolida como precursor do Romantismo na França. Como expõe Antoine Compagnon em Os cinco paradoxos da modernidade, trata-se de um período no qual “a relação da arte com a atualidade é fortemente acentuada: romântico é aquele que se mostra fiel ao mundo atual” (CONPAGNON, 2010, p. 22). Nessa perspectiva
O sentido moderno de literatura (romance, teatro e poesia) é inseparável do romantismo, isto é, da afirmação da relatividade histórica e geográfica do bom gosto, em oposição à doutrina clássica da eternidade e da universalidade do cânone estético. Restrita à prosa romanesca e dramática, e à poesia lírica, a literatura é concebida, além disso, em suas relações com a nação e com a sua história. A literatura, ou melhor, as literaturas são, antes de tudo, nacionais (COMPAGNON, 1999, p. 32).
Sendo assim, é previsível que o romance se torne um objeto aterrorizante aos defensores dos clássicos, pois se encontra em uma condição privilegiada inegável: não há como julgar e atribuir regras e valores estéticos a uma forma literária de vanguarda, que se desenvolve enquanto se discute sobre ela.
No início do século, existe uma predominância do roman noir, o romance gótico, caracterizado, conforme Ana Luiza Silva Camarani (2017, p. 180), pelo exagero e a efervescência de horrores evidenciados por esse tipo de literatura. “O recurso à literatura frenética concentra-se também nos horrores do mundo real, seguindo uma veia funesta e sanguinária dirigida para crimes, perversões e libertinagens[4]” (CAMARANI, 2017, p. 180). Por volta de 1820, no entanto, a influência do inglês Walter Scott chega à França e o seu romance histórico passa a ser difundido. “E, com a história, entra na literatura a realidade e sai o estereótipo, isto é, a intriga romanesca é colocada dentro de uma realidade social, e a psicologia do personagem é revelada por diálogos verossímeis” (MORETTO, 2003, p. 12). É a partir daí que nos encaminhamos para o romance romântico que, segundo Candido (2011, p. 185), reverbera como um “romance social, por vezes de corte humanitário e mesmo certos toques messiânicos, focalizando o poder como tema literário importante.” É nesse momento que se integra ao romance o segundo elemento que gostaríamos de enfocar.
Quando é conferido caráter social ao romance, passa-se, mais do que nunca, a se preocupar com ele. Como expõe Andréa Correa Paraíso Muller (2012), algumas camadas da sociedade eram consideradas mais suscetíveis à influência dos maus romances: os jovens, as mulheres e os membros de grupos populares, geralmente operários e operárias. Diferente dos escritos religiosos, por exemplo, que muitas vezes eram interpretados e passados adiante por meio da leitura de uma autoridade religiosa, os romances eram acessíveis a todos e, pior, encarregando-se de temas sociais, poderiam despertar em seus leitores um olhar crítico à realidade vigente e fomentar sentimentos de transgressão para com a ordem. Temia-se a relativização da autoridade, do pai, do marido, do patrão, do sacerdote. O romance era considerado capaz de “alterar as ideias morais de um povo” (POITOU apud MULLER, 2012, p. 48). Vê-se, novamente, uma referência à moral. E a concepção de moral no século XIX passa a ganhar um significado claro: é moral tudo aquilo que não ambiciona constituir mudanças. Para encerrar a nossa investigação inicial sobre o romance, observemos:
O espírito revolucionário! Quem lhe deu seu poder de propaganda? Quem o armou de tantas seduções? […] Não foi essa doutrina atraente do direito à felicidade, essa perspectiva de gozos materiais que fizeram brilhar aos olhos de todos os deserdados?
Esse sensualismo que tende todos os dias a entrar mais em nossas ideias e em nossos hábitos, que nasceu e se desenvolveu primeiro nas classes médias, a má literatura deste tempo o inoculou o quanto pode nas classes operárias; e ela se fez uma força em proveito do socialismo.
Não somente todo mundo leu romances como não se leu outra coisa. E o povo, o povo que aprendeu a ler, não se lhe pôs outra coisa nas mãos, para satisfazer sua necessidade de curiosidade e de instrução, senão romances, e que romances! (PITOU apud MULLER, 2012, p. 54-55).
Ou seja, o romance é perigoso porque não é controlável. Porque é acessível. Porque não se pode domá-lo nem em termos de forma nem em termos de conteúdo. Porque dialoga diretamente com aqueles que era preferível que não desenvolvessem, sozinhos, as suas próprias crenças e aspirações: os jovens, as mulheres, o povo. Que o romance os guiasse, era inconcebível. Deveriam continuar a ser guiados por maridos, pais, governantes, patrões, sacerdotes. E se o romance foi considerado algo tão profundamente periculoso, é porque, nas mãos dos escritores românticos, principalmente nas de Victor Hugo, ele serviu ao ideal. E um ideal que é dissonante às ideologias dominantes, configura uma ameaça.
2 UMA AMBIÇÃO POLÍTICA E LITERÁRIA: O ÚLTIMO DIA DE UM CONDENADO
“O poeta em dias ímpios
Vem preparar dias melhores
Ele é o homem das utopias;
Com os pés aqui, o olhar além.
Ele é quem, sobre as cabeças,
Em qualquer tempo, como os profetas,
E em sua mão, que tudo pode conter,
Deve, insultado ou louvado,
Como uma tocha que segurasse,
Fazer brilhar o futuro!”
(Tradução de Jorge Bastos)[5].
Em 1828, Hugo começa a traçar as primeiras linhas de O último dia de um condenado, movido por urgências internas e motivações sociais. À luz do iminente nascimento do filho, os constantes contatos com a pena capital que compuseram a sua vida parecem mais vívidos do que nunca. É só em 1829, porém, que a primeira edição do romance será publicada, de forma anônima[6]. A data escolhida para a publicação do romance não foi por acaso – em fevereiro de 1829, a questão da pena de morte para falsificadores estava prestes a ser discutida na Câmara dos Pares[7]. Era necessário, então, espalhar o assunto pelas ruas parisienses. Sendo, para Hugo, uma das funções do poeta a de guiar o povo em direção ao progresso, é claro que ele se certificou de que a questão se fizesse notável por meio de sua pena. Dada a visibilidade que o romance vinha adquirindo, como exposto anteriormente, não poderia haver instrumento melhor para fomentar a discussão. E Hugo conseguiu. Que se falasse sobre o assunto e, principalmente, sobre o seu romance. Pelo que vimos, pode-se imaginar que a recepção da obra não seria calorosa. Segundo Max Gallo, biógrafo de Hugo em Eu sou uma força que avança! Tomo I: 1802-1843, antes mesmo que o O último dia de um condenado saísse oficialmente, já se agitavam burburinhos a seu respeito, cujas críticas arbitrárias preconcebidas incomodavam a Hugo profundamente.
Alguns já murmuravam que O último dia de um condenado, cuja publicação estava sendo anunciada pelo editor Gosselin, era um jogo estéril, preocupante, e um atentado à moral.
Essas observações, apenas cochichadas, mas pressentidas, o revoltavam: “A obra é boa ou ruim? Este é o campo da crítica… A se olharem as coisas de cima, não há em poesia assuntos bons ou ruins, mas bons ou maus poetas. Tudo, aliás, é assunto, tudo se remete à arte, tudo tem cidadania na poesia… Que não se pergunte então o motivo de determinado assunto…
Abrindo a edição de 21 de janeiro de Le Globe, viu o quanto seu receio se justificava. Sequer se comentavam seus argumentos, mas criticava-se com violência o assunto escolhido (GALLO, 2006, p. 262).
Percebe-se, novamente, um chamado à moral como conceito motor e justificativo de todos os numerosos ataques que se sucederiam ao romance. Do ponto de vista comercial, no entanto, a obra atingiu, com êxito, o sucesso e os exemplares impressos se esgotaram rapidamente. Seria na terceira edição que Hugo faria duas significativas modificações: assinaria o livro com o seu próprio nome e adicionaria um novo prefácio, intitulado “Uma comédia a propósito de uma tragédia”, um sainete, em formato dramático, onde ironizava as principais críticas destinadas ao romance e ao seu autor, por meio das falas de personagens caricaturados[8]. No Romantismo, convém ressaltar, os paratextos, principalmente os prefácios, adquirem relevante papel: são usados, pelos escritores românticos, para caucionar a obra a que pertencem e a descodificar, haja vista a inovação presente no movimento. Funcionam, ainda, como instrumentos para se refletir em torno da questão literária e como uma maneira do autor tentar controlar a sua produção, uma vez que o público leitor estava cada vez mais abrangente, buscava-se, também, instruir os leitores acerca de como as novas obras deveriam ser lidas (SOARES, 2003, p.15). Para a obra de Hugo, os paratextos são especialmente importantes e, no caso de O último dia de um condenado, os prefácios adicionados ao longo das novas edições se referem não somente ao romance do qual fazem parte, como dialogam de maneira pertinente com o grande contexto social, político e literário que envolvia a França no século XIX. Buscaremos, nestas linhas que se seguem, trabalhar com a intertextualidade entre as críticas feitas e as respostas de Hugo por intermédio de seus prefácios.
Para começar, é fundamental que se esclareça que o romance de Hugo foi atacado por todos os aspectos possíveis. Do ponto de vista temático, considerava-se inconcebível que um escritor tratasse da questão da pena de morte, literariamente, a partir da perspectiva do condenado e dos sofrimentos psíquicos e físicos aos quais é submetido. No roman noir, não raramente a condenação à morte era retratada, mas isso era feito focalizando os elementos externos ao condenado: o carrasco, a guilhotina, o horror, o crime, a brutalidade sanguinária, o grotesco, como concepção de Hugo. O condenado à morte era somente um objeto que figurava nesse cenário fantástico a fim de propiciar que um fim fosse atingido. Hugo irá adotar o inverso. O seu romance é narrado em primeira pessoa, pelo próprio condenado, a partir do momento em que a sua sentença é proferida, em formato diarístico. Dessa maneira, Hugo impossibilita que o leitor se mantenha alheio ao sofrimento do seu condenado e que a sua morte seja espetacularizada. Do ponto de vista formal, a obra de Hugo será arduamente criticada por não mencionar qual o crime cometido pelo condenado, retirando, do romance, o singular, o característico distintivo e o transformando em um libelo geral contra a pena de morte. A ausência de uma ação concreta, que é substituída por descrições e de uma narrativa com começo, meio e fim claros, como era esperado na época, também causou estranhamento e ressalvas. A falta de remorsos e de arrependimentos no condenado de Hugo será outro ponto frequentemente apontado pelos críticos. Por fim, as críticas se seguem ao autor, questionando a sua índole e as suas intenções com o romance.
Charles Nodier, em Le Journal des Débats, escrevera: Não relerei O último dia de um condenado: Deus me livre! É um pesadelo a não ser lembrado de dia, para não voltar a ele à noite… Por que esse livro?… Concluindo, obras assim não podem absolutamente dar popularidade a um escritor. Têm tão seguro e horripilante efeito que, para a maioria dos leitores, é difícil separar o escritor do assunto, e prestar homenagem a quem de direito, pelos prazeres da leitura… (GALLO, 2006, p. 264-265).
Muito se falou sobre a sensação – absolutamente horripilante – que O último dia de um condenado teria provocado em seus leitores. Ao humanizar o seu condenado por meio de seus relatos brutalmente sinceros e dolorosos em primeira pessoa, Hugo ambicionava que emergisse o ser humano, o homem que sofre e encarna uma série de sentimentos e temores que são comuns a todos os indivíduos, deixando o criminoso em segundo plano. Ao atingir esse efeito, era certo que o leitor se sentiria afetado pela identificação, mesmo a contragosto, com o condenado. Ou, no pior dos casos, com o incômodo em sua consciência, ao ser inserido em uma tão infeliz e comum realidade, vista com cotidiana indiferença. A críticas como a de Nodier, Hugo ironizaria posteriormente em:
Senhor Gordo
Ninguém tem o direito de fazer o eleitor experimentar sofrimentos físicos. Quando assisto a tragédias, as pessoas se matam, mas e aí? Isso não me faz nada. Mas esse romance, ele nos eriça os cabelos, ele nos causa arrepios, ele nos provoca pesadelos. Fiquei de cama dois dias, depois de tê-lo lido (HUGO, 2021, p. 19).
Jules Janin, por sua vez, seria um dos críticos mais empenhados de O último dia de um condenado. No Jornal La Quotidienne, escreveu a respeito do romance de Hugo: “O sucesso não pode justificar um escritor, o talento não pode desculpá-lo, nada o perdoa por aviltar uma alma de homem, por arranhar a paz de uma nação…” (GALLO, 2006, p. 265). Em seu prefácio de O burro morto e a mulher guilhotinada, provoca:
O autor deste livro não é daqueles que recusam à crítica o direito de interrogar um escritor sobre sua obra, e de perguntar a ele para que serve tal assunto? Por que esse herói, e de onde ele vem? (…) Para uma pergunta como essa, ele não saberia responder, na verdade [9].
Após a publicação de O último dia de um condenado, alguns escritores do período escolheram demonstrar as suas ressalvas ao romance de Hugo por meio de paródias literárias, nas quais buscam ridicularizar o que era visto como exagerado e de mau gosto na narrativa hugoana. Como se pode observar acima, Jules Janin se vale de um paratexto para evidenciar ainda mais o seu intuito de contestar a Hugo e ao seu romance. Sem dúvidas, essa talvez tenha sido a crítica mais recorrente: quem é esse condenado? O que ele fez? Era necessário que o leitor pudesse julgá-lo e decidir se era merecedor, ou não, de ir para a guilhotina com base em sua história e em seu crime. Esse sentimento de frustração que o romance de Hugo gerou ao público por ocultar todos os elementos que diferem um condenado de outro e que costumavam tornar mais fácil a sua acusação ou a sua defesa, é atenuado na intencionalidade do próprio escritor, que, no capítulo XLVII, no qual era esperado que se encontrasse uma carta do condenado confidenciando o percurso de sua vida, substitui-a por uma nota do editor: “ainda não conseguimos encontrar as folhas que se prendiam a esta. Talvez, como as que seguem parecer indicar, o condenado não teve tempo de escrevê-las” (HUGO, 2021, p. 142). O próprio editor de Hugo, Gosselin, “garantido por seu contrato, em sua qualidade de livreiro-editor, quis também sugerir modificações no texto de O último dia de um condenado” (GALLO, 2006, p. 262), pedindo que, para a segunda edição do romance, Hugo incluísse o suposto capítulo
subtraído em que a história do condenado seria contada, o que foi energicamente negado pelo autor. No mais, nas palavras de Janin podemos destacar mais um elemento oportuno às nossas reflexões: a convicção de que o romancista devia explicações para a crítica e que uma obra precisaria ter uma razão de ser – observa-se presente a perspectiva moralista e limitante que pairava sobre o romance.
Nesse sentido, vejamos um diálogo entre o filósofo e o poeta elegíaco, personagens manipulados por Hugo em seu sainete:
Filósofo
Sim. E como o senhor dizia ainda há pouco, caro poeta, não há ali nenhuma verdadeira estética. Não me interesso por uma abstração, por uma ideia pura. Não vejo ali nenhuma personalidade que se adapte à minha. E depois, o estilo não é nem simples nem claro. Exala arcaísmo. Não é isso mesmo que o senhor dizia?
O poeta elegíaco
Como poderia interessar? Comete um crime e não sente remorsos. Eu teria feito totalmente ao contrário. Teria contado a história do meu condenado. Nascido de pais honestos. Uma boa educação. Amor. Ciúme. Um crime que não é um crime. E depois remorsos, remorsos, muito remorsos. Mas as leis humanas são implacáveis: ele deve morrer. E então eu teria tratado a minha questão da pena de morte. E já não era sem tempo (HUGO, 2021, p. 20).
Os remorsos, ponto importante. Um dos principais elementos retratados nas paródias relacionadas ao O último dia de um condenado. Conforme nos mostra Sonja Hamilton em seu artigo Fantôme littéraire de Hugo: les lendemains du Dernier jour d’um condamné, temos dois bons exemplos disso: no romance No dia seguinte ao último dia de um condenado, Joel Cherbuliez trata sua questão da pena de morte com a construção de uma atmosfera fantástica macabra, que remete ao roman noir, onde todos os condenados são postos frente a vítima que assassinaram. Nesse encontro, o remorso será inevitável ao seu condenado: “Remorso! Eu pude matar um homem! (…) essa lembrança é um ácido corrosivo que se infiltra em meu coração, penetra todas as fibras e as torce em todas as direções”[10] (HAMILTON, 2001, p. 80). Posteriormente, Cherbuliez ainda adicionaria uma reflexão, questionando como seria possível que um autor esquecesse dos arrependimentos ao descrever o último dia de um condenado à morte. Para ele, o sofrimento da consciência, que só teria descanso com o arrependimento completo, nem se comparava aos impostos pelo homem.
Ainda de acordo com Sonja Hamilton, em As Memórias de um Enforcado de Boa Família é apresentado um condenado que, após a sua execução por enforcamento, observa, de outro plano, a mãe chorando próxima à forca e alcança o arrependimento absoluto, livrando-se dos males morais da consciência. “Eu fui culpado! Cruéis tormentos! Remorsos que ultrapassam meus crimes! Vocês finalmente me iluminam; há um Deus vingador, eu o vejo e tremo”[11] (HAMILTON, 2001, p. 81). Como sabemos, a Igreja possuía notável poder e influência neste período e era justamente a religião que embasava um dos mais fortes argumentos a favor da pena de morte: tratava-se de um ato de vingança, de reparação e, ao ter a sua vida ceifada, o criminoso se arrependeria e acertaria as contas com Deus. No prefácio de 1832, Hugo se coloca absolutamente contrário a esse pensamento: “se vingar é próprio do indivíduo, punir é de Deus. A sociedade está entre os dois. O castigo está acima dela, e a vingança, abaixo. Nada de tão grande ou de tão pequeno lhe convém. Ela não deve ‘punir para se vingar’; ela deve corrigir para melhorar” (HUGO, 2021, p. 174).
Como esperado, o condenado de Hugo iria para o caminho oposto:
Neste momento supremo em que me recolho em minhas lembranças, vejo meu crime com horror; mas gostaria de me arrepender com mais força ainda. Eu sentia mais remorsos antes da condenação; desde então, parece que só há lugar agora para pensamentos de morte. Contudo, eu gostaria realmente de me arrepender de verdade (HUGO, 2021, p. 119).
A condenação, a espera pela morte em uma prisão que é “uma espécie de ser horribilíssimo, completo, indivisível, metade edifício, metade ser humano” (HUGO, 2021. p. 82), que o submete a torturas físicas e psicológicas que terão o seu fim, junto com ele, na guilhotina, endurecem o coração do condenado de Hugo e o afastam do arrependimento, “sinto meu coração cheio de raiva e exasperação. Acho que o bolso de fel acaba de estourar. A morte nos torna maus” (HUGO, 2021, p. 100). Sendo assim, Hugo busca estabelecer uma nova perspectiva sobre a questão da pena de morte, que rompe com a ideia de que a condenação e a execução de um criminoso teriam caráter expurgatório. Em seu prefácio, Hugo mobiliza os seus personagens para trazerem o Antigo Regime à discussão e, assim, com um exercício de comparação, destaca-se a concepção de que a possibilidade de existência de uma literatura engajada caracterizaria um grave problema à ordem social, como se era difundido por alguns grupos, à medida em que novos debates, até então impensáveis, poderiam ser levantados.
O cavaleiro
Pois sim, procurador do rei! E a constituição! E a liberdade de imprensa! Entretanto, um poeta que pretende suprimir a pena de morte, convenhamos, é odioso. Ah! Ah! No Antigo Regime, alguém que se tivesse permitido publicar um romance contra a tortura!… Mas desde a tomada da Bastilha, pode-se escrever sobre tudo. Os livros fazem um mal terrível.
O senhor Gordo
Terrível. Estávamos tranquilos, não pensávamos em nada. De vez em quando cortava-se uma ou outra cabeça na França, não mais que duas por semana. Tudo isso sem alarde, sem escândalo. Não diziam nada. Ninguém nem pensava nisso. Nem um pouco. E eis um livro… um livro que dá uma dor de cabeça horrorosa!
O poeta elegíaco
É certo que os livros são com frequência um veneno subversivo da ordem social (HUGO, 2021, p. 23-24).
Ao trazer para os seus próprios paratextos os comentários que vinham sendo feitos, encarnados em personagens exagerados e que beiram o ridículo, Hugo os enfraquece e os anula em si mesmos, visto a ausência de fatores racionais que os sustentem. No trecho supracitado, observa-se, desenhado por Hugo, o contexto de objeção à inovação literária que cobria a França no século XIX, discutido na introdução deste trabalho. Com o avanço do romance e a criação de uma prática literária não só mais acessível ao povo, como também mais interessada na abordagem de questões socialmente relevantes, tornou-se mais difícil evitar que certos assuntos, confortavelmente ignorados, viessem à tona, sob uma perspectiva crítica e reformista.
Após conferir a sua assinatura a O último dia de um condenado, o próprio Hugo foi alvo de diversos ataques pessoais. Suas motivações foram acusadas de serem antes financeiras e estéticas do que sociais. De acordo com o exposto em Hamilton (2001), para o autor anônimo de Le dernier jour d’un employé, o romance de Hugo se tratava de algo superficial e que não possuía nenhuma verdade, pois, enquanto pessoas eram, de fato, executadas e amigos próximos compartilhavam de seus sofrimentos, Hugo teria que se torturar a imaginação para se transportar para uma cabana de Bicêtre de maneira ficcional, haja vista que essa seria uma realidade muito distante dele. (HAMILTON, 2001, p 79). Em seu prefácio de 1832, Hugo esclarece:
O autor tomou a ideia de O último dia de um condenado não de um livro – não tem o hábito de ir buscar suas ideias tão longe -, mas ali onde todos vocês poderiam tomá-la, onde talvez a tenham tomado (pois quem não escreveu ou imaginou em sua mente O último dia de um condenado?): tão simplesmente na praça pública, na praça de Grève (HUGO, 2021, p. 97).
É no prefácio de 1832, conhecido como o seu prefácio filosófico, que Hugo irá esclarecer o intuito de seu romance e argumentar retoricamente pela abolição da pena de morte. Hugo inicia explicitando que O último dia de um condenado se dedica a “defender a causa de um condenado qualquer, executado num dia qualquer, por um crime qualquer” (HUGO, 2021, p. 158). Tratando-se de uma obra com ambições não somente literárias, mas principalmente políticas, Hugo afirma que se fez necessário que o romance fosse organizado de forma a retirar os elementos pessoais e circunstanciais, para que “a defesa fosse tão ampla quanto a causa” (HUGO, 2021, p. 158). A abstração, tão incômoda para os críticos, era o principal recurso manuseado por Hugo para o objetivo proposto. Hugo retoma o dia em que iniciou a escrita de seu romance, após ter presenciado a execução de Ulbach[12] e confidencia que, desde então, quando novas execuções judiciais são anunciadas, “sua consciência lhe disse que ele não era mais solidário; e ele não mais sentiu em sua fronte aquela gota de sangue que jorra da Grève sobre a cabeça de todos os membros da comunidade social” (HUGO, 2021, p. 160). Identifica-se, nesse discurso de Hugo, um elemento que também despertou ressalvas ao seu romance: o chamado do leitor, a sociedade civil, para dentro das discussões acerca da pena de morte e a culpabilização das posturas indiferentes a ela, pois, como declara Hugo, estaria feliz se, através de seu romance, “conseguiu tornar lamentáveis os que se consideram justos!” (HUGO, 2021, p. 159). Mais à frente, depois de realizar uma contundente argumentação em prol dos condenados em quaisquer circunstâncias, Hugo proclama:
O edifício social do passado repousava sobre três colunas: o padre, o rei, o carrasco. Já faz muito tempo que uma voz disse: os deuses estão partindo! Ultimamente uma outra voz se ergueu e gritou: Os reis estão partindo! É tempo agora que uma terceira voz se eleve e diga: O carrasco está partindo! (HUGO, 2021. p. 184).
Em consonância com Maria Teresa de Freitas (1986), é difícil afirmar qual teria sido a maior motivação de Hugo para a construção de uma obra tão fecunda como a sua: uma ambição desmedida por poder e influência, uma versatilidade confusa que seria um sintoma de seu tempo ou os desejos verdadeiramente humanitários de um poeta preocupado com as misérias sociais. Quanto mais estudamos sobre a vida-obra hugoana, mais uma resposta concreta parece distante. O que podemos dizer, sem hesitações, é que Hugo sempre se sentiu confortável em posições de pioneirismo e acreditou que, por meio de sua literatura, seria capaz de se fazer ouvir e preceder transformações políticas, sociais e literárias. A ousadia empregada na elaboração de O último dia de um condenado fez com que o seu romance cruzasse os limites temporais e geográficos do século XIX na França, o que não aconteceu com as paródias apresentadas ao longo deste texto. Se há em O último dia de um condenado algum mérito indiscutível, é a atemporalidade. Concordamos com Hugo quando ele diz que “o romance é quase uma conquista da arte moderna; o romance é um dos poderes do progresso e umas das forças do gênio humano, nesse grande século XIX” (GALLO, 2006, p. 209). Findo o século, o romance o transpassa.
3 O APOGEU DO IDEAL: OS MISERÁVEIS E A PROMESSA DO FUTURO
“Os fracos, os vencidos, os pequenos, as crianças
Sou caluniado. Por quê? Porque amo
As bocas sem veneno, os corações sem estratagemas
[…]
Meu caminho, branco no céu, é negro na terra
Sofro alternados todos os ventos do exílio
Tenho contra mim quem quer que seja forte, quem quer que seja vil
Os de baixo, os de cima para me abater se unem
Mas que importa? às vezes berços me abençoam
O homem em pranto me sorri, o firmamento é azul
E cumprir seu dever é um direito. Glória a Deus!”
(Tradução de Jorge Bastos)[13]
Je suis calomnié. Pourquoi? Parce que j’aime
Les bouches sans venin, les cœurs sans stratagème.
[…]
Ma route, blanche au ciel, est noire sur la terre;
Je subis tour à tour tous les vents de l’exil;
J’ai contre moi quiconque est fort, quiconque est vil;
Ceux d’en bas, ceux d’en haut pour m’abattre s’unissent;
Mais qu’importe! Parfois des berceaux me bénissent,
L’homme en pleurs me sourit, le firmament est bleu,
Et faire son devoir est un droit. Gloire à Dieu!”
Conforme ponderamos no início deste trabalho, é inegável que, quando se trata de Hugo, a história de sua vida e de sua obra é inseparável da História de seu século e de seu país. Sendo assim, podemos encontrar, nos estudos hugoanos, um vasto material para se pensar o percurso do romance no século XIX e, principalmente, as mudanças ocorridas no modo de se conceber a literatura ao longo desse período – são pontos especialmente relevantes para as reflexões aqui propostas: a inovação estética e temática proveniente do Romantismo, os questionamentos levantados acerca de qual seria o papel do escritor e a finalidade da obra literária e, enfim, a influência que todo este panorama sociocultural exercia nos critérios empregados pelos críticos para a análise romanesca, sempre pautados em aspectos externos e orientados para além da literariedade. Nesse sentido, não poderíamos concluir as nossas discussões sem passar por Os Miseráveis, considerado um dos principais romances do projeto literário de Hugo, um dos mais emblemáticos romances dos anos oitocentistas.
Se O último dia de um condenado se revelou para Hugo em poucos dias, Os Miseráveis viria em seu próprio tempo, incomparavelmente maior. Em 1846, Hugo rascunha as primeiras ideias para o novo romance, inicialmente nomeado As Misérias. Em 1848, interrompe-o. A vida prática e política o chamam: é hora de se concentrar nos acontecimentos da Revolução de Fevereiro. Em 1851, com o Golpe de Estado aplicado por Napoleão III, Hugo parte ao exílio, de onde se dedicaria a protagonizar ferrenha oposição ao proclamado Imperador. É em 1860, somente, que Hugo se sente pronto para retornar ao romance.
“Voltei hoje a escrever Os Miseráveis”, anotou no carnê. “Passei sete meses penetrando com meditação e luz a obra inteira, presente em meu espírito, para que haja absoluta unidade entre o que escrevi há 12 anos e o que vou escrever agora… Retomo (para não mais deixar, espero) a obra interrompida em 21 de fevereiro de 1848” (GALLO, 2006, p. 212).
Não é de se admirar que a elaboração de Os Miseráveis tenha sido, para Hugo, um de seus maiores desafios. O que pretendia em O último dia de um condenado era nítido: erguer-se contra a pena capital, realizar a defesa de todos os condenados à morte. As suas ambições para Os Miseráveis eram um pouco mais complexas: era preciso se tratar de tudo. O romance deveria englobar a totalidade de suas experiências e aspirações. É a grande batalha de sua vida e de sua carreira literária. Em 1862, obtém a sua vitória: Os Miseráveis está pronto para ser publicado. De acordo com o biógrafo Max Gallo (2006), Hugo fez questão de coordenar o processo que antecedeu a publicação do livro, a fim de garantir que o seu romance fosse apresentado ao mundo de maneira que ele julgasse adequada – afinal, era necessário que o público soubesse se tratar de algo grandioso, assim como era para ele. Em suas próprias palavras, “minha convicção é a de que este livro será um dos principais pontos, senão o mais alto, de minha obra” (GALLO, 2006, p. 225).
Deu conselhos, ao editor, para a redação do “prospecto” de apresentação do romance. Devia ser curto e não desvendar o assunto. Devia falar sobretudo de Notre-Dame de Paris, dizendo: “Após a Idade Média, o tempo presente… O que Victor Hugo fez para o mundo gótico, em Notre-Dame de Paris, fez para o mundo moderno em Os Miseráveis. Esses dois livros estarão em sua obra como dois espelhos, refletindo o gênero humano” (GALLO, 2006, p. 218).
Em O último dia de um condenado, Hugo se recusa a acatar as sugestões de seu editor: incluir, no romance, o singular, o característico, o necessário para sanar a curiosidade de quem viesse a lê-lo. Com base no que vimos acima, Gosselin tinha a sua razão. Certamente, adicionar um capítulo contando a história daquele condenado teria feito o romance muito menos absurdo, isentando-o de inúmeras críticas à sua abstração. Que valor teria isso para Hugo? Aparentemente, nenhum. Com base nas fontes aqui apresentadas, podemos dizer que não permitiria alterações em suas obras que não estivessem alinhadas às suas intenções para torná-las mais palatáveis. Com Os Miseráveis não seria diferente. Dada a dimensão do romance, é sugerido por Lacroix, seu então editor, que encurtasse certas partes, diminuísse alguns capítulos. A recusa de Hugo é categórica. Não alteraria uma linha sequer, tudo era importante ao todo. Em uma de suas respostas a Lacroix, Hugo é decisivo:
O drama da consciência, a epopeia da alma, é aí que se situa o livro. É onde está sua novidade e surpresa; é onde vai se encontrar também, não digo o sucesso imediato, mas a certeza definitiva do futuro… Há ação material para todos os gostos e todas as peripécias do drama moral, para os filósofos e reformadores (GALLO, 2006, p. 225).
Hugo acertou nas duas coisas: Os Miseráveis permaneceria para o futuro. No século XXI, trata-se de um dos romances mais amplamente conhecidos e apreciados no Ocidente. No que diz respeito à incerteza do sucesso imediato, sua apreensão era justificável. Por um lado, o romance seria um sucesso de vendas, um fenômeno popular. Como expõe Max Gallo, “operários nas oficinas se cotizavam para poder comprar o livro e tiravam na sorte quem, após todos terem lido, ficaria com o exemplar” (GALLO, 2006, p. 226). Por outro, duras críticas seriam proferidas a ele. Daremos destaque às opiniões emitidas por dois contemporâneos de Hugo cujos nomes são rapidamente identificáveis: Baudelaire e Lamartine.
Em seu primeiro artigo público sobre Os Miseráveis, publicado em 20 de abril de 1862 no jornal Le Boulevard, Baudelaire se demonstrou sutilmente favorável, espraiando-se num meio tom ambíguo (AMARAL, 2003, p. 71-72).
Meu amigo se comove com tudo o que é fraco, solitário e triste; com tudo o que é órfão: atração paterna – mas vê seus filhos em tudo o que precisa ser protegido ou consolado – espírito de justiça e caridade – toneladas de amor pelas mulheres caídas, pelos pobres oprimidos nas pessoas de nossa sociedade – como o acompanhamento constante de uma orquestra, a voz profunda da caridade[14] (BAUDELAIRE apud AMARAL, 2003, p. 72).
Contudo, de acordo com o exposto por Glória Carneiro do Amaral (2003), apenas quatro meses depois, em uma carta privada à sua mãe, datada de 24/08/1862, Baudelaire emite considerações opostas e que ceifam a possibilidade de duplas interpretações:
Você sem dúvida recebeu Os Miseráveis […]. Este livro é imundo e inepto. Eu mostrei, a respeito disso, que possuía a arte de mentir. Ele me escreveu uma carta absolutamente ridícula para me agradecer. Isso prova que um grande homem pode ser um tolo[15] (BAUDELAIRE apud AMARAL, 2003, p. 73).
Charles Asselineau, amigo de Baudelaire, relata o que era dito pelo poeta a respeito de como construiria um projeto romanesco que buscasse se encarregar de uma temática similar a proposta por Hugo com o seu Os Miseráveis, evidenciando um notável contraponto e uma crítica ao humanitarismo romântico hugoano:
“Ah!”, dizia ele, irritado, “o que são esses criminosos sentimentais, que têm remorsos por moedas de 40 sous, que discutem com suas consciências por horas e concedem prêmios de virtude? Essas pessoas pensam como as outras? Eu vou escrever um romance em que vou retratar um bandido, assassino, ladrão, incendiário e corsário, que terminará com esta frase: ‘E sob essas sombras que plantei, cercado por uma família que me venera, crianças que me amam e uma mulher que me adora – desfruto em paz o fruto de todos os meus crimes’”[16] (CELLIER apud AMARAL, 2003, p. 74).
Trazendo as críticas de Baudelaire a Os Miseráveis, não focalizamos somente um parecer contrário a um romance específico. Somos apresentados a dois polos distintos de se pensar a literatura e a função do poeta, personificados em Hugo, o poeta porta-voz, e em Baudelaire, o poeta maldito.
Para Hugo, o poeta é possuidor de dons e deveres messiânicos. É ele quem deve, por meio de sua obra, guiar a nação em direção ao progresso, denunciar as injustiças sociais, dar voz aos oprimidos, combater o retrocesso e travar a luta pela liberdade. O poeta é movido pelo ideal e pelo compromisso com a sociedade, a sua pena serve ao povo. É essa a filosofia que Hugo irá encarnar, orgulhosamente, até o fim de sua vida e sob a qual construiu os seus miseráveis. De acordo com Charles Baudelaire, no entanto, a arte é a própria finalidade da arte. O poeta não deve se preocupar com nada que não seja a própria prática poética. Para Baudelaire, “não há uma ‘obrigação’ em ser poeta e, quando se fala da poesia, não há nada mais importante do que expressar o belo através das formas e da linguagem” (MEDEIROS, 2005, p. 74).
Posto isso, a crítica de Baudelaire ao romance de Hugo é justamente àquilo que o caracteriza. Os seus personagens, repletos de virtudes, de arrependimentos e de ações admiráveis, mesmo nas mais difíceis e controversas situações, são, para a concepção baudelairiana, exagerados, inverossímeis, como não seriam? Eles estão em um plano acima, estão a serviço do ideal hugoano. Segundo Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (2020), o humanitarismo romântico pode se resumir na equação “pobreza mais ignorância mais opressão é igual ao crime”. E, nos diz Antonio Candido (2011, p. 185), “talvez o livro mais característico do humanitarismo romântico seja Os miseráveis, de Victor Hugo”.
Ouçam, senhores juízes, um homem tão rebaixado como eu não tem queixas a fazer à Providência, nem conselhos a dar à sociedade; mas notem que a infâmia de onde me esforcei por sair é sumamente prejudicial. As galés é que fazem os grilhetas. Anotem, se quiserem, essas palavras. Antes de ser forçado, eu era um pobre camponês, muito pouco inteligente, uma espécie de idiota; a prisão modificou-me o caráter. Eu era estúpido, tornei-me mau; era lenha, transformei-me em tição. Mais tarde, a indulgência e a bondade me salvaram, do mesmo modo que a severidade me pôs a perder (HUGO, 2017, p. 399).
Nesse discurso de Jean Valjean, é possível percebermos o elemento cerne da oposição de Baudelaire: a construção sobre-humana das personagens de Os Miseráveis. A princípio, pode parecer simplista o jogo que Hugo propõe entre o bem e o mal: Jean Valjean era um homem sem instrução, mas bom, que é impulsionado, por uma motivação nobre e pelas privativas condições financeiras que possuía, a cometer um crime: roubar um pão para alimentar os sobrinhos. O tempo em que passa preso nas galés, vivendo em condições desumanas, endurece-o, torna-o mau. Mas isso não é culpa dele – a responsabilidade sobre o que Jean se tornou é da sociedade, que o excluiu, o injustiçou e o humilhou. Quando confrontado com a generosidade e o acolhimento do Bispo, o coração de Jean é suavizado e ele se volta, novamente, ao caminho do bem, da justiça e do trabalho. Em uma análise mais profunda, podemos apreender que Hugo aplica, para a construção de seu romance, a harmonização de contrários que já anunciava em seu Prefácio a Cromwell. O sublime e o grotesco estão claramente postos em Os Miseráveis. Como Hugo já propunha, a apresentação de elementos opostos e o contraste que evocam, potencializam um ao outro. O belo e o feio são duas faces desse Jano romântico. Quando Hugo aumenta as qualidades de suas personagens, os aspectos sociais que busca denunciar se tornam mais evidentes. Entre o fantástico e o real está o contrapeso ficcional em que se situa Os Miseráveis.
Em uma veia semelhante a Baudelaire, Lamartine irá realizar uma das mais simbólicas críticas a Os Miseráveis. Em seu ensaio Considerações sobre uma obra-prima ou o perigo do gênio, irá evocar a necessidade de “defender a sociedade, coisa sagrada e necessária, apesar de imperfeita, contra um amigo, coisa delicada” (GALLO, 2006, p. 226). Conforme expõe Mario Vargas Llosa (2012), Lamartine aponta que Os Miseráveis prejudicará muito o povo “desgostando-o de ser povo, isto é, homem e não Deus”. Uma suposta ausência de verossimilhança na construção das personagens de Hugo será novamente questionada e, para Lamartine, o único aspecto que sustenta o romance em todos os seus exageros e irrealidades, é o “talento” de seu autor, que é capaz de persuadir o leitor e conceber um tom realista à sua história, por mais impraticável que seja (LLOSA, 2012, p. 164).
Foi a sociedade que criou a vida? Inventou ela a morte? Foi ela, por último, que produziu a desigualdade, inexplicável porém parte orgânica da natureza e da condição humana? Não, não foi ela, e sim Deus. Compadecê-la, sim, aconselhá-la, muito bem; mas acusá-la, não, porque é irrefletido e bárbaro […] Semear o ideal e o impossível é semear o furor sagrado de decepção entre as massas (LAMARTINE apud LLOSA, 2012, p. 165).
Nas palavras de Lamartine, mais visível que em quaisquer outras, prevalece o que discutimos previamente neste trabalho – o romance, no século XIX, é concebido como um instrumento capaz de influenciar as massas e moldar a sua conduta. Nessa perspectiva, Os Miseráveis será considerado o mais perigoso deles. Lamartine prossegue:
O livro é perigoso porque o perigo supremo em relação à sociabilidade consiste em que, se o excesso seduz o ideal, ele o perverte. Apaixona o homem pouco inteligente pelo impossível: a mais terrível e homicida das paixões que se pode infundir nas massas é a paixão do impossível. Porque tudo é impossível nas aspirações de Os Miseráveis, e a primeira dessas impossibilidades é o desaparecimento de todas as nossas misérias […] se enganardes o homem, este enlouquecerá; e quando, na loucura sagrada do vosso ideal, o deixardes cair de novo na aridez e na nudez das suas misérias, o transformareis num louco furioso (LAMARTINE apud LLOSA, 2012, p. 167).
Aqui está, novamente: o medo de que o romance desperte nas massas trabalhadoras o desejo pela subversão social. Para Lamartine, o perigo de Os Miseráveis se encontra, justamente, na exploração do ideal. Quando as camadas populares, mais passíveis de serem influenciadas, se pusessem a ler o romance de Hugo, seriam apresentadas a um universo que é sedutor e impossível nas mesmas proporções. Como Lamartine já pontuou, por mais absurda que fosse a sua ficção, Hugo era capaz de sustentá-la por meio de seu talento e, o que aconteceria, então, caso o povo, ingênuo e insatisfeito, acreditasse em seus delírios imaginativos e passasse a questionar a organização da sociedade? Virar-se contra ela? E, pior, rebelando-se, subvertendo-se, por um objetivo inalcançável: o ideal difundido por Os Miseráveis. Temia-se que o romance “apressava a Revolução 10 anos!” (GALLO, 2006, p. 226).
O perigo enxergado em Os Miseráveis não era por acaso. Hugo o ambicionou assim, como o seu mais importante projeto literário e conseguiu construir “um romance que por suas dimensões parece competir de igual para igual com a realidade, contrapondo à vida uma ficção ‘total’” (LLOSA, 2012, p. 170). Para o entendimento comum do século XIX, a ficção e a vida real se emaranhavam, de tal forma, que se temia que começassem a comparar: de um lado, o mundo de verdade, de outro, o mundo de Os Miseráveis. E não saberiam ponderar que o segundo tratava de uma ficção, de arte, dado o poder de convencimento de seu escritor. Consequentemente, a desordem seria incontrolável. “A Igreja Católica concordou com Lamartine e, considerando o romance de Victor Hugo perigoso para a saúde dos fiéis, incluiu-o no Índex de livros proibidos em 1864” (LLOSA, 2012, p. 171). A crítica de Lamartine não é senão um dos maiores elogios já escritos ao romance de Hugo, pois, como elucida Llosa:
[…] dificilmente se pode elogiar mais a tarefa criativa de um escritor que dizendo dela que a força contagiosa que emana de suas páginas é tão grande que pode perturbar o reto raciocínio dos seus leitores, convencendo-os de que suas quiméricas aventuras, seus personagens desmesurados, suas truculências e delírios são nada mais, nada menos, que a verdadeira realidade humana, uma realidade possível e acessível, que os maus governos e as artimanhas dos malvados que controlam os poderes terrenais surrupiaram dos seres humanos a quem exploram e dominam, mas uma realidade que estes podem recuperar, materializar, agora que a conhecem e a viram e tocaram na leitura, se, estimulados e urgidos por ela, decidirem agir (LLOSA, 2012, p. 173).
Às considerações de Lamartine, Hugo escreveria:
“Se o radical é o ideal, sim”, confirmava Hugo, “eu sou radical… Minha tendência é a sociedade sem rei, a humanidade sem fronteira, a religião sem livro. Sim, combato o padre que vende a mentira, o juiz que distribui injustiça. Quero universalizar a propriedade, suprimindo o parasitismo… Quero destruir a fatalidade humana. Eu condeno a escravidão, ataco a miséria, ensino contra a ignorância, trato a doença, clareio a noite, odeio o ódio. Isto é o que sou e é por isso que escrevi Os Miseráveis.
Em meu pensamento, Os Miseráveis nada mais é que um livro tendo a fraternidade como base e o progresso como topo” (GALLO, 2006, p. 227).
Nessa declaração, Hugo sintetiza todas as ambições de sua vida-obra. Os Miseráveis é uma soma de todos os seus desejos expressos e de suas causas públicas e, vale a pena destacarmos, em consonância com a postura que adotou ao longo de sua trajetória, são os termos “fraternidade” e “progresso” que usa para resumir as intenções aplicadas ao romance. Em termos políticos, Hugo só teve um compromisso imutável: a liberdade. No que tange ao ideal, sim, aceitava o rótulo de radical. No entanto, ao contrário do que se pode pensar, Hugo não vislumbrava um caminho de revoluções e intensas rupturas e confrontos para a construção desse ideal. A sua grande aspiração declarada era por uma sociedade que agisse em conjunto, que se voltasse aos valores do humanitarismo. Se, para muitos, inclusive Baudelaire, a postura de Hugo poderia ser considerada demasiadamente paternalista e demagoga, o que não se pode contestar é a sua importância para a construção de uma literatura mais engajada e preocupada com as questões sociais, que reverbera até os dias atuais.
Muito da literatura messiânica e humanitária daquele tempo (não estou incluindo Dostoievski, que é outro setor) nos parece hoje declamatória e por vezes cômica. Mas é curioso que o seu travo amargo resiste no meio do que já envelheceu de vez, mostrando que a preocupação com o que hoje chamamos direitos humanos pode dar à literatura uma força insuspeitada. E reciprocamente, que a literatura pode incutir em cada um de nós o sentimento de urgência de tais problemas. Por isso, creio que a entrada do pobre no temário do romance, no tempo do Romantismo, e o fato de ser tratado nele com a devida dignidade, é um momento relevante no capítulo dos direitos humanos através da literatura (CANDIDO, 2011, p. 186).
Como Candido destaca em suas reflexões, Os Miseráveis é um dos romances que resistem frente ao que já envelheceu de vez, ficou para trás. Dois séculos após a sua publicação, mantém-se relevante, continua-se a falar sobre ele.
Por certo, o diferencial presente em Os Miseráveis não é o diálogo que propõe com a sociedade francesa do século XIX, expondo as suas falhas e as suas misérias. O que diferencia, de fato, Os Miseráveis e o mantém vivo à posteridade é a capacidade de Victor Hugo de captar e transpor ao romance aquilo que não é próprio de um momento, de um local específico, mas de toda a civilização ocidental: o ideal. A sua “ficção total” não é outra coisa senão uma utopia do Ocidente. Se é verdade que Os Miseráveis não provocou nenhuma grande revolução, como se temia na época e que a simples proposição de que uma narrativa sentimentalista e conciliadora seria capaz de incitar a rebelião popular possa parecer ridícula hoje em dia, não se pode negar que toda possibilidade de ação é precedida por um pensamento e por um sentimento. E a esses dois últimos, Os Miseráveis fala diretamente.
Em um século no qual as instituições de poder buscavam controlar não somente os atos, mas também o que era pensado e sentido, a leitura do grande romance social de Hugo poderia ser vista, mesmo, como revolucionária, por instigar um novo olhar a temas antigamente conhecidos. Coincidentemente, é em seu ensaio, nomeado Um novo olhar, que Renato Janine Ribeiro faz importantes colocações para pensarmos sobre Os Miseráveis na atualidade:
Os Miseráveis são a grande obra – ao lado de muitas outras, que vendiam bastante na época – não só a mostrar o espetáculo da pobreza, mas a despertar nossos sentimentos pelos mais pobres. É uma maneira de negar que os operários sejam perigosos. Podem até parecê-lo, na sua fúria justa, mas não o são. Toda uma política de solidariedade com eles, de apoio aos explorados, vai ter nos sentimentos de compaixão, difundidos por Victor Hugo, o seu combustível. Essa política poderá até ser criticada, pelos marxistas, como lacrimosa, piegas, mas ela é fundamental para entender como uma cultura de massas, vendidas aos milhares de exemplares (hoje diríamos, aos milhões), passa a tematizar não só o amor infeliz de ricas herdeiras órfãs, mas a infelicidade das massas trabalhadoras (HUGO, 2017, p. 26).
Sem dúvidas, é cabível afirmar que, vista por uma conjuntura anacrônica, a literatura de Victor Hugo pode ser considerada como piegas e superficial. Em seu contexto, entretanto, preocuparam-se com ela justamente por enxergarem em suas linhas um teor revolucionário, um ímpeto transformador, uma força latente que fala à sensibilidade, à consciência, à alma.
Se há algo que podemos ousar propor como fecho das discussões encaminhadas ao longo deste artigo – embora, no que diz respeito a Victor Hugo e a sua obra, tenhamos a sensação de estar, sempre, imersos em um oceano interminável de novas descobertas e urgências de dizer -, trata-se, simplesmente, das palavras do próprio Hugo, em seu prefácio a Os Miseráveis:
Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social, forçando a existência, em plena civilização, de verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade, um destino por natureza divino; enquanto os três problemas do século – a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância – não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis (HUGO, 2020, p. 11).
O apogeu do ideal. A certeza do futuro.
REFERÊNCIAS
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CAMARANI, A. L. S. A literatura frenética no romantismo: a França e o Brasil sob o signo de Satã. In: Itinerários: revista de literatura. Araraquara: UNESP, n. 44, p. 179-193, 2017. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/8676. Acesso em: 16 abr. 2023.
CANDIDO, Antonio. “O Direito à Literatura”. In: Candido, Antonio. Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2011. p. 171-193.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
FERREIRA, Suyan Magally. O último dia de um condenado, de Victor Hugo: paratextos traduzidos e tradução comentada do prefácio de 1832. 2017. 168 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/186552. Acesso em: 24 jan. 2023.
FREITAS, M. T. Literatura e História: o exemplo de Victor Hugo. Língua e Literatura, [S.l.]: USP, v. 15, p. 119-135, 1986. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/linguaeliteratura/article/view/113987. Acesso em: 05 mar. 2023.
GALLO, Max. Victor Hugo, v. 1: eu sou uma força que avança! (1802-1843). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
GALLO, Max. Victor Hugo, v. 2: Este um sou eu! (1844-1885). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. A discussão sobre o direito à literatura em Antonio Candido. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-26/embargos-culturais-discussao-direito-literatura-antonio-candido. Acesso em: 30 abr. 2023.
HAMILTON, Sonja. Fantôme littéraire de Hugo: les lendemains du Dernier jour d’un condamné. Paroles Gelées. Vol. 19/2. University of California: 2001. p. 76-86. Disponível em: https://escholarship.org/uc/item/64h4x7sm#page-1. Acesso em: 16 mar. 2023.
HUGO, Victor. Do Grotesco e do Sublime. São Paulo: Perspectiva, 2007.
HUGO, Victor. O último dia de um condenado. São Paulo: Estação Liberdade, 2018.
HUGO, Victor. Os Miseráveis. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2020.
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LLOSA, Mario Vargas. Tentação do impossível: Victor Hugo e Os Miseráveis. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
MEDEIROS, D. A angústia da influência: Charles Baudelaire e Victor Hugo. In: Littera Online. [S. l.]: UFMA, n. 13, p. 71-87, 2017. Disponível em: https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/littera/article/view/8041. Acesso em: 19 abr. 2023.
MORAL. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2023. Disponível em: https://www.dicio.com.br/moral/. Acesso em: 20 abri. 2023.
MORETTO, F. M. L. Victor Hugo e o Romantismo. In: Lettres Françaises. Araraquara: UNESP, n.5, p. 9-18, 2003. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/lettres/article/view/736. Acesso em: 20 abr. 2023.
MÜLLER, Andréa Correa Paraiso. De romance imoral a obra-prima: trajetórias de Madame Bovary. (2012). 346 fls. Doutorado em Teoria e História Literária (Tese) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012. Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/881737. Acesso em: 20 mar. 2023.
SOARES, Olga Manuela Gomes Gonçalves Moreira. Um olhar sobre a obra em construção: leitura de alguns paratextos de Almeida Garrett. 2003. 128 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Letras, Universidade do Porto, Porto, 2003. Disponível em: http://hdl.handle.net/10216/53696. Acesso em: 23 mar. 2023.
SOUZA, Roberto Acízelo de. Teoria da literatura. São Paulo: Ática, 2004.
[1] No original: “Espérons qu’un jour le dix-neuvième siècle, politique et littéraire, pourra être résumé d’un mot: la liberté dans l’ordre, la liberté dans l’art.”
[2] No original: “Des révolutions j’ouvrais le gouffre immonde? C’est qu’il faut un chaos à qui veut faire un monde; C’est qu’une grande voix dans ma nuit m’a parlé; C’est qu’enfin je voulais, menant au but la foule, Avec le siècle qui s’écoule Confronter le siècle écoulé.”
[3] MORAL. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2023. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/moral/>. Acesso em: 20/04/2023.
[4] O roman noir será mencionado novamente mais a frente, pois é de suma importância para que se possa entender algumas peculiaridades da recepção de O último dia de um condenado.
[5] No original: “Le poète en des jours impies Vient préparer des jours meilleurs. Il est l’homme des utopies, Les pieds ici, les yeux ailleurs. C’est lui qui sur toutes les têtes, En tout temps, pareil aux prophètes, Dans sa main, où tout peut tenir, Doit, qu’on l’insulte ou qu’on le loue, Comme une torche qu’il secoue, Faire flamboyer l’avenir!” (Victor Hugo, 1840).
[6] Do ponto de vista literário, a opção pelo anonimato tornaria o romance ainda mais instigante, pois no prefácio da 1ª edição, Hugo propõe um jogo entre realidade e ficção, buscando promover um efeito de verossimilhança à história de seu condenado. Do ponto de vista político, o governo de Charles X vinha multiplicando o número de execuções e encontrava na pena de morte um dos pilares de sua política penal, que era radicalmente evidenciada e criticada no romance. Desse modo, não era de se estranhar que Hugo optasse por se manter anônimo, ainda que apenas neste momento inicial.
[7] Disponível em: <https://escholarship.org/uc/item/64h4x7sm#page-1> Acesso: 21/04/2023).
[8] FERREIRA, Suyan Magally. O último dia de um condenado, de Victor Hugo: paratextos traduzidos e tradução comentada do prefácio de 1832. 2017. 168 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/186552. Acesso em: 24 jan. 2023.
[9] No original: “L’auteur de ce livre n’est pas de ceux qui refusent a la Critique le droit d’interroger un ecrivain sur son oeuvre, et de lui demander a quoi bon tel sujet? pourquoi ce heros, et d’ou vient-il ?(…) a une pareille question, il ne saurait que repondre, en verite.” (Tradução livre minha). Disponível em <https://escholarship.org/uc/item/64h4x7sm#page-1> Acesso: 22/04/2023).
[10] No original: “Le remords! Moi,j’ai pu tuer un homme! (…) ce souvenir est un acide corrodantqui se glisse dans mon cceur, en penetre toutes les fibres et lestord en tous sens”. (Tradução livre minha). Disponível em: <https://escholarship.org/uc/item/64h4x7sm#page-1> Acesso: 22/04/2023).
[11] No original: “j’ai ete coupable! cruels tourments! remords qui passez mes forfaits! vous m’eclairez enfm; il est un Dieu vengeur, je le vois etje fremis”. (Tradução livre minha). Disponível em: <https://escholarship.org/uc/item/64h4x7sm#page-1> Acesso: 22/04/2023).
[12] “[Hugo] atravessou a praça de Grève. O patíbulo estava uma vez mais montado, e ele viu o carrasco afiar a lâmina da guilhotina, descê-la várias vezes, engraxar os encaixes das madeiras, para a perfeita execução de um miserável de 20 anos, Ulbach, assassino de sua companheira de 18. Leu tudo que concernia ao condenado. Estava impressionado pela vida, ilusões, paixão, crime e conversão de Ulbach. Precisaria, um dia, exprimir seu sentimento por esses condenados à morte.” (GALLO, 2006, p. 244).
[13] No original: “Les faibles, les vaincus, les petits, les enfants/Je subis tour à tour tous les vents de l’exil;/J’ai contre moi quiconque est fort, quiconque est vil;/Ceux d’en bas, ceux d’en haut pour m’abattre s’unissent;/Mais qu’importe! Parfois des berceaux me bénissent,/L’homme en pleurs me sourit, le firmament est bleu, /Et faire son devoir est un droit. Gloire à Dieu!” (Victor Hugo, 1874).
[14] No original: “-l’ami attendri de tout ce qui est faible, solitaire, contristé; de tout ce qui est orphelin: attraction paternelle mais voit ses enfants dans tout ce qui a besoin d’être protegé ou consolé esprit de justice et de charité accents d’amour pour les femmes tombées, pour les pauvres gens broyés dans les engrenages de nos sociétés comme l’accompagnement permanent d’un orchestre, la voix profonde de la charité” (Tradução livre minha).
[15] No original: “Tu as reçu sans doute les Misérables […]. Ce livre est immonde et inepte. J’ai montré, à ce sujet, que je possédais l’art de mentir. Il m’a écrit, pour me remercier, une lettre absolument ridicule. Cela prouve qu’un grand homme peut être un sot” (Tradução livre minha).
[16] No original: “Ah! disait-il en colère, qu’est-ce que c’est ces criminels sentimentaux, qui ont des remords pour des pièces de quarante sous, qui discutent avec leur conscience pendant des heures et fondent des prix de vertu? Est-ce que ces gens-là raisonnent comme les autres hommes? J’en ferai, moi, un roman où je mettrai en scène un scélérat, assassin, voleur, incendiaire et corsaire, et qui finira par cette phrase: Et sous ces ombrages que j’ai plantés, entouré d’une famille qui me vénère, d’enfants qui me chérissent et d’une femme qui m’adore, – je jouis en paix du fruit de tous mes crimes!” (Tradução livre minha).