A denúncia pela literatura de Gloria Anzaldúa contra o preconceito e subalternização linguísticos: um diálogo com Bagno e Mignolo

Marcos Vinicius Rodrigues

Resumo: Este artigo pretende tornar evidente a denúncia feita por Gloria Anzaldúa contra o preconceito, subalternização e silenciamento do espanhol chicano no contexto fronteiriço México / Estados Unidos da América. Por si, essa denúncia ganha endosso no capítulo “How to Tame a Wild Tongue” do romance Borderlands / la Frontera = The New Mestiza (1987), o qual sofre recortes, neste artigo, para fins de análise. Em diálogo com trechos desse capítulo, traz-se fragmentos do pensamento desenvolvido por Marcos Bagno (2007) sobre a temática, a partir de seu livro Preconceito Linguístico: o que é, como se faz, e o conceito de bilinguajamento tratado por Walter Mignolo (2003), tendo-se, por propósito, tornar evidente como a estima pelas línguas subalternizadas mostra-se uma forma de resistência e combate ao preconceito linguístico.

Palavras-chave: Literatura pós-colonial; diversidade linguística; língua híbrida; mestiçagem linguística.

Abstract: This article aims to highlight the denunciation made by Gloria Anzaldúa against the bias, subalternation and silencing of Chicano Spanish in the border context of Mexico / United States of America. Indeed, this denunciation is present in the chapter “How to Tame a Wild Tongue” from the book Borderlands / la Frontera = The New Mestiza (1987). Dialoguing with excerpts from this chapter, fragments of the thought developed by Marcos Bagno on the book Preconceito Linguístico: o que é, como se faz, and the concept of bilingualism treated by Walter Mignolo (2003) are brought, regarding to emphasizes how the esteem for subalternized languages is a form of resistance and fight against linguistic bias.

Keywords: Post-colonial literature; Linguistic diversity; Hybrid language; Linguistic mixing; Linguistic bias.

Introdução

O romance Borderlands / La Frontera = The New Mestiza, de Gloria Anzaldúa, tem, por quinto capítulo (“How to Tame a Wild Tongue”)[1], a construção de uma denúncia contra o preconceito, subalternização e silenciamento do espanhol chicano — no contexto da fronteira entre México e Estados Unidos da América.

Esse capítulo parece ter sido baseado numa memória da autora: uma ida ao dentista. Lá, o atendimento dentário acaba por ser atrapalhado pela língua de Anzaldúa, que empurra a todo momento as bolas de algodão e equipamentos dentários dentro de sua boca. Em tons de raiva, o dentista enuncia comentários contra a língua dela: “’We’re going to have to do something about your tongue’. […] ‘ I’ve never seen anything as strong or as stubborn’ he says” [2] (Anzaldúa, 1987, p. 75). Nessa situação, Anzaldúa se indaga: “How do you tame a wild tongue? train it to be quiet, how do you bridle and saddle it? How do you make it lie down?” [3] (Anzaldúa, 1987, p. 75).

Nesse sentido, deixa-se claro que o corpus de estudo deste artigo são recortes do capítulo “How to Tame a Wild Tongue do romance Borderlands / La frontera = The New Mestiza” (1987), recortes esses, para esclarecer, os quais possuem potencial de diálogo com o pensamento de Marcos Bagno (2007) a partir de sua obra Preconceito linguístico: o que é, como se faz. O diálogo se torna produtivo uma vez que tanto Bagno (2007) quanto Anzaldúa (1987) compartilham pontos de vistas bem semelhantes, assim como se verá.

O pensamento de Bagno, é bom ressaltar, se constrói a partir da análise do português brasileiro e do preconceito sofrido por seus falantes, e não sobre o espanhol chicano ou qualquer outra língua híbrida. Esse fato, todavia, não se torna obstáculo para um diálogo com a denúncia de Anzaldúa (1987), uma vez que ambos discorrem sobre línguas de origem europeia que sofreram uma inevitável transformação em solo americano — o português lusitano, no caso de Bagno (2007), e o espanhol castelhano, bem como o inglês britânico, no caso de Anzaldúa (1987). Assim, não obstantes os caminhos e objetos diferentes de análise, tanto Bagno (2007) quanto Anzaldúa (1987) têm o mesmo propósito: a denúncia e tentativa de superação do preconceito linguístico.

Dito isso, traz-se, neste artigo, em também diálogo com a denúncia de Anzaldúa, o conceito de bilinguajamento trabalhado por Walter Mignolo (2003), em seu livro Histórias Locais / Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar, a fim de evidenciar como o espanhol chicano é um estilo de vida e identidade, conectado à sobrevivência e à história desse povo.

A partir dos diálogos desenvolvidos entre Anzaldúa (1987), Bagno (2007) e Mignolo (2003), este artigo toma para si o propósito de tornar evidente como a estima e amor pelas línguas subalternizadas são armas que podem combater esses fenômenos antidemocráticos — o preconceito, silenciamento e subalternização linguísticos — na fronteira México/E.U.A.

A propósito, este artigo entende por “espanhol chicano” o que Gloria Anzaldúa ressalta por meio do capítulo referido, no qual se lê:
 

For a people who are neither Spanish nor live in a country in wich Spanish is the first language; for a people who live in a country in wich English is the reigning tongue but who are not Anglo; for a people who cannot entirely identify with either standard (formal, Castillian) Spanish nor stard English, what recourse is left to them but to create their own language? […] a language with terms that are neither español ni inglés, but both. We speak a patoi, a forked tongue, a variation of two languages (Anzaldúa, 1987, p. 77, grifos do original)[4].

 

Como pode-se ver, o espanhol chicano constrói-se na confluência entre o inglês e espanhol europeus, sendo, assim, fortemente marcado por neologismos, estrangeirismos e o fenômeno de code-switching — que, no caso do espanhol chicano, mostra-se a alternância entre o inglês, espanhol e a língua indígena nahuatl. Em outras palavras, o espanhol chicano é uma língua híbrida cujo forte atributo é a transgressão à norma-padrão europeia — transgressão essa, como já é de se idear, punida arduamente com preconceito, subalternização e silenciamento.

Nesse sentido, deixa-se claro que o corpus de estudo deste artigo são recortes do capítulo “How to Tame a Wild Tongue” do romance Borderlands / La frontera = The New Mestiza (1987), recortes esses, para esclarecer, os quais possuem potencial de diálogo com o pensamento de Marcos Bagno (2007) a partir de sua obra Preconceito linguístico: o que é, como se faz. O diálogo se torna produtivo uma vez que tanto Bagno (2007) quanto Anzaldúa (1987) compartilham pontos de vistas bem semelhantes, assim como se verá.

O pensamento de Bagno, é bom ressaltar, se constrói a partir da análise do português brasileiro e do preconceito sofrido por seus falantes, e não sobre o espanhol chicano ou qualquer outra língua híbrida. Esse fato, todavia, não se torna obstáculo para um diálogo com a denúncia de Anzaldúa (1987), uma vez que ambos discorrem sobre línguas de origem europeia que sofreram uma inevitável transformação em solo americano — o português lusitano, no caso de Bagno (2007), e o espanhol castelhano, bem como o inglês britânico, no caso de Anzaldúa (1987). Assim, não obstantes os caminhos e objetos diferentes de análise, tanto Bagno (2007) quanto Anzaldúa (1987) têm o mesmo propósito: a denúncia e tentativa de superação do preconceito linguístico.

Dito isso, traz-se, neste artigo, em também diálogo com a denúncia de Anzaldúa, o conceito de bilinguajamento trabalhado por Walter Mignolo (2003), em seu livro Histórias Locais / Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar, a fim de evidenciar como o espanhol chicano é um estilo de vida e identidade, conectado à sobrevivência e à história desse povo.

A partir dos diálogos desenvolvidos entre Anzaldúa (1987), Bagno (2007) e Mignolo (2003), este artigo toma para si o propósito de tornar evidente como a estima e amor pelas línguas subalternizadas são armas que podem combater esses fenômenos antidemocráticos — o preconceito, silenciamento e subalternização linguísticos — na fronteira México/E.U.A.

Terrorismo linguístico

De início, o menosprezo, subalternização e silenciamento do espanhol chicano, no capítulo de “How to Tame A Wild Tongue”, pode ser entendido em duas perspectivas, isto é, uma acadêmica e outra social. A primeira diz respeito à instituição de produção e ensino de conhecimentos técnico-científicos, a saber, a escola, as universidades e assim por diante. A segunda, mais abrangente, diz respeito à sociedade latina (chicana/mexicana), bem como à norte-americana — o que, em si, compreende o mercado de trabalho, a relação hierárquico-colonial entre mexicanos/chicanos e norte-americanos, como também o cotidiano marcado por uma comunicação mestiça.

Por uma questão de destaque, optou-se por fazer tal divisão, neste artigo, em duas perspectivas. Como se verá, a academia, apesar de poder e dever estar inclusa na perspectiva social, tem um papel precursor no preconceito linguístico. É dela que a convenção prescritiva de língua surge, é nas escolas que se tem a propagação dessas normas.

Iniciando esta análise, portanto, na perspectiva acadêmica, um dos primeiros relatos que Anzaldúa (1987) traz, ao capítulo analisado, é de uma memória de infância, da qual a autora se recorda ser pega falando espanhol no recesso da aula, o que, por sua vez, era punido com castigos físicos (Anzaldúa, 1987, p. 75). De outra memória de infância, se lembra Anzaldúa da vez que tentou ensinar a pronúncia de seu nome a um professor norte americano. O ato gerou revolta no docente que pôs de castigo a menina num ato de preconceito e inferiorização do sotaque mexicano: “’If you want to be american, speak ‘American’. If you don’t like it, go back to Mexico where you belong’” (Idem)[5].

A essa situação de preconceito, ainda numa perspectiva acadêmica, Anzaldúa justapõe uma de desigualdade: “At Pan American University, I, and all Chicano students were required to take two speech classes. Their purpose: to get rid of our accents” [6](Anzaldúa, 1987, p. 76). Ora, denuncia Anzaldúa, se não havia nenhum problema no fato do professor de infância pronunciar nomes de origem espanhola com um sotaque americano, por que não se permitiu — aos chicanos, colegas de universidade de Anzaldúa, e à própria — o uso da língua inglesa com um sotaque mexicano? A pergunta soa óbvia e sua resposta — isto é, o preconceito, silenciamento e subalternização do espanhol chicano e seu produto, o sotaque — soa assim mais ainda.

Nesse sentido, a passagem mais icônica para esta pesquisa — na perspectiva acadêmica — mostra-se a: “Even our own people, other Spanish speakers nos quieren poner candados em la boca. They would hold us back with their bag of reglas de academia[7] (Anzaldúa, 1987, p. 76, grifos do original). O trecho, em poucas linhas, se torna exemplo do que Marcos Bagno (2007) chama atenção em seu livro, isto é, a gramática normativa servindo de instrumento de silenciamento e subalternização:
 

Esse ensino tradicional [de cunho prescritivo a partir das reglas de academia], como eu já disse, em vez de incentivar o uso das habilidades linguísticas do indivíduo, deixando-o expressar-se livremente para somente depois corrigir sua fala ou sua escrita, age exatamente ao contrário: interrompe o fluxo natural da expressão e da comunicação com a atitude corretiva (e muitas vezes punitiva), cuja consequência inevitável é a criação de um sentimento de incapacidade, de incompetência (Bagno, 2007, p. 106-107, grifos adicionados).
 

De fato, as reglas de academia mostram-se literalmente “cadeados” para os falantes do espanhol chicano — transgressor do padrão linguístico-acadêmico. Esse silenciamento, por sua vez, não é por acaso. A gramática prescritiva, como aponta Bagno (2007) sobre o português brasileiro, é mais uma das ferramentas utilizadas para a subalternização de grupos sociais:
 

A Gramática Tradicional permanece viva e forte porque, ao longo da história, ela deixou de ser apenas uma tentativa de explicação filosófica para os fenômenos da linguagem humana e foi transformada em mais um dos muitos elementos de dominação de uma parcela da sociedade sobre as demais (Bagno, 2007, p. 149).
 

Dando sequência a esta análise, expõe-se agora o preconceito, silenciamento e subalternização do espanhol chicano numa perspectiva social. O mercado de trabalho, nesse sentido, mostra-se um dos primeiros locais segregatícios a serem denunciados por Anzaldúa: “’I want you to speak English. Pa’ hallar buen trabajo tienes que saber hablar el inglés bien. Qué vale toda tu educación si todavía hablas inglés con un ‘accent’,’ my mother would say, mortified that I spoke English like a Mexican” [8] (Anzaldúa, 1987, p. 75-76, grifos do original). Por si, esse trecho revela que a língua é socialmente tida como um veículo de ascensão. Um inglês com pronúncia não-mexicana, como diz a mãe de Anzaldúa, chega a ser mais importante para um sucesso profissional do que “toda uma educação”.

Aqui, recorda-se Bagno (2007, p. 70) e seu Mito nº 8 “O domínio da norma-padrão é um instrumento de ascensão social”. É claro que Marcos Bagno, com esse mito, discorre sobre como há uma ilusão de que dominar as prescrições gramaticais da Língua Portuguesa se torna ponte para um sucesso socioprofissional — o que se desvia um tanto do caso acima sobre Anzaldúa (1987), um caso de preconceito de língua para língua (inglês/espanhol) e não um preconceito contra variantes (português formal/brasileiro). Todavia, num diálogo, é possível se pensar que também é um mito o fato de que “falar um inglês sem sotaque” é uma garantia de bom trabalho, uma vez que, como afirma Bagno sobre o caso brasileiro,
 

[…] o domínio da norma culta de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha todos os dentes, que não tenha casa decente para morar, água encanada, luz elétrica e rede de esgoto. O domínio da norma culta de nada vai servir a uma pessoa que não tenha acesso às tecnologias modernas, aos avanços da medicina, aos empregos bem remunerados, à participação ativa e consciente nas decisões políticas que afetam sua vida e a de seus concidadãos (Bagno, 2007, p. 70, grifos adicionados).
 

Um inglês sem sotaque mexicano, na mesma perspectiva, não garantiria à autora nem a outro chicano uma oportunidade social de melhora de vida, uma vez que não é apenas sua língua que sofre por uma subalternidade, porém cada aspecto de sua vida sociocultural e política, isto é, o preconceito linguístico “[…] se sustenta num indisfarçado e indisfarçável preconceito social” (Bagno, 2007, p. 152, grifos do original). Excluído das decisões políticas que lhe afetam, o chicano perde a língua por primeiro ter perdido o direito à qualidade de vida, por se encontrar numa situação colonial de inferioridade.

No caso do espanhol chicano, por um lado, um dos agentes desse preconceito mostra-se a sociedade norte-americana: “El Anglo con cara de inocente nos arrancó la lengua. Wild tongues can’t be tamed, they can only be cut out” [9] (Anzaldúa, 1987, p. 76, grifos do original). Por outro lado, o preconceito tem, por agente, a sociedade mexicana: “Pocho, cultural traitor, you’re speaking the oppressor’s language by speaking English, you’re ruining the Spanish language” [10] (Anzaldúa, 1987, p. 77, grifos do original).

Como pode ser visto, a rivalidade e discriminação social encontrada na dicotomia E.U.A., América do Norte / México, América Latina acaba por se estampar na língua. O espanhol chicano, dessa forma, encontra-se encurralado pelas línguas que lhe formam e os preconceitos que as acompanham. Por sua vez, tal preconceito acaba por ter, como consequência, a demonização e subalternização da língua de Anzaldúa: “Chicano Spanish is considered by purist and by most Latinos deficient, a mutilation of Spanish” (Anzaldúa, 1987, p. 77).

Nesse sentido, sem uma sociedade que o aceite, sem uma academia que lhe conserve e produza ciência a partir dele, o espanhol chicano é mutilado: Deslenguadas. Somos los del español deficiente. We are your linguistic nightmare, your linguistic aberration, your linguistic mestizaje, the subject of your burla. […] Racially, culturally and linguistically somos huérfanos — we speak a orphan tongue [11] (Anzaldúa, 1987, p. 80, grifos do original).

A denúncia de orfandade linguística causada por preconceitos (“español deficiente”, “linguistic nightmare”, “linguistic aberration”, “linguistic mestizaje”, no caso de Anzaldúa) é também feita por Marcos Bagno:
 

Assim, da mesma forma como existem milhões de brasileiros sem terra, sem escola, sem teto, sem trabalho, sem saúde, também existem milhões de brasileiros sem língua. […] É claro que eles também falam português, uma variedade de português não-padrão, com sua gramática particular, que no entanto não é reconhecida como válida, que é desprestigiada, ridicularizada, alvo de chacota e de escárnio por parte dos falantes do português-padrão ou mesmo daqueles que, não falando o português-padrão, o tomam como referência ideal — por isso podemos chamá-los de sem-língua (Bagno, 2007, p. 16-17, grifos adicionados).
 

“Deslenguadas”, sem-línguas: a expropriação vai para além de questões socioeconômicas. Em síntese, este subtópico procurou tornar evidente a condição pungente de abandono e inferioridade causada pelo preconceito, silenciamento e subalternização do espanhol chicano na fronteira E.U.A./México — fato evidenciado pelos trechos acima do capítulo aqui analisado em diálogo com os pensamentos de Marcos Bagno.

Eu sou minha língua!

O terrorismo linguístico — subtópico do capítulo “How to Tame a Wild Tongue”, transportado como também subtópico para este artigo — muito bem que poderia ser um motivo para que o povo chicano, sob o peso de tanta discriminação, desistisse de sua língua: “On one side of us, we are constantly exposed to the Spanish of the Mexicans, on the other side we hear the Anglos’ incessant clamoring so that we forget our language” [12] (Anzaldúa, 1987, p. 84).

Todavia, a língua não é uma escolha. É uma condição: “[…] a língua permeia tudo, ela nos constitui enquanto seres humanos. Nós somos a língua que falamos. A língua que falamos molda nosso modo de ver o mundo e nosso modo de ver o mundo molda a língua que falamos” (Bagno, 2007, p. 144). Logo, Anzaldúa concorda com Bagno: “Ethinic identity is twin skin to linguistic identity — I am my language. Until I can take pride in my language, I cannot take pride in myself” [13] (Anzaldúa, 1987, p. 81).

Desistir da língua, nesse sentido, é desistir de uma parte de si. Não desistir, dessa forma, se torna uma questão de sobrevivência: “Los Chicanos […]. We know how to survive. When other races have given up their tongue, we’ve kept ours” [14] (Anzaldúa, 1987, p. 85, grifos do original). Em diálogo com essa concepção de língua afirmada por Anzaldúa (1987) — isto é, língua enquanto eu, enquanto modo de vida, de sobrevivência — traz-se, agora, neste artigo, o conceito de “bilinguajamento” elaborado por Walter Mignolo (2003).

Para o autor, a única condição de existência da língua é o linguajamento — termo que, no imaginário de Mignolo, diz respeito ao
 

[…] ato de pensar e escrever entre as línguas […] afastando-nos da ideia de que a língua é um fato (isto é, um sistema de regras sintáticas, semânticas e fonéticas), em direção à ideia de que a fala e a escrita são estratégias para orientar e manipular os domínios sociais da interação (Mignolo, 2003, p. 309, grifos adicionados).
 

Walter Mignolo (2003), em paráfrase, entende que o linguajamento é a face prática da língua, a que, por sua vez, se torna instrumento social de interação e construção de realidades. O linguajamento, dessa maneira, pode ser usado como instrumento de silenciamento, subalternização e preconceito pelo sistema colonial (isso ressaltado em itálico no trecho acima). Em diálogo, aponta Bagno em semelhança a Mignolo:
 

Existe um mito ingênuo de que a linguagem humana tem a finalidade de “comunicar”, de “transmitir ideias”[…] a linguagem [porém] é muitas vezes um poderoso instrumento de ocultação da verdade, de manipulação do outro, de controle, de intimidação, de opressão, de emudecimento (Bagno, 2007, p. 131).
 

Nesse sentido, o bilinguajamento figura-se contraponto à utilização da língua como ferramenta de dominação pelo Estado:
 

As línguas (espanhol/inglês) foram deslocadas e recolocadas na esfera do linguajamento. O linguajamento é o lócus onde ocorre a “conscientização”, e essa forma particular de conscientização luta, por um lado, com as tensões entre formas coloniais e nacionais de opressão da consciência e, por outro lado, entre formas tribais de consciência reprimida e subjugada. O bilinguajamento torna-se, então, um ato de amor e um anseio de superação do sistema de valores como forma de dominação (Mignolo, 2003, p. 369).
 

A língua é revertida, em acréscimo ao dito, em instrumento de resistência pelas margens e grupos sociais expropriados linguisticamente: “enquanto o estado-nação promove o amor para com as línguas nacionais [por meio da gramática normativa e preconceito contra as formas variantes, no ver deste artigo], o amor do bilinguajamento nasce das e nas periferias das línguas nacionais e nas experiências transnacionais” (Mignolo, 2003, p. 371).

Aqui, se faz interessante a ressalva em relação ao code-switching, visto no trabalho de Anzaldúa. Compreender Borderlands (1987) não é um exercício de erudição linguística. Dado o atributo do plurilinguajamento presente em toda a obra, a leitura do romance é um exercício de empatia. Lendo-o, é necessário pôr-se “na pele” do chicano cujo cotidiano é “viver-entre-línguas”: “Se o bilinguajamento não fosse estilo de vida […] nem compreenderíamos Gloria Anzaldúa, nos Estados Unidos, cuja força sedutora é a força do bilinguajamento como o viver-entre-línguas e não apenas um exercício estético bilíngue” (Mignolo, 2003, p. 359).

Por esse sentido, como percebe Mignolo, o bilinguajamento figura-se
 

[…] o amor pelo lugar entre línguas, o amor pela desarticulação da língua colonial e pelas línguas subalternas, o amor pela impureza das línguas nacionais, e o amor como corretivo necessário à ‘generosidade’ do poder hegemônico que institucionaliza a violência. É o amor por tudo que é repudiado pelas culturas do conhecimento acadêmico, cúmplices com as heranças coloniais e com as hegemonias nacionais (Mignolo, 2003, p. 371).
 

Anzaldúa, nessa perspectiva, com força e orgulho, demonstra o amor pelo impuro que Mignolo (2003) apregoa. Para ela, aceitar a própria língua é aceitar a si:
 

Until I can accept as legitimate Chicano Texas Spanish, Tex-Mex and all the other languages I speak, I cannot accept the legitimacy of myself. Until I am free to write bilingually and to switch codes without having always to translate, while I still have to speak English or Spanish when I would rather speak Spanglish, and as long as I have to accommodate the English speakers rather than having them to accomodate me, my tongue will be illegimate [15] (Anzaldúa, 1987, p. 81).
 

Marcos Bagno (2007), em consonância a esse amor pelo bilinguajamento de Mignolo (2003) e Anzaldúa (1987), concorda que a melhor maneira de resistir contra o preconceito linguístico é o afeto pela língua considerada repugnante:
 

[…] temos de combater o preconceito linguístico com as armas de que dispomos. E a primeira campanha a ser feita, por todos na sociedade, é a favor da mudança de atitude. Cada um de nós, professor ou não, precisa elevar o grau da própria autoestima linguística: recusar com veemência os velhos argumentos que visem menosprezar o saber linguístico individual de cada um de nós. Temos de nos impor como falantes competentes de nossa língua materna (Bagno, 2007, p. 114, grifos adicionados).
 

Em síntese, este subtópico procurou evidenciar — por meio do conceito de bilinguajamento de Mignolo (2003), da autoafirmação linguística de Anzaldúa (1987), e da forma de resistência proposta por Bagno (2007) — como a língua é uma parte intrínseca do ser humano, a qual inegavelmente precisa ser amada, aceita e estimada. Ao lado disso, este subtópico buscou mostrar, por meio do diálogo entre os três autores, como essa autoestima linguística é uma arma de combate ao preconceito, silenciamento e subalternização de qualquer língua em tal estado, em especial do espanhol chicano no contexto da fronteira entre México e Estados Unidos da América.

Considerações finais

O título do capítulo aqui em análise (“como domar uma língua selvagem”, em tradução livre) soa ainda provocante. Anzaldúa (1987), de fato, não chega a ensinar esse método de domesticação linguística, antes, no capítulo, procura ensinar como usar a língua enquanto dispositivo de sobrevivência. Conservar a própria língua ainda em seu estado materno aprendido, não ouvir as incessantes regras condenadoras da gramática acadêmica ou, ainda, aos mitos de ascensão social que uma língua prestigiada promete parecem ser o escopo do capítulo.

Assim, dando endosso à denúncia e à autoafirmação linguística construída por Anzaldúa (1987), este artigo procurou estruturar um diálogo entre a autora, Marcos Bagno (2007) e Walter Mignolo (2003). A conversa se mostrou harmônica, dado o fato dos três compartilharem de uma mesma visão autoaceitativa da língua em estado de menosprezo e repugnância pelas instituições acadêmicas e sociais. Para além disso, Anzaldúa (1987), Bagno (2007) e Mignolo (2003) têm, por objetivo semelhante, uma superação da tradição de silêncio imposta pelas condições prescritivas e sociais da língua — todos tocando à questão de como a língua recebe a matriz da sociedade, nos três casos, fortemente hierárquica, colonial e opressora.

Por fim, conclui-se que o amor pelo espanhol chicano repudiado, na concepção de Anzaldúa (1987) e, apoiada neste artigo por Bagno (2007) e Mignolo (2003), parece ser um ato de resistência e tentativa de superação do preconceito, subalternização e silenciamento linguísticos na fronteira entre México e Estados Unidos da América.

Referências

ANZALDÚA, Gloria. Borderlands: La Frontera = The New Mestiza. São Francisco: Aunt Lute, 1987.

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

MIGNOLO, Walter. Histórias locais / Projeto globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Trad. Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

[1] Como domar uma língua selvagem (tradução nossa).

[2]“‘Nós teremos que fazer algo em relação à sua língua’ […] ‘Nunca vi nada tão forte ou tão teimoso’ disse o dentista (tradução nossa).

[3]“Como domar uma língua selvagem? Como treiná-la para ficar quieta, como se refreia e se a doméstica? Como se faz para que ela se prostre?” (tradução nossa).

[4]Para um povo que é nem hispânico nem vive num país no qual o espanhol é a primeira língua; a um povo que vive num país no qual o inglês é língua dominante, mas que não é norte-americano; a um povo que não consegue inteiramente se identificar com o espanhol padrão (formal, castelhano) nem com o inglês padrão, qual recurso a ele sobra se não criar sua própria língua? […] uma língua com termos que são nem do espanhol nem do inglês, mas de ambos. Falamos um patoá, uma língua bifurcada, uma variação de duas línguas (tradução nossa).

[5]“Se você quiser ser americana, fale ‘americano’. Se não gostar, volte para o México que é o seu lugar” (tradução nossa).

[6] “Na Universidade Pan Americana, eu, e todos os alunos chicanos, fomos requisitados a fazer duas aulas de discurso. O propósito deles: se livrar de nosso sotaque” (tradução nossa).

[7]“Até mesmo nosso próprio povo, outros falantes de espanhol querem pôr cadeados em nossas bocas. Eles nos reteriam com sua mala de regras acadêmicas” (tradução nossa).

[8] “‘Quero que você fale inglês. Para arrumar um bom trabalho, você tem que saber falar inglês bem. Do que vale toda a tua educação se, porém, você fala inglês com um sotaque’, minha mãe diria, mortificada pelo fato de que eu falava inglês como uma mexicana” (tradução nossa).

[9]“O norte-americano com cara de inocente nos arrancou a língua. Línguas selvagens não podem ser domadas, elas apenas podem ser cortadas fora” (tradução nossa).

[10]“Expatriado, traidor cultural, você está falando a língua do opressor ao falar inglês, você está arruinando a língua espanhola” (tradução nossa).

[11] “Deslinguadas. Somos os do espanhol deficiente. somos seu pesadelo linguístico, sua aberração linguística, o assunto da sua piada. Racialmente, culturalmente e linguisticamente somo órfãos — falamos uma língua órfã” (tradução nossa).

[12]“Dum lado, somos constantemente expostos ao espanhol mexicano, do outro ouvimos o incessante clamor dos norte-americanos para que esqueçamos nossa língua” (tradução nossa).

[13]Identidade étnica é unha e carne da identidade linguística — eu sou minha língua. Até que eu consiga me orgulhar da minha língua, eu não posso me orgulhar de mim mesma (tradução nossa).

[14]“Os chicanos […]. Nós sabemos como sobreviver. Enquanto outras raças desistiram de sua língua, mantivemos a nossa” (tradução nossa).

[15]Até que eu possa aceitar, como legítimos, o espanhol chicano do Texas, o Tex-Mex e todas as outras línguas que falo, não posso aceitar a legitimidade de mim mesma. Até que eu seja livre para escrever bilinguamente e trocar códigos sem ter que sempre traduzi-los, enquanto eu ainda ter que falar inglês ou espanhol quando eu preferiria falar espanglês, e desde que eu tenha que acomodar os falantes de inglês ao invés de tê-los acomodados a mim, minha língua será ilegítima (tradução nossa).