Convite a lição do amigo: um novo Brasil no diálogo por cartas entre Mário de Andrade e Drummond

Larissa Carvalho Gomes

RESUMO: Por meio da correspondência entre os escritores Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade, juntamente com as críticas de Mário em relação a alguns poemas de Drummond – publicados nos periódicos modernistas –, o presente artigo pretende mapear e analisar como a relação de amizade e aprendizado entre os dois autores contribui, principalmente, diante de seus paradoxos e especificamente do poema “Convite ao suicídio” para o ideal de um novo Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: modernismo; literatura; Brasil.

ABSTRACT: From the letters exchanged between Carlos Drummond de Andrade and Mário de Andrade, and also Mário’s critics of some of Carlos’s poems — published in modernist magazines —, this article aims to map and analyze the way in which the friendship and learning between the two authors contributes to an ideal of a new Brasil, considering their paradoxes and especially the poem “Convite ao suicídio”.

KEYWORDS: modernism; literature; Brasil.

A correspondência

Em sua primeira carta destinada a Mário de Andrade, Drummond o convoca a procurá-lo em suas memórias a fim de que o paulista recorde do encontro dos dois, na ocasião de sua famosa viagem a Minas Gerais, em 1924, junto do grupo modernista de São Paulo – além de Mário, composto por Oswald de Andrade, Goffredo da Silva Telles, René Thiollier, Tarsila do Amaral, Olívia Guedes Penteado e o poeta suíço Blaise Cendrars. A “revelação surpreendente de que o Brasil existia” (Andrade, 1972, p. 67), como nomeou Oswald, pode ser lida também como aquela que identificou as marcas necessárias para ajudar a construir o que seria uma arte genuinamente nacional através das tradições do passado brasileiro.

Após cobrir o outro Andrade de elogios, Drummond revela que manda junto à carta um artigo de sua autoria, no qual “fala mal”, como ele próprio descreve, do escritor francês Anatole France. Em resposta, Mário diz o seguinte:

Li seu artigo. Está muito bom. Mas nele ressalta bem o que falta a você – espírito de mocidade brasileira. Está bom demais pra você. Quero dizer: está muito bem pensante, refletido, sereno, acomodado, justo, principalmente isso, escrito com grande espírito de justiça. Pois eu preferia que você dissesse asneiras, injustiças, maldades moças que nunca fizeram mal a quem sofre delas. Você é uma sólida inteligência e já muito bem mobiliada… à francesa. Com toda abundância do meu coração eu lhe digo que isso é uma pena. Eu sofro com isso (Andrade, 2002, p. 50-51).

Mesmo que Mário tenha sido arrebatado pela inteligência do jovem mineiro, é nítido que logo formou críticas, cujo teor faz jus ao autor de Macunaíma. Ante o requinte exacerbado, a polidez desmedida e o refinamento pedante e tedioso, típicos da politesse francesa, Mário clamava por uma poesia que aglutinasse o espírito modernista, a nação ansiosa por identidade, sentido e perspectiva. O sofrimento que partilha na frase final do excerto confirma, pungentemente, o Brasil que desde sempre foi seu ímpeto representar.

À vista disso, ele critica a influência francesa na escrita do amigo, apontando, portanto, a necessidade de um “espírito de mocidade brasileira”. Assim, expressa o desejo de ver uma poesia mais alinhada com a realidade do Brasil, rompendo com os padrões estéticos vindos de fora.

Ainda com o interesse pela modernidade aceso em Drummond e em outros jovens mineiros, advindo principalmente da enfática viagem dos paulistas a Minas, era curiosa a modernidade aflorada naqueles jovens, como identificou o ilustre crítico literário Antonio Candido: modernidade “feita com o sumo dos clássicos” (Candido, 1993, p. 13 apud Marques, 2011, p. 21). Dito isso, surge da carta-resposta de Mário um belo convite:

Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século XIX, seja ingênuo, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. O natural da mocidade é crer e muitos moços não creem. Que horror! Veja os moços modernos da Alemanha, da Inglaterra, da França, dos Estados Unidos, de toda a parte: eles creem, Carlos, e talvez sem que o façam conscientemente, se sacrificam (Andrade, 2002, p. 50-51).

O autor de Macunaíma assume então o papel de orientador, de mestre, oferecendo conselhos e direcionamentos a Drummond sobre a importância de viver o propósito de construir uma identidade nacional verdadeira, a se sacrificar pela construção de uma identidade cultural forte, e essa busca precisava refletir diretamente na poesia. Surge dessa aproximação a correspondência entre ambos, e a influência de Mário de Andrade interferiu diretamente na escrita de Drummond, como será possível analisar adiante. O novo, a modernidade que Mário clamava ao jovem mineiro é, paradoxalmente, referenciada àquela acesa em jovens de outras partes do Ocidente, como Alemanha, Inglaterra, França e Estados Unidos, o que fatalmente nos mostra a mimetização da arte até mesmo na tentativa do criar. Drummond, como aprendiz de Mário, experimentou essa tensão – esse embate de ideias e valores que permearam a construção da identidade literária e cultural brasileira na primeira metade do século XX. Como apontado por Octavio Paz:

A modernidade é uma tradição polêmica e que desaloja a tradição imperante, qualquer que seja esta; porém desaloja-a para um instante após, ceder lugar a outra tradição, que, por sua vez, é outra manifestação momentânea da atualidade. A modernidade nunca é ela mesma: é sempre outra (Paz, 1974, p. 18).

Conclusão de alguma forma arranjada também pelo próprio Mário de Andrade, alguns anos antes dessa carta, no Prefácio Interessantíssimo, onde admite que nenhuma pessoa pode se libertar de uma só vez das teorias avós que bebeu. Clamando o jovem Drummond, Mário persiste no chamado à arte em um relato deveras pessoal:

Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime. E nos dá felicidade. Eu me sacrifiquei inteiramente e quando eu penso em mim nas horas de consciência, eu mal posso respirar, quase gemo na pletora da minha felicidade. Toda a minha obra é transitória e caduca, eu sei. E eu quero que ela seja transitória (…) estraçalho a minha obra. Escrevo língua imbecil, penso ingênuo, só pra chamar a atenção dos mais fortes do que eu pra este monstro mole e indeciso ainda que é o Brasil. Os gênios nacionais não são de geração espontânea. Eles nascem porque um amontoado de sacrifícios humanos anteriores lhes preparou a altitude necessária de onde podem descortinar e revelar uma nação. Que me importa que a minha obra não fique? É uma vaidade idiota pensar em ficar, principalmente quando não se sente dentro do corpo aquela fatalidade inelutável que move a mão dos gênios. O importante não é ficar, é viver. Eu vivo. E vocês não vivem porque são uns despaisados e não têm a coragem suficiente pra serem vocês (Andrade, 2002, p. 50-51).

Como é mencionado nas notas da primeira correspondência entre Drummond e Mário, era uma grande questão para o modernista paulista a tentativa de arquitetar o Brasil – por isso, desempenhou um papel essencial e preocupado com a valorização autêntica da cultura popular brasileira, buscando por uma língua brasileira, o escrever como se fala, trazendo, com isso, elementos indígenas, afro-brasileiros e europeus. Macunaíma, por exemplo, carrega características folclóricas e tradicionais do país. Ele buscou transformar o Brasil “monstro mole e indeciso”, esse lugar como se sem tradição, confuso, não sólido; o que era mais importante do que o interesse meramente estético: sua vontade era de valor social, como evidenciado posteriormente pelo destinatário nas notas sobre esta carta de Mário, em A Lição do Amigo:

A afirmação de que sacrificava o interesse estético de sua obra a valores de utilidade social mais forte foi uma constante na correspondência de MA. Ver carta 4. Poderiam citar-se muitas outras comprovações desta intenção constante. Basta lembrar este trecho da carta a Alceu Amoroso Lima: ‘Eu nasci pra fazer a obra temporária que age, força a vida e morre cumprida a ação (MA/EC, p. 40-41) (Drummond, 1982, p. 26).

Inclusive, anos mais tarde, em fevereiro de 1942, para comemorar o 20º aniversário da Semana da Arte Moderna, acontece a conferência “O movimento modernista”, onde Mário faz uma avaliação do movimento e o caracteriza essencialmente a partir da fusão de três princípios fundamentais: o direito à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional. Por isso, é plausível reconhecer a paixão, a potência impressa na carta, a fim de atrair o jovem com quem se comunica a viver aquele propósito. Afinal de contas, como o próprio Mário revelou, “O importante não é ficar, é viver. Eu vivo” (Andrade, 2002, p. 51).

Os amigos sustentaram extensa troca de cartas desde então, que se desdobrou até o falecimento de Mário, em 1945, tanto as epístolas como os textos produzidos por cada um revelam não apenas o diálogo entre dois grandes nomes da literatura, mas também a complexidade enfrentada pelos modernistas na tentativa de alcançar uma nova identidade cultural para o país. Como apontado, a correspondência retrata bem a influência do paulista sobre a formação, sobretudo, poética de Drummond; com suas opiniões e análises críticas. Por isso, o primeiro livro do mineiro, publicado em 1930, continha dedicatória ao grande amigo.

A epistolar correspondência faz observar o sacrifício pelo nacional, a persistência modernista na construção do novo, acarretando uma das maiores e mais frutíferas amizades da literatura brasileira. Os ensinamentos mútuos e as descobertas dessa dupla contribuem ainda mais do que a produção literária por si só para aqueles que desejam embarcar adentro na observação desse período da história, já que ela é aqui narrada não só por esses que produziram a prosa, a poesia e a crítica, mas a vivenciaram e, especialmente, construíram uma das novas possibilidades de identidade nacional que hoje conhecemos. O esforço de Mário para educar Drummond ao modernismo, ou melhor, “deseducá-lo”, não incidiu somente no Alguma Poesia, em 1930. Os poemas do livro pertenciam à própria década de 1920, onde, desde muito cedo, Drummond colabora intensamente em jornais do Rio de Janeiro e nas próprias recém-chegadas revistas modernistas, na Estética, segunda revista do movimento, que surge em 1924, já havia participações do poeta, que passa a fazer parte de todo o percurso desses periódicos que trilharam o desenvolvimento do movimento.

As revistas e alguma poesia

Na apresentação da importante publicação que reuniu em edições fac-similares as seis principais revistas do modernismo brasileiro, os organizadores Pedro Puntoni e Samuel Titan Jr. são taxativos ao afirmar que “vanguarda sem revista não é vanguarda” (Puntoni; Titan Júnior, 2015, p. 7). Não só no Brasil – que não seria exceção à regra –, mas em todos os países onde o modernismo se consolidou como movimento de vanguarda, as revistas são plataformas centrais e estratégicas para, no calor do momento, pôr as ideias em circulação e, retrospectivamente, para o pesquisador compreender a complexidade e o alcance de hipóteses, debates e controvérsias que estão postas. De maneira que, conforme argumentam os organizadores, “não haveria como fazer a crônica do modernismo sem passar por esse formato tão vital para o movimento – tão vital quanto o manifesto, o jornal e o livro” (Puntoni; Titan Júnior, 2015, p. 7).

Publicadas ao longo dos anos mais movimentados da história do modernismo brasileiro – ou seja, de 1922, no caso da Klaxon, cujo primeiro número foi lançado logo após a realização da Semana de Arte Moderna, até o final da década, como a Verde e a Revista de Antropofagia, que teve seu último número em 1929. Essas revistas modernistas apresentam a possibilidade de analisar o modernismo nas suas mais diferentes tendências e proposições, inclusive em seus paradoxos, já que acompanham também a “evolução” do movimento.

“Depois da destruição do jugo colonial e do jugo esclavagista, e do advento da forma republicana, parecia que nada mais havia a fazer senão cruzar os braços. Engano. Resta-nos humanizar o Brasil” (A Revista, 1925, n. 1, p. 13). Neste editorial de A Revista, no qual Drummond era um dos editores, observa-se que a pretensão modernista de humanizar, criar, ou encontrar a alma do Brasil, como se sabe, é limitante, visto que parte ainda de uma noção burguesa, desde o próprio financiamento da Semana de Arte Moderna e do público que dela e da construção do movimento fez parte. Ainda assim, através das revistas, o movimento avançou naquelas questões que ainda não eram colocadas como assunto central na literatura até então, como o português de fato falado pelo brasileiro, a consciência nacional nos traços do que formaria uma ideia de nação, as histórias populares, o cotidiano, até mesmo os hábitos difundidos e encruzilhados dentre as diversas culturas que atravessam o país.

Em 1930, quando Drummond estreia em livro com Alguma Poesia, a maioria dos poemas ali presentes já haviam sido publicados nos diversos periódicos modernistas – ele era um dos editores de A Revista e presença constante na Verde, além disso, publicava em Estética, Revista de Antropofagia, Terra Roxa e Outras Terras. Sua publicação mais marcante antes do primeiro livro foi na Revista de Antropofagia em 1928, quando divulgou pela primeira vez “No meio do caminho”, provavelmente o poema mais “escandaloso” do período.

Das poesias de Drummond publicadas nas revistas, apenas “Convite ao suicídio” e “Raízes e caramujos” não foram, posteriormente, para o Alguma Poesia. A alguns desses poemas, Mário responde em agosto de 1926, depois de receber o caderno de versos manuscritos que o futuro autor de Alguma Poesia o enviara um mês antes, contendo alguns “versos inferiores, até penumbristas” (Drummond, 2002, p. 220), como ele mesmo descreve, juntamente dos poemas de seu futuro livro, que naquela ocasião se chamava Minha terra tem palmeiras. Fazendo jus ao título de mestre e professor, Mário comenta extensamente os poemas enviados.

“Acho isto formidável. Me irrita e me ilumina. É símbolo” (Andrade, 2002, p. 229-230), ele se refere a “No meio do caminho”, e com razão, já que viria a ser um dos maiores poemas da literatura brasileira. Interessante notar que, em carta anterior, sem data, mas reunida junto às correspondências de 1924, Mário já havia expressado grande surpresa em relação ao poema: “No meio do caminho é formidável. É o mais forte exemplo que conheço, mais bem frisado, mais psicológico de cansaço intelectual” (Andrade, 2002, p. 76). Esse “cansaço intelectual” citado por Mário é esclarecido nas notas de A Lição do Amigo por Drummond, que, para isso, cita uma nota de rodapé de A escrava que não é Isaura: “Portanto o cansaço intelectual deve ser apontado como uma das causas geratrizes da poética modernista. […] A inovação em arte deriva parcialmente, queiram ou não os boxistas, do cansaço intelectual produzido pelo já visto, pelo tédio da monotonia” (Andrade apud Drummond, 1982, p. 35).

Mesmo o poema sendo anterior à verdadeira guinada de Drummond ao universo modernista, é, paradoxalmente, lido posteriormente como um dos símbolos do movimento. A alternativa “tinha uma pedra”, ao contrário do uso pragmático do “havia”, mostra já uma das maiores questões modernistas: a escrita como aquela falada, o “trabalho de abrasileiramento do Brasil” (Drummond, 1982, p. 30).

Nessa mesma carta em que Mário comenta o símbolo modernista pela primeira vez, ele elogia outro poema de Drummond por essa mesma lógica, o “Nota social”, em que é observada uma regência: “Na estação gostei da regência. Bravo!”. No entanto, Drummond, em carta seguinte, dispensa o elogio:

Você gostou da regência… Pois eu não gostei, e agora que peguei o erro, vou emendá-lo. Isto é modo de ver pessoalíssimo: correção ou incorreção gramatical. Sou pela correção. Ainda não posso compreender os seus curiosos excessos (Drummond, 2002, p. 82).

O que expressa a então não intencionalidade de Drummond em praticar a escrita da língua “abrasileirada”, até mesmo em “No meio do caminho”, é a incoerência do aprendiz entre a prática e sua visão ainda não sólida das questões do movimento, como se o modernismo se apresentasse quase de forma inconsciente em sua produção.

Explanando outro paradoxo, em correspondência de agosto de 1926, sobre os poemas “Igreja” e “Coração numerozo”, Mário usa do termo “modernismo técnico exterior” – o que seria o uso muito bem pensante, até mesmo pragmático do modernismo de influências de fora – para elogiar a “Igreja” e criticar o “Coração numerozo”. No primeiro caso, para o mestre, esse foi o motivo do poema ser ainda mais bonito e, no segundo, foi o que o “escangalhou”, como se Drummond tivesse apenas seguido o manual senso comum modernista, abusando das imagens urbanas, sem demonstrar seu estilo individual.

“Construção” é digno de “distinção com louvor” e “Sentimental” de “obra prima”, fato evidente, visto que os poemas exprimem bem as peculiaridades do modernismo. No caso de “Construção”, nos é exposto o cenário cotidiano de uma obra, juntamente de abundantes cenas da informalidade do dia a dia nacional e algumas de suas sonoridades, como um grito que pula no ar como foguete, ou o sorveteiro que corta a rua, invariavelmente anunciando o sorvete através do som da sua própria voz ou mesmo de uma buzina. Em “Sentimental”, há o humor irônico que surge também de uma cena cotidiana brasileira, dessa vez, da vida burguesa, no costume de comer em conjunto à mesa, onde o signo da sopa de letras faz alusão ao ser amado.

Mais tarde, em 1 de julho de 1930, ao discorrer já a respeito do livro, sobre “Quadrilha”, Mário diz que o poema é “da melhor poesia de humour” que ele tinha conhecimento, admirável. O entusiasmo do mestre sobre este humor drummondiano pode ser advindo do aspecto astuto jovial de Drummond em criá-lo a partir do jogo amoroso, mas também do jogo social e político, como explana Eucanaã Ferraz no posfácio “Alguma cambalhota” da edição de 2013 do Alguma Poesia: o humor é um artifício de inteligência, “uma tática de superação dos limites do sujeito e de seu ambiente” (Ferraz, 2013, p. 98).

Nesta mesma carta, sobre “Convite ao suicídio”, o paulista revela estar “numa incapacidade completa de gostar desse poema”. Neste excerto modernista, Mário colidiu brutalmente com abundante ferocidade do jovem aprendiz, ferocidade jovial e moderna, paradoxalmente, negada pelo mestre. Paradoxo interessante que será explorado a partir de agora.

Convite ao suicídio

Como apontado anteriormente, este emblemático poema foi um dos dois únicos publicados nas revistas modernistas não incluído, posteriormente, no célebre Alguma Poesia. Exposto no quarto volume da mineira Verde, em dezembro de 1927, causou uma reação perplexa do amigo a quem fora dedicado. Em carta enviada a Drummond, um mês após a publicação da composição, Mário desabafa:

Aliás o ‘Convite ao suicídio’ positivamente estou numa incapacidade completa de gostar desse poema, você deve bem de imaginar. Inda se fosse no tempo em que gritei as ‘Danças’ bem possível que gostasse. Agora já não posso mais, tanto sarcasmo ironia desengano e perversidade juntos!… Fiquei assim como quem comeu e não gostou, desiludido (Andrade, 2002, p. 309).

A genialidade de Drummond em inventar humour e gozação a partir de um tema mórbido não parece ter sido nada admirável para o remetente, diferentemente do humour presente no poema “Quadrilha”, por exemplo. Anos mais tarde, nas notas da edição de Carlos e Mário, Drummond elucida o pessoal desgosto do amigo para com o convite:

Poema que publiquei no número 4 de Verde (dez. 1927). Natural que MA não tenha gostado: exprimia o contrário do vitalismo apaixonado que ele praticava como norma existencial. Não me lembro mais se a dedicatória foi fruto de ingenuidade de minha parte, ou se brincadeira de mau gosto (Andrade, 2002, p. 313).

O tom desapegado do poema – caro ao modernismo, que parece convocar Mário para uma ida a um botequim ou qualquer outro sinônimo de baderna em conjunto, faz com que nós, leitores, ao acharmos graça, nos sintamos quase que coagidos a concordar com as inquietações do eu-lírico, que persuade o remetente tratando dos lados bons de fazer “a grande besteira”, já que “a vida foi feita pros trouxas”. Desde o cansaço da mediocridade moderna, como as marcas capitalistas, até o fim das aporrinhações, contrariedades, desastres, calos, desejos e percevejos, são chateações rapidamente solucionadas com o recurso final proposto: “PUM PUM”. O poema não segue estruturas tradicionais e seu conteúdo desafia as expectativas do leitor, além disso, traz uma inovação na linguagem, como as imagens simbólicas, o ritmo marcado e as repetições, todos esses elementos são caros ao movimento. O recurso moderno de representação do tiro utilizado por Drummond é recorrente também em outras de suas composições:

[…] No poema, a palavra Stop é tomada como signo visual, supralinguístico — sinal universalizado pelo uso em placas de trânsito ao redor do mundo, difundido pelo cinema e por outras linguagens visuais, acessível, em sua significação, até mesmo aos ignorantes do código da língua inglesa. Diante do signo visual — Stop —, para a vida, para o automóvel, para a língua (do poeta), para o poema. Esse modo de consideração da palavra (signo verbal) anda de mãos dadas com a atenção à linguagem dos avisos em placas — ‘proibido pisar no gramado’, transformado parodicamente em ‘proibido comer o gramado’, no poema ‘Jardim da praça da Liberdade’ —, assim como às sinalizações não verbais, curiosamente, algumas delas, como em ‘Cota zero’, ligadas ao trânsito na cidade grande, que é uma espécie de segunda natureza habitat do homem, verdadeira floresta de signos (Miranda, 2012, p. 72).

Os signos visuais e supralinguísticos explanados pelo estudioso Miranda nesse excerto sobre a poética drummondiana também se faz presente em “Convite ao suicídio” diante do signo PUM PUM, que representa o som da arma que concebe o fim da vida, que alude a milhares de renúncias mundanas e até mesmo das renúncias do propósito comum, da devoção modernista em vida para a criação do novo, da futura vanguarda, tudo isso abreviado ao barulho estridente de um tiro que, por sua vez, é reduzido a pequena onomatopeia. Todo o complexo e o excesso da vida reduzido a um tiro, que é também reduzido a um signo supralinguístico. O todo se torna o nada.

O bilhete para a “Central do Infinito” demonstra um contraste entre os dois amigos, o jovem em conflito versus a vitalidade pulsante, a “mocidade alegre” (Gonçalves, 2012, p. 21) do mestre, o Mário que almeja pela vida, que parte “pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega”, como trazia no subtítulo de sua obra O Turista Aprendiz, desejando o novo, desejando viver.

No entanto, os versos livres do poema, sua fluidez, a dramatização bonita e desapegada nos confirmam – até em técnica – que mesmo em meio aos métodos da criação do novo não há a exclusão de uma certa delicadeza, tampouco da mobilidade poética – a quem se destina o convite. O poema não se refere somente à experiência particular de um rapaz e seu cúmplice. Mesmo encontrando no suicídio um refúgio contra as aporrinhações da vida, o sujeito poético de Drummond recorre, em meio ao humor, a temas superiores, como os astros e ao próprio ideal de nação:

Eles têm razão. / Nós também temos. / Dois contribuintes de menos, / que perderá o Brasil com isso. / No frio da noite os amorosos multiplicam a espécie. / O Brasil é tão grande. / Mais grande que o mundo inteiro. / Estamos caceteados, vamos s’embora. / Adeus minha terra / terra bonita / pintada de verde / com bichos esquisitos e moleques treteiros, / abençoada pelo Deus brasileiro das felicidades e descarrilamentos. / Meu povo / amigos inimigos / canalha miúda / me despeço de todos sem exceção. / Apesar de ser inútil /, lembrem de mim nas suas orações (Drummond, 1927, p. 16-17).

A terra “pintada de verde com bichos esquisitos e moleques treteiros” nos remete ao célebre Macunaíma, ainda que a leitura do romance feita por Drummond seja posterior ao “Convite ao suicídio”. No poema, os heróis modernistas Mário e Drummond viajam sem volta para a central do infinito, assim como Macunaíma, “o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu” (Andrade, 1997, p. 124). Terra essa paradoxalmente abençoada por um deus das felicidades, mas também dos descarrilamentos, e que revela, de forma dilacerante, o que manifesta mais tarde Macunaíma, e o que o próprio mestre havia suplicado ao jovem em resposta a sua primeira correspondência a ele enviada: “Pois eu preferia que você dissesse asneiras, injustiças, maldades moças que nunca fizeram mal a quem sofre delas” (Andrade, 2002, p. 50-51).

Destaco esse poema justamente por exprimir o que rondou todos os anos de formação do modernismo no Brasil: o paradoxo, expressão que já citei algumas vezes ao decorrer deste artigo.

O moderno é auto-suficiente: cada vez que aparece, funda a sua própria tradição. Um exemplo desta maneira de pensar é o livro que o crítico norte-americano Harold Rosenberg publicou há alguns anos: The tradition of the new. Ainda que o novo não seja exatamente o moderno — há novidades que não são modernas —. O título do livro de Rosenberg expressa com saudável e lúcida insolência o paradoxo que fundou; a arte e a poesia do nosso tempo. Um paradoxo que é, simultaneamente, o princípio intelectual que as justifica e que as nega, seu alimento e seu veneno. A arte e a poesia de nosso tempo vivem de modernidade e morrem por ela (Paz, 1974, p. 18).

Ou seja, a negação do passado pressupõe a afirmação de algo distinto, essa ruptura incide em uma tradição, a tradição do novo, o modernismo. Como apontado por Octavio Paz, a poesia moderna é simultaneamente seu próprio alimento e seu veneno, onde o passado a ser negado (veneno) é na verdade a linha de largada para a nova tradição (remédio). Um novo ideal de Brasil então é, na verdade, uma nova (e velha) tradição. O avanço e o retrocesso rondam lado a lado o espectro modernista brasileiro.

Considerações finais: 

A formação de Drummond como aprendiz e de Mário como mestre não foi diferente, os conceitos formados e suas implicações foram diversas vezes aglutinados a conceitos avessos, deixando claro o processo de desenvolvimento da ocasião. No caso de “Convite ao suicídio”, o mestre parece ter recebido o poema realmente como algo pessoal, real, o que o atingiu. Em Mestres do Passado – I: Glorificação, publicado no Jornal do Comércio, em 2 de agosto de 1921, Mário dá glória aos mestres do passado parnasiano e os saúda diante de suas tumbas, sim, tumbas, pois, segundo Mário, estavam todos mortos, ou, pelo menos, deveriam todos estar. Diferentemente do “Convite ao suicídio” de Drummond, que seria o tiro no ouvido do novo, da modernidade, fazendo desaparecer dois dos grandes representantes do modernismo. Ao contrário, Mário alude à morte do “português de bronze”, dos “ritmos estatuares”, do “almofadismo francês, monótono e gelado”, como se o sentimento de ataque pessoal que sentiu ao ler o poema de Drummond tivesse advindo de sua vontade vivaz de um novo movimento, onde a morte do passado somada a morte do novo resultaria o nada, a impossibilidade de futuro, “dois contribuintes de menos, que perderá o Brasil com isso” (DRUMMOND, 1927, p. 16-17), justamente esse um novo Brasil arquitetado pelo movimento modernista.

Referências

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