Resumo: O poeta Nicolau Fagundes Varela foi um dos pilares do movimento literário do Romantismo no Brasil no século XIX. Sua escrita, caracterizada por um contexto sombrio e uma atmosfera sinistra, é analisada à luz dos conceitos de grotesco e sublime de Victor Hugo. Este artigo examina como essas esferas estéticas são habilmente entrelaçadas nas obras de Varela, explorando tanto a beleza transcendental quanto os elementos perturbadores. A análise inclui obras como “A Enchente” e “Cântico do Calvário”, evidenciando a harmonia dos contrários e a profundidade singular da poesia de Varela.
Palavras-chave: Fagundes Varela, Romantismo, Grotesco, Sublime, Literatura Brasileira, Victor Hugo.
Abstract: The poet Nicolau Fagundes Varela was one of the pillars of the Romantic literary movement in 19th century Brazil. His writing, characterized by a dark context and a sinister atmosphere, is analyzed considering Victor Hugo’s concepts of the grotesque and the sublime. This article examines how these aesthetic spheres are skillfully intertwined in Varela’s works, exploring both transcendental beauty and disturbing elements. The analysis includes works such as “A Enchente” and “Cântico do Calvário,” highlighting the harmony of opposites and the unique depth of Varela’s poetry.
Keywords: Fagundes Varela, Romanticism, Grotesque, Sublime, Brazilian Literature, Victor Hugo.
Considerações iniciais
O poeta Nicolau Fagundes Varela foi um dos pilares do movimento literário Romantismo. O contexto sombrio e a composição de uma atmosfera sinistra em sua escrita compõem as principais características do autor. Diante disso, a análise detalhada de Victor Hugo, em Do grotesco e do sublime, encaixa-se no estilo literário de Varela, possibilitando uma análise não apenas do poeta, mas também de como se constrói o sinistro através do sublime em sua obra.
Para compreender o legado de Varela, é imperativo situar sua vida e obra dentro do panorama literário e histórico do século XIX. Nascido em 1841, em Rio Claro (RJ), Varela foi influenciado pelas correntes literárias românticas, em especial pelo subjetivismo e pela estética voltada ao sentimento e à emoção. Ainda jovem, imergiu no universo artístico e intelectual, destacando-se não apenas como poeta, mas também como um observador aguçado do mundo que o cercava.
O grotesco e o sublime, duas esferas estéticas distintas e, ao mesmo tempo, complementares, serviram como ferramentas expressivas na obra de Varela. O grotesco, marcado por sua estranheza, exagero e deformidade, entrelaçase ao sublime, que remetia à beleza elevada, ao transcendente e à grandiosidade. Esses elementos, tão contrastantes, foram habilmente entrelaçados por Varela em sua escrita, conferindo-lhe uma profundidade singular. Todavia, é necessário definir tais conceitos e contextualizá-los em seu contexto com a poesia de Varela. Para Victor Hugo, os conceitos aparentemente contrastantes não são necessariamente opostos, mas sim complementares. Na sua obra, Do grotesco e do sublime (Hugo, 2002, p. 42), temos a poesia que usufrui desses conceitos de tal forma:
A poesia nascida do cristianismo, a poesia de nosso tempo, é pois, o drama, o caráter do drama é o real, o real resulta da combinação bem natural de dois tipos, o sublime e o grotesco, que se cruzam no drama como se cruzam na ida é na criação. Porque a poesia, a poesia completa, está na harmonia dos contrários.
Diante do que informa o escritor francês no trecho acima, as obras de Varela, seja na poesia lírica ou na prosa, são um campo fértil para o exame desses elementos estéticos e narrativos para com a harmonia dos contrários. Em seus versos, encontramos a mescla inebriante do grotesco e do sublime, muitas vezes convergindo para transmitir sensações e sentimentos que ecoam para além das palavras.
O conceito de sublime pode ser destrinchado de diferentes formas e é amplamente estudado por diferentes perspectivas filosóficas que corroboram para a construção narrativa horripilante e sinistra. Para o filósofo Edmund Burke (1990), pode-se definir o sublime como tudo que seja, de alguma forma, capaz de incitar ideias de dor e perigo, produzindo uma forte emoção ao espírito. Burke defende, em seu tratado, a autonomia da categoria estética do sublime argumentando que este em muito se diferencia da categoria do belo, caracterizada principalmente pelo ideal neoclássico de simetria e clareza.
Todavia, podemos utilizar o conceito kantiano, abordado em Crítica da faculdade do juízo, para trabalhar o sublime nas obras de Varela. Para Kant, deve-se diferenciar o belo do sublime como agentes que podem afetar o indivíduo. “O objeto intuído é representado formalmente de maneira indeterminada ao entendimento. Já no sublime, o objeto é representado sem forma, pois a imaginação é designada a apresentar algo ilimitado” (Galvão, 2021). Para exemplificar, vejamos um trecho do poema “A enchente”, de Varela, uma vez que, nesse texto, o eu lírico se depara diversas vezes com uma grandiosidade tamanha que resta ao leitor utilizar sua imaginação para preencher o vazio proposital elaborado pelo escritor, ao mesmo tempo que utiliza de elementos grandiosos em seu texto:
— Rema, rema, barqueiro; olha — lá em baixo
À luz vermelha do fuzil que passa,
Não vês o vulto de um rochedo escuro
Que a correnteza estrepitando abraça?
— Oh se o vejo, senhora; eu bem o vejo!
Diz o barqueiro com sinistra voz;
Pedi à Virgem que os perigos vela
Que tenha ao menos compaixão de nós!
(Varela, 1886, p. 216).
Nesse trecho retirado do poema, observamos conceitos relacionados à morte e entidades metafísicas que vão além do ser humano. A imagem do barqueiro, a luz vermelha e a menção de clemência por misericórdia compõem a narrativa e a construção do sublime para uma visão sinistra. Além disso, é notável a visão estética: a luz, a voz sinistra do barqueiro e outros elementos narrativos compõem a totalidade subliminar do texto elaborado por Varela.
Ao abordar o conceito de sublime nos textos de Varela, é imprescindível argumentar também acerca do gótico. Muito se é debatido sobre tal vertente literária no cenário brasileiro, uma vez que as tradições de literatura tendem a valorizar principalmente as narrativas de cunho realista, as quais são voltadas para a crítica social. Como ponto de partida para uma definição de literatura gótica, é consensualmente a publicação de The Castle of Otranto, em 1764, de autoria de Horace Walpole (1717 – 1797). Como elementos marcantes da obra e definidores da corrente literária gótica, temos: a presença de mistérios do passado; a suposta manifestação de fantasmas, demônios e monstros; acontecimentos obscuros e crimes violentos; personagens melodramáticos; reviravoltas mirabolantes; e a famigerada presença de ruínas medievais nos cenários das primeiras histórias (Freitas, 2018). É evidente que, por mais que tais características possam ser identificadas nos textos de Varela, as mesas ainda são componentes iniciais de uma corrente que acabara de se estabelecer.
Voltando ao prefácio de Cromwell, Victor Hugo propõe que o sublime não é apenas a grandiosidade ou a beleza elevada, mas sim a harmonia dos contrários: a união entre o sublime e o grotesco, como já mencionado anteriormente. Todavia, para Hugo, o sublime é a expressão da grandeza, da magnificência e da elevação, enquanto o grotesco traz elementos estranhos, exagerados e até perturbadores. Essa dualidade, quando combinada, enriquece a obra artística, oferecendo uma visão mais completa da realidade. Ao analisar a obra de Fagundes Varela, observamos que suas composições líricas frequentemente abrangem essa dualidade. Por exemplo, em poemas como “Cântico do Calvário” ou “A Enchente” (poema do qual foi retirado o trecho 1), Varela mescla elementos sublimes, como a beleza da natureza ou a grandiosidade das emoções, com elementos grotescos, como a representação de situações sombrias, perigosas ou perturbadoras.
O contexto sinistro que permeia muitas das obras do poeta, como já discutido no início do artigo, é representado por meio dessa combinação entre o sublime e o grotesco. A grandiosidade da natureza, a imensidão de cenários e a intensidade das emoções se fundem com imagens e situações que evocam medo, perigo e até mesmo horror, corroborando também com os ensaios de Burke. Essa fusão de elementos opostos contribui para uma representação mais rica e complexa do contexto sombrio que Varela buscava transmitir.
Portanto, ao aplicar a definição de Hugo sobre o sublime, compreendemos que na obra de Varela essa harmonia entre o sublime e o grotesco é essencial para a construção do contexto sinistro. A interação entre esses elementos estéticos permite não apenas a representação da beleza elevada, mas também a exploração das sombras e dos desafios do contexto social, político e emocional do século XIX no Brasil.
Outro poema marcante do poeta é “Cântico do Calvário”, um poema épico que possui uma abordagem interessante, cujo tema é a crucificação de Jesus Cristo, bem como toda a carga emotiva, religiosa e simbólica que esse evento carrega. Ao explorar a ligação entre essa obra e as ideias de Victor Hugo sobre o grotesco e o sublime, é possível encontrar conexões profundas entre ambos os conceitos.
O “grotesco”, na perspectiva de Victor Hugo, é frequentemente associado ao aspecto da humanidade que é estranho, distorcido e muitas vezes relacionado a elementos feios ou repulsivos. No entanto, Hugo também reconhece que, por trás dessa aparência externa, pode residir uma beleza ou significado mais profundo. Ao analisar o “Cântico do Calvário” à luz dessas ideias, é possível identificar elementos do grotesco na descrição da crucificação, especialmente nos aspectos físicos e na brutalidade do evento.
A representação da agonia física de Cristo, o sofrimento dos crucificados ao seu redor e a descrição das cenas de violência e crueldade podem ser interpretados como elementos do grotesco. Varela utiliza uma linguagem poderosa e imagens vívidas para pintar essa cena, o que ressoa com o conceito hugoniano do grotesco como algo que, apesar de repulsivo à primeira vista, carrega uma profundidade de emoção e significado.
Por outro lado, o “sublime”, conceito também explorado por Victor Hugo, está relacionado à grandiosidade, à elevação espiritual e à beleza que transcende o comum. No “Cântico do Calvário”, o sublime se manifesta na figura de Cristo e na carga emocional e simbólica da crucificação. A maneira como Varela retrata a entrega de Jesus Cristo, seu sacrifício e sua compaixão mesmo diante de tanto sofrimento traz à tona elementos do sublime.
A aura de redenção, amor e transcendência, apesar da brutalidade do evento, eleva a narrativa para além do sofrimento físico, levando-a a um plano espiritual e simbólico mais elevado. A representação do sacrifício divino e sua capacidade de tocar o âmago humano são elementos que se alinham ao conceito do sublime.
Portanto, ao relacionar o “Cântico do Calvário” de Fagundes Varela com as ideias de Victor Hugo sobre o grotesco e o sublime, percebemos uma interseção interessante entre a representação do sofrimento humano, a beleza que pode emergir mesmo nas situações mais brutais e a elevação espiritual que transcende a dor física. Essa conexão entre a estética e a profundidade emocional amplifica a riqueza da obra de Varela e sua capacidade de transmitir as complexidades da condição humana e espiritual.
Nos poemas “Cântico do Calvário” e “Vozes da América”, Varela mergulha na dualidade humana, trazendo à tona a beleza oculta na dor e na tragédia, navegando habilmente entre a grandiosidade e a estranheza. Essa habilidade de transitar entre extremos opostos confere uma profundidade única às suas composições, revelando não apenas a maestria poética, mas também a capacidade de refletir o mundo ao seu redor.
No entanto, a análise da obra de Fagundes Varela não pode se restringir somente à sua essência estética. É imprescindível adentrar o contexto sinistro que permeava a sociedade brasileira do século XIX. O período marcado por profundas transformações sociais, políticas e culturais não escapou à sensibilidade do autor, que traduziu em suas palavras as inquietudes, os conflitos e as angústias de uma nação em transição.
Além das obras já citadas do poeta fluminense, deve-se destacar o conto “As Ruínas da Glória”, importante texto que evidencia não apenas as características primordiais do escritor, mas também o prefácio a Cromwell. “As Ruínas da Glória” é uma obra icônica da literatura brasileira, o conto apresenta uma abordagem marcante das características do grotesco e do sublime na perspectiva hugoana, elementos centrais que permeiam a narrativa e proporcionam uma compreensão profunda das emoções e sentimentos humanos.
O grotesco, como representação estética, aparece de maneira destacada no texto. Ele se manifesta através da descrição detalhada de elementos sombrios, macabros e decadentes. Varela utiliza uma linguagem carregada de imagens perturbadoras para retratar a ruína, a decadência e a transitoriedade da glória. Através de uma atmosfera lúgubre e melancólica, o poeta revela a passagem inexorável do tempo e a fragilidade da existência humana. O uso de elementos grotescos, como a descrição de ruínas, paisagens sombrias e a decadência de cenários, cria uma sensação de estranhamento e desconforto no leitor, provocando reflexões sobre a efemeridade da vida e a inevitabilidade da morte. Uma importante marca do gótico, conforme se pode verificar no início do texto, é a obscuridade meteorológica. Como evidenciado por João Pedro Bellas (2014), “essa caracterização nos leva ao primeiro elemento gótico da narrativa, a obscuridade meteorológica, que colabora para a criação da atmosfera na qual os eventos irão se suceder.”
Outro elemento que podemos destacar na obra de Varela também encontra-se logo no início do texto, como visto no seguinte recorte:
Sua figura era alta e magra, seu rosto macilento como o de um cadáver, seus movimentos pausados e lentos. Sobre o nariz curvo como o bico de um abutre estavam acompanhados uns óculos azuis, através de cujos vidros se viam brilhar os olhos, dois carbúnculos. A boca era fina e cerrada, a barba lisa e pontiaguda (Varela, 1861).
Nesse trecho, compreende-se a imagem de uma figura que mescla elementos humanos e animalescos, contribuindo para uma visão sinistra e gótica. O bico de abutre, o brilho dos óculos que remetem a animais, além de uma aparência descrita como cadavérica contribui para uma narrativa grotesca.
Ainda nesse texto, o sublime também está presente contraposto ao grotesco. O sublime se revela na grandiosidade da linguagem poética, na exaltação dos sentimentos e na busca por algo superior e transcendente. Varela utiliza recursos literários como a amplificação de cenários naturais majestosos, a exaltação da natureza selvagem e a expressão dos sentimentos humanos intensos para despertar no leitor uma sensação de admiração, reverência e elevação espiritual. Essa busca pelo sublime é uma tentativa de elevar a condição humana acima da decadência e do efêmero, buscando o divino ou o eterno.
Ao relacionar essas características com elementos da literatura gótica, percebe-se uma clara conexão entre a estética e temas presentes no gênero gótico e na obra de Varela. A atmosfera sombria, o uso de elementos macabros, a presença de ruínas e paisagens lúgubres, além da reflexão sobre a morte e a transitoriedade, são elementos típicos do gótico que se entrelaçam com a poesia de Varela. A ambientação obscura e misteriosa, com suas descrições detalhadas e a valorização das emoções intensas, contribui para a construção de uma atmosfera sombria e intrigante, características essenciais do gótico.
“As Ruínas da Glória”, de Fagundes Varela, mescla habilmente esses elementos do grotesco e do sublime, criando uma obra poética que transcende a realidade física e mergulha nas profundezas da condição humana. A dualidade entre a decadência e a grandiosidade, entre o terrível e o sublime, convida o leitor a uma reflexão sobre a efemeridade da vida e a busca por algo além do efêmero, revelando assim a maestria do autor em explorar esses temas de forma tão intensa e expressiva.
Fagundes Varela, em “As Ruínas da Glória”, mergulha não apenas na dualidade entre o grotesco e o sublime, mas também explora a psique humana através desses prismas. A presença do grotesco, com suas imagens de decadência e desolação, não apenas choca pela representação da ruína material, como evoca reflexões sobre a condição emocional e mental do ser humano. Ao confrontar o leitor com a deterioração de cenários e estruturas, Varela não só desafia a percepção da beleza convencional, como também incita uma análise interna sobre a natureza efêmera da existência e a fragilidade das conquistas humanas.
Por outro lado, o sublime na obra de Varela atua como um contraponto necessário ao grotesco, oferecendo uma saída para além da decadência. A grandiosidade da natureza, exaltada em suas descrições majestosas, revela-se como um símbolo de esperança e transcendência. A imensidão dos cenários naturais e a intensidade das emoções despertadas pelas suas palavras servem não apenas para elevar o espírito do leitor, mas também para sugerir a busca por algo superior, um escape da efemeridade do mundo material. Essa busca pelo sublime não se restringe apenas à apreciação estética, mas representa a aspiração humana por algo maior, por uma conexão com o divino ou com a eternidade.
Por fim, é evidente que Fagundes Varela é um marco imensurável no ultrarromantismo brasileiro, destacando-se não apenas nesse segmento, além de se mostrar como um reflexo das obras primordiais do gótico literário para a criação de um ambiente sinistro em suas criações. Não obstante, seus textos encaixam-se no prefácio de Victor Hugo, Do grotesco e do sublime, uma vez que observa-se a harmonia dos contrários e a ampla utilização do elemento do sublime que, assim como a própria obra de Varela, é inesgotável.
Referências
GALVÃO, Bruno Abilio. A experiência do sublime na crítica da faculdade do juízo de Kant. Polymatheia-Revista de Filosofia, v. 14, n. 24, 2021.
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FREITAS, Sérgio Luiz Ferreira de. A compreensão da literatura gótica na história da literatura brasileira e as bases para sua reavaliação. Muitas Vozes, v. 7, n. 2, p. 467-486, 2018.
BELLAS, João Pedro. Gótico brasileiro: uma proposta de definição. Organon, v. 35, n. 69, p. 1, 2020.
HUGO, Victor. Do Grotesco e do Sublime. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
ALVES, Castro; VARELA, Fagundes. Vozes d’África; Navio Negreiro; Cântico do calvário. Rio de Janeiro, RJ: Livraria Acadêmica de J. G. de Azevedo, s.d..
VARELA, Fagundes. As ruínas da glória: Conto fantástico. São Paulo, SP: Correio
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COARACY, Visconti (org). Obras Completas de L. N. Fagundes Varela: edição organizada e revista, precedida de uma notícia biográfica por Visconti Coaraci e de um estudo crítico pelo Dr. Franklin Távora. Rio de Janeiro, RJ: Livraria Garnier, 1886.