Diálogos entre Sonho de uma Noite de Verão, o teatro musical moderno e as canções narrativas brasileiras

Marina Amorim Sinedino

Resumo: O presente trabalho explora a interseção entre o lirismo e a teatralidade na obra shakespeariana Sonho de uma Noite de Verão, destacando sua relevância histórica e os paralelismos do seu trabalho musical no teatro musical contemporâneo e na música popular brasileira. Partindo de uma análise comparativa entre as origens do lirismo na Grécia Antiga e sua manifestação nos tempos modernos, baseada nos estudos de Salete de Almeida Cara (1998) e Yves Stalloni (2014), essa pesquisa destaca a importância da construção musical nas montagens de Sonho de uma Noite de Verão, comparando o uso desse recurso com alguns outros gêneros que mesclam o musical e o narrativo na modernidade. Ao considerar essas diversas influências e interações, esse estudo oferece uma compreensão abrangente da relação entre o lírico, a teatralidade e a musicalidade na obra de Shakespeare e sua repercussão no cenário artístico contemporâneo.

Palavras-chave: Lirismo. Teatralidade. Musicalidade. Narrativa.

Abstract: The present paper explores the intersection between lyricism and theatricality in the Shakespearean work A Midsummer Night’s Dream, highlighting its historical relevance and the parallels of its musical work in contemporary musical theater and Brazilian popular music. Starting from a comparative analysis between the origins of lyricism in Ancient Greece and its manifestation in modern times, based on studies by Salete de Almeida Cara (1998) and Yves Stalloni (2014), this research highlights the importance of musical construction in the productions of A Midsummer Night’s Dream, comparing the use of this resource with some other genres that mix the musical and narrative in modern times. By considering these diverse influences and interactions, this study offers a comprehensive understanding of the relationship between lyricism, theatricality and musicality in Shakespeare’s work and its impact on the contemporary artistic scene.

Keywords: Lyricism; Theatricality; Musicality; Narrative.

1. Introdução

William Shakespeare foi um dramaturgo e escritor inovador em relação ao uso da língua e às maneiras ousadas que adotava em suas peças teatrais. Sonho de uma Noite de Verão, uma das obras mais encantadoras de Shakespeare, é uma comédia teatral que mergulha nas complexidades do amor e da fantasia. Escrita durante o final do século XVI, essa peça atemporal explora os labirintos do inconsciente humano, entrelaçando os mundos da realidade e da imaginação com uma trama intrincada, repleta de personagens cativantes, magia e situações cômicas.

Neste ensaio, explorarei o papel do lirismo nessa obra, levando em conta a origem desse aspecto na Grécia Antiga e sua maneira de se manifestar nos tempos mais próximos da modernidade, de acordo com os estudos de Salete de Almeida Cara (1998), bem como a mistura e interação do lírico com a teatralidade intrínseca ao gênero dramático, trabalhado por Yves Stalloni (2014).

Essa dinâmica, presente pela construção musical utilizada nas montagens de Sonho de uma Noite de Verão — tomando como base os estudos de Inga Marie Nesmann (2011) e Maurice Hunt (1992) sobre as composições e implicâncias sonoras dentro dessa peça —, será trazida para uma outra forma teatral muito popular na contemporaneidade, o teatro musical, ao fazer uma breve relação dessa integração de texto dramático e melodia do teatro elisabetano ao musical norte americano Hamilton.

Por último, será discutida, juntamente ao trabalho de Shakespeare nos teatros, uma forma artística inversa, de certa forma: não mais um texto dramático integrado à melodia, mas a música popular brasileira aliada ao contar de uma história, ressaltando as produções de Luiz Gonzaga e da banda Legião Urbana.

Portanto, esse estudo fará uma abordagem integralizadora do lírico e da teatralidade na comédia shakespeariana Sonho de uma Noite de Verão em relação à influência da fusão desses aspectos no mundo teatral contemporâneo, assim como na música popular e nas canções narrativas. Assim, será possível entender o fluxo de um recorte temático da história teatral, isto é, o uso fundamental das melodias na constituição de enredos, compreendendo uma das influências do teatro de Shakespeare no fazer dramático e musical da atualidade.

2. O lírico

No embrião da civilização e da democracia, isto é, a Grécia, surge uma forma de expressão e produção de arte única e multissensorial, a poesia lírica. O termo “lírica” remete ao instrumento que acompanhava a execução dessas composições poéticas, a lira — instrumento musical similar a uma harpa moderna, porém menor, ressaltando que essa era uma modalidade alinhada ao ritmo e à sonoridade.

Os gregos incorporaram essa diversificação e especificidade na construção de seus versos com um trabalho das sonoridades também nas palavras em si, independente de notas musicais, versos que proporcionam o “canto com as próprias palavras” (Cara, 1998, p. 15). Essa era uma forma poética que trouxe a esfera sonora como uma participante ativa na construção lírica da poesia — a melopeia grega —, tornando o som uma entidade participante do fazer poético:

[…] o ritmo é uma forma-sujeito. A forma-sujeito. Que renova o sentido das coisas, que é por ele que temos acesso ao sentido do qual temos que nos desfazer, que em torno de nós se faz por se desfazer, e que, aproximando-se dessa sensação de tudo em movimento, nós mesmos somos uma parte deste movimento (Meschonnic, 2015, p. 3).

A valorização dessas sonoridades fez da música algo inerente a esse fazer poético na época, abrindo a porta para a integração de algo além no trabalho da palavra. Tal característica está relacionada ao uso simultâneo dos três modos de imitação da poesia cunhados por Aristóteles em sua Poética: “o ritmo, a linguagem e a harmonia” (Aristóteles, 1447a). O pensador sugere que esses aspectos são os que deram início à poesia, usados para traduzir as vivências e a imaginação humana, na busca pela “imitação própria da nossa natureza” (Aristóteles, 1448b).

Entretanto, é necessário ir além das perspectivas sobre o papel do lírico na era clássica, pensando em como seria esse gênero em contextos modernos. Salete de Almeida Cara (1998) classifica o lirismo como “uma expressão particular cuja figura é criada pelas relações — de acorde ou dissonância — entre som, sentido, ritmo e imagens. Essas relações são comandadas pela “visão subjetiva do eu lírico” (Cara, 1998, p. 69). Tal caracterização remete a uma herança clara da poesia lírica grega, apoiando-se na multiplicidade de produtores de sentido, e possibilita o aprofundamento e modalização da expressão poética. Afinal, nem mesmo os gregos prendiam o lírico a maneiras únicas de conteúdo, métrica ou performance (Budelmann, 2010, p. 6), buscando sim as oportunidades que o trabalho musical da palavra poderia trazer.

Sendo assim, neste trabalho, utilizarei a definição dada por Cara (1998), tomando como base a noção de lírico e a convergência entre elementos sonoros, rítmicos e narrativos para explorar a influência disso em diferentes produções artísticas.

3. O dramático

Antes de iniciar uma discussão acerca do lírico manifestado juntamente à arte dramática, é necessário informar o que seria o gênero dramático.

O dramático está estritamente ligado à encenação, sendo referido a textos artísticos escritos com esse objetivo final. O teatro constitui-se de quatro critérios gerais: a enunciação — o enredo é transmitido por meio da enunciação e ação das personagens —, a relação ao tempo e ao espaço — a articulação entre o tempo da encenação, o tempo da ficção e as marcas cenográficas espaciais —, a linguagem dramática — constituída pelo texto dramático em si e pelos efeitos de direção para ordenar a encenação, as didascálias — e a personagem — agentes que encenam e dão voz ao texto dramático, podendo ser apenas os veículos da ação, ou o objeto principal da trama (Stalloni, 2014).

Não é possível separar um texto dramático de sua natureza intrinsecamente teatral, aspecto em que entra a ideia de teatralidade, definida também por Yves Stalloni:

A presença de signos especificamente independentes do texto […] Um lugar particular sobre o qual se põe em ação uma fala sustentada por efeitos e uma “representação” e que se opõe a um outro lugar (o theatron, lugar em que fica o público), do qual de vê a ação; […] situações conflitantes transponíveis por vias visuais e sonoras de forma a tornar-se “espetáculo” e a produzir efeitos sobre o público (Stalloni, 2014, p. 47-48).

Com isso, é evidente que o dramático não está alheio à linguagem usada no texto dramático ou ao enredo, mas sim constitui uma conjuntura integrativa entre a ambientação, o próprio texto e a construção das personagens, a qual pode apoiar-se grandemente em estratégias musicais e sonoras para construir a relevância e a densidade psicológica das personagens. Tudo isso cria um gênero ambíguo, nunca puramente literário, baseado na capacidade e na dimensão da encenação, estando completo nas interpretações e montagens da obra, sendo efêmera pela singularidade de cada sessão de um espetáculo.

A teatralidade é inata ao teatro, ela é entendida como a “essência do teatro” (Stalloni, 2014, p. 47), sendo o senso artístico que junta todos os constituintes de uma obra dramática e dá existência a esse texto e forma artística. Essa “essência” atribui uma significância ao teatro que só é inteira quando o texto é encenado e experienciado por uma plateia — não só lido —, cultivando a natureza polissêmica da arte teatral.

4. Sonho de uma Noite de Verão em sua esfera musical

Tendo esses pressupostos em mente — o lirismo, o dramático e a teatralidade —, é possível partir para uma junção desses três aspectos a fim de explorar o papel da musicalidade em Shakespeare, especialmente em sua comédia[1]Sonho de uma Noite de Verão, algo tão valorizado pelo dramaturgo em suas produções:

Shakespeare usava a música para ampliar o texto, para avançar a ação, definir caráter, promover ambientação e atribuir atmosfera […]. Lembrando que a música instrumental elisabetana mal havia começado a se divorciar de seu uso apenas para suporte servil de vozes, é de se pensar em que uso dramático Shakespeare teria feito da orquestra se ele tivesse tido acesso à rica instrumentação atual (Von Ende, 1965, p. 48, tradução minha)[2].

Dessa maneira, Sonho de uma Noite de Verão conta com uma caracterização e importância do uso da voz como um todo, não somente a cantada, aspecto estudado por Maurice Hunt (1992). O trabalho de Hunt, embora muito bem fundamentado, não é abordado neste estudo, pois, aqui, abordarei o lirismo dentro da obra, ou seja, a musicalidade intrínseca à constituição do enredo e das personagens. Hunt dá luz ao papel da sonoridade da voz para o desenvolvimento da obra, revelando mais uma faceta da cautela de Shakespeare e da necessidade do campo sonoro para a ambientação de uma peça.

Em relação ao uso melódico em si, o autor da comédia faz diversas alusões à música dentro da obra, utilizando-as em momentos em que isso é uma ferramenta fundamental para a constituição do enredo, como nos cortejos de Lisandro a Hérmia — “Você, você, Lisandro, deu-lhe versos / E trocou provas de amor com ela, / Cantou à luz da lua sob a sua janela / Com a voz suave do falso amor” (Shakespeare, 2016, p. 19) — e o cantar das fadas para que Titânia, a rainha das fadas, durma — “Filomel, o rouxinol, já cantou / E com nossa canção acalentou, / Nana, nana, nanou; nana, nana, nanou. / Que nem espanto / Que nem encanto / Perturbem nossa amada senhora; / Durma bem com esta canção, agora” (Shakespeare, 2016, p. 67).

A natureza melódica das fadas é destacada nos acompanhamentos orquestrais compostos por Mendelssohn e Britten, feitos para acompanhar o espetáculo, relação estudada por Inga Marie Nesmann (2011). As composições feitas para o espetáculo são umas das mais conhecidas entre o teatro shakespeariano, pois complementam o uso fantástico e cômico da música feito por Shakespeare no texto.

É possível enxergar que toda essa musicalidade associada às fadas na peça está ali em razão da natureza mítica desses seres mágicos. Hurma e Alizadeth Tabrizi (2022) exemplificam as diversas ocorrências em que personagens utilizaram a música na constituição dos elementos fantásticos do enredo, tanto para elementos cômicos — como o cantar de Nico Novelo para distrair-se do medo de estar sozinho na floresta[3], e o som agradável de sua voz desafinada a Titânia, enfeitiçada[4] —, quanto para os elementos mágicos e místicos — como o cantar das fadas mencionado anteriormente. A carga lírica ajuda a deixar mais claro como esse grupo é importante e protagonista para a progressão do enredo.

É nesse aspecto que há uma maior convergência entre a composição de Mendelssohn e a de Britten para a peça. Os dois concordam no ponto de aumentar ainda mais essa exigência melódica, pois, além dos momentos musicais já inscritos por William Shakespeare, os compositores incluem acompanhamentos orquestrais na maioria dos momentos das fadas em cena, explorando a fundo a formação dessas criaturas misteriosas. Tal escolha artística é reconhecida por Nessman (2011), que aborda também a questão da obediência, estando próximas de seu rei e rainha, esbanjando uma submissão sobrenatural, o que as torna um só ser, em uníssono:

A ressonância ingênua e brilhante das vozes agudas dá uma interpretação importante da personalidade das fadas. Elas são representadas como um coro uniforme com uma mente e uma vontade, cantando em perfeita harmonia e obediência (Nessman, 2011, p. 66-67 tradução minha)[5].

Esse uso da música é fundamental para a caracterização das personagens em Sonho de uma Noite de Verão, seja pela construção mitológica e misteriosa das fadas, seja pelas personalidades amorosas e sonhadoras presentes na obra. Essa importância dada à esfera musical é uma evidência latente de como o lirismo está alojado na teatralidade, compondo grande parte da caracterização e da complexidade do enredo dramático. Com a música, o espetáculo teatral dá vida a uma junção única e multissensorial do texto dramático com a encenação, tornando isso um real exemplo do lírico, com essa harmonia melódica, textual e teatral.

Sonho de uma Noite de Verão é uma evidência de como a musicalidade era importante para o lirismo nas obras de Shakespeare, provando ser esse um aspecto imprescindível para o caráter do teatral (a teatralidade) de suas peças. A contribuição das vozes e da música na peça traz à tona a polissemia existente no teatro, uma forma artística que se alimenta da convergência de diversos elementos sensoriais para o acontecimento do espetáculo, algo que não poderia ser excluído da produção de Shakespeare.

5. O lirismo na forma do teatro musical moderno

A herança do uso da música para transmitir enredos dramáticos ainda é muito presente na atualidade, com grande destaque para as produções de teatro musical — forma teatral, descendente das óperas, que tomou sua forma moderna com o advento e sucesso das produções da Broadway, em Nova Iorque —, fundamentadas inteiramente nessa junção do lírico com a teatralidade para compor um espetáculo.

Para exemplificar essa interação, é relevante falar brevemente do musical norte-americano Hamilton, que mistura elementos de hip-hop, R&B e música teatral tradicional para narrar a vida de Alexander Hamilton, um dos fundadores dos Estados Unidos da América, importante para a fundamentação da Constituição do país, utilizando-se de tramas de drama e romance baseadas em fatos reais.

Escrito por Lin-Manuel Miranda e Jeremy McCarter, o texto do musical é composto quase que exclusivamente por músicas, sendo um exemplo extremo do uso da musicalidade lírica para contar uma história. Uma dessas grandes aplicações está no uso constante de temas melódicos para retomar certas personagens ou sentimentos, como os versos “minha chance”[6] (em referência a Alexander Hamilton), “espere por isso”[7] (em referência a Aaron Burr), “satisfeita(o)”[8] (em referência à Angelica Schuyler), e desamparada(o)[9] (em referência à Elizabeth Schuyler) (Miranda, McCarter, 2016, traduções minhas), temas esses que são também nomes de músicas dentro do musical, focadas nas histórias das respectivas personagens.

Além disso, ainda é minuciosa a escolha do andamento das músicas das personagens, pois, enquanto todos os outros cantam majoritariamente em um andamento de rap, Elizabeth Schuyler canta com um andamento mais lento, similar ao teatro musical tradicional. Isso se dá porque Elizabeth foi a personagem que viveu por mais anos — lembrando que todas as personagens são figuras históricas factuais —, tendo mais tempo de falar o que precisava em sua longa vida, sem precisar “apressar” sua fala, em comparação com os outros que tiveram vidas mais curtas.

Miranda e McCarter, semelhante à construção das ambientações e das personagens feita por William Shakespeare em Sonho de uma Noite de Verão, deixam à música algo intrínseco ao lírico em Hamilton, com um uso espetacular das melodias para compor uma teatralidade singular. Essa maneira de juntar o dramático e o musical num espetáculo constitui uma nova faceta do gênero dramático, que não apaga os seus antecessores, mas está ao lado deles, aumentando as nuances de expressão dramática e capacidades de utilizar as melodias para a estrutura de um enredo. Assim, é vista uma clara aplicação do lírico à teatralidade, visto que a música é instrumental para a produção de sentidos e ambientações dramáticas.

O musical conta até com uma referência a Macbeth, na música “Take a Break”, reconhecendo a importância de Shakespeare para o teatro com uma menção — e citação direta da peça — feita pelo personagem principal:

“Amanhã e amanhã e amanhã / Arrasta-se neste ritmo mesquinho de dia a dia” / Espero que você entenda a referência a / Outra tragédia escocesa sem que eu tenha que nomear a peça / Eles pensam que sou Macbeth, e a ambição é minha loucura / Eu sou um polímata, / um pé no saco, um grande pé / Madison é Banquo, / Jefferson é Macduff / E Birnam Wood é o Congresso a caminho de Dunsinane (McCarter; Miranda, 2016, p. 168, tradução minha)[10]

Diferentemente de Shakespeare, o teatro musical é mais explícito, precisamente no que toca à sua relação com a música. Porém usufrui dela da mesma forma que o dramaturgo elisabetano. Nos dois, é formado esse lirismo dependente das esferas cenográfica e sonora do espetáculo, para, assim, atingir uma existência multissensorial do gênero dramático. Com o acontecimento inato dos espetáculos, é possível envolver cada vez mais o espectador e o elenco na materialização de versões diferentes de uma mesma obra — o exímio poder do acontecimento teatral: ser efêmero e eterno simultaneamente, a cada momento que uma obra dramática toma forma.

6. Histórias cantadas na música popular brasileira

Indo agora para um recorte um pouco menos usual, é interessante falar como toda essa bagagem cultural e histórica pode ser vista no universo musical em si, com o surgimento de canções de caráter altamente narrativo. Essas canções são composições que, embora sejam produzidas por artistas predominantemente do campo musical, carregam um teor altamente narrativo, contando uma história completa dentro da canção, presentes na música popular brasileira. Podem ser citados como exemplos desse estilo de composição “Faroeste caboclo” e “Eduardo e Mônica”, da banda Legião Urbana; “Samarica parteira”, de Luiz Gonzaga; “O Sol e a Lua”, de Pequeno Cidadão; e “Construção”, de Chico Buarque.

Essas composições se diferem de um musical como Hamilton, por exemplo, pois este está ainda dentro de uma conjuntura teatral, uma obra longa e que necessita ser expressa em um espetáculo para exprimir toda a sua teatralidade. As canções narrativas não estão dentro do gênero dramático, porém, ainda é prudente citá-las pela carga lírica tão potente, exprimida de maneira similar ao uso em Shakespeare e no teatro musical, mesmo que em um molde diferente.

A fins de análise, será detalhada um pouco mais a música “Eduardo e Mônica”, da banda Legião Urbana, para aprofundar brevemente a compreensão desse estilo de escrita musical. Nessa música, o compositor traz a história inteira de um casal, desde o momento em que se conheceram, até muitos anos após, casados e com filhos:

Eduardo e Mônica um dia se encontraram sem querer / E conversaram muito mesmo pra tentar se conhecer / Carinha do cursinho do Eduardo que disse / Tem uma festa legal e a gente quer se divertir […] Eduardo e Mônica voltaram pra Brasília / E a nossa amizade dá saudade no verão / Só que nessas férias não vão viajar / Porque o filhinho do Eduardo / Tá de recuperação ah-ah-ah (Russo, 1986).

O trecho acima corresponde ao início e ao final da canção, respectivamente. Ele trata do momento em que o casal se conheceu e também de como eles se encontram atualmente — em referência ao tempo do eu lírico da música, que aparenta ser um amigo do casal — de seu relacionamento.

Um recurso sonoro utilizado pelo compositor da música é a entonação da voz utilizada para referir-se aos nomes de cada personagem. O nome “Eduardo” é enunciado com uma frequência mais aguda — visto que é construído como mais infantil, então toma uma sonoridade similar às vozes infantis, pré-pubescentes —, enquanto que “Mônica” soa mais profundo, grave — por ser retratada como madura e com perspectivas de vida, e, assim, ter uma voz mais madura. Porém, essa distinção de sonoridade é apagada quando os nomes são ditos juntos — “Eduardo e Mônica” —, dando destaque à harmonia do casal.

Embora fuja do contexto dramático, foco do atual texto, citar esse tipo de construção auxilia a tecer uma conexão maior entre as heranças do lirismo ao longo da história, evidenciado que essa conexão pode ser expressa de maneiras diversas: dentro do teatro tradicional elisabetano, no teatro musical moderno e nas músicas populares brasileiras. Dentro das construções das canções narrativas, não há tanto o aspecto da teatralidade, pois esse necessita da existência do espetáculo para, de fato, dar vida à obra, mas carrega uma significativa carga lírica em sua constituição. A música é necessária para transmitir a vida dessas personagens, mesmo que durante um espaço temporal tão curto — a exemplo da canção detalhada acima, apenas de 4 minutos e 32 segundos.

7. Considerações finais

É esperado que o atual estudo traga um panorama abrangente de como a cultura da Idade Antiga exerceu influência não só em um dos maiores dramaturgos do período elisabetano, William Shakespeare, mas também em manifestações modernas do teatro e da música popular brasileira. Com isso, há o objetivo de quebrar com o paradigma de que o teatro e a poética grega estão restritos à elite, provando que a arte não conhece barreiras, e modos artísticos historicamente destinados às camadas mais privilegiadas da sociedade permeiam e pertencem ao público, pois a cultura é de propriedade de todo o corpo social.

Essa herança cultural está clara na maneira como o fazer teatral ficou atrelado à música — mesmo no teatro contemporâneo tradicional, fora da esfera do teatro musical —, constituindo uma expressão atual do lirismo fundamentalmente melódica. Logo, as composições musicais escapam de uma posição de meras acompanhantes das encenações, e tomam a forma de caracterização das personagens e desenvolvimento do enredo, auxiliando, também, na ambientação e construção cenográfica.

Por isso, é fundamental valorizar a esfera musical ligada à contagem de uma narrativa, seja isso dentro da arte dramática ou dentro de músicas, pois esses dois elementos, quando aliados um ao outro, elevam a complexidade da produção. Pensar não só na música incluída por Shakespeare em Sonho de uma Noite de Verão, mas também nas contribuições de Mendelssohn e de Britten para aprofundar essa esfera sonora, induz a reflexão acerca da necessidade vista por esses artistas de juntar as melodias à teatralidade na obra.

Ademais, a existência de modalidades teatrais puramente musicais, como Hamilton, destaca como é possível explorar ao máximo essa contribuição da música na construção de uma narrativa, assim como visto em Shakespeare, porém mais evidente para o público, uma vez que é centralizado nas interações entre personagens como um todo. Juntamente a isso, a música popular também aproveitou-se desse uso das sonoridades junto ao enredo, dando palco para as canções narrativas no Brasil, tão similares às origens melopaicas na Grécia Antiga, a tradicional recitação de textos extremamente metrificados, acompanhados pela música.

Assim, é claro como o lírico pode trabalhar juntamente com o dramático — evidenciado por Sonho de uma Noite de Verão —, diversificando a teatralidade do texto ao integrar com tanto cuidado a musicalidade à caracterização das personagens e ao fluxo do enredo, e ampliar as possibilidades expressivas, proporcionando uma experiência teatral mais completa e envolvente. É, portanto, inegável que a cuidadosa fusão desses elementos contribui para a qualidade artística do espetáculo e para a compreensão mais profunda da narrativa e das nuances psicológicas das personagens, sendo uma integração imprescindível para o desenvolvimento da cultura humana.

Referências

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[1]A comédia é descrita como o teatro proposto a retratar a “imitação de homens inferiores […] parte do torpe que é o ridículo” (Aristóteles, 1449a).

[2]“Shakespeare used music to magnify the text, to advance the action, define character, promote mood, and assign atmosphere […] Remembering that Elizabethan instrumental music had barely begun its divorcement from its use solely for slavish support of voices, one wonders what dramatic use Shakespeare would have made of the orchestra if he had had available today’s rich instrumentation” (Von Ende, 1965, p. 48).

[3]Nico Novelo: “[..] Andarei de um lado ao outro e cantarei, assim ouvirão que não tenho medo. (canta) O melro é tão escuro, / De bico alaranjado, / O tordo é obscuro, / O pardal obstinado[…]” (Shakespeare, 2016, p. 89).

[4]Titânia: “Rogo-lhe, gentil mortal, cante mais; Meu ouvido enamorou-se de sua voz, […]” (Shakespeare, 2016, p. 89).

[5]“The naïve and bright resonance of the treble voices gives an important interpretation of the fairies’ personality. They are represented as a uniform chorus with one mind and one will, singing in perfect harmony and obedience” (Nessman, 2011, p. 66-67).

[6]“My shot” (Miranda, McCarter, 2016, p. 16).

[7]“Wait for it” (Miranda, McCarter, 2016, p. 91).

[8]“Satisfied” (Miranda, McCarter, 2016, p. 80).

[9] “Helpless” (Miranda, McCarter, 2016, p. 71).

[10]“‘Tomorrow and tomorrow and tomorrow / Creeps in this petty pace from day to day’ / I trust you’ll understand the reference to / Another Scottish tragedy without my having to name the play / They think me Macbeth, and ambition is my folly / I’m a polymath, / a pain in the ass, a massive pain / Madison is Banquo, / Jefferson’s Macduff / And Birnam Wood is Congress on its way to Dunsinane” (Miranda, McCarter, 2016, p. 168).